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4 A TUTELA PENAL DO CONSUMIDOR E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

4.3 Princípio da legalidade

O princípio constitucional da legalidade possui quatro desdobramentos, que implicam garantias313 para o cidadão: a proibição da retroatividade da lei penal (nullun crimen nulla poena

sine lege praevia); a proibição da utilização da analogia para definir crimes e penas (nullun

crimen nulla poena sine lege scricta); a proibição do uso dos costumes para prever crimes e penas (nullun crimen nulla poena sine lege scripta); e a proibição do emprego de fórmulas vagas e indeterminadas nos tipos penais (nullun crimen nulla poena sine lege certa).314 Interessa aqui

particularmente focar este último desdobramento do princípio da legalidade em face da técnica legislativa com que foram previstos os tipos penais que se inserem no objeto desta pesquisa.

A exigência de lei prévia incriminadora por si só não efetiva a segurança jurídica que se espera do Princípio que inaugura o Código Penal (art. 1º). Com efeito, de nada adiantaria a existência prévia de determinado tipo legal de crime se ele não trouxesse a certeza do que realmente está sendo proibido.315

312 Conforme Ferrajoli: “Um Estado Constitucional de Direito é, pela sua própria natureza, um ordenamento

imperfeito, sendo impensável, por causa do fundamento nomodinâmico da vigência das normas, uma perfeita coerência e plenitude do sistema nos seus diversos níveis. Mais: a sua possível imperfeição é paradoxalmente o seu maior mérito. Uma perfeita coerência e plenitude e uma total ausência de antinomias e de lacunas só seriam efetivamente possíveis se não fosse incorporado nas normas sobre a produção nenhum vínculo substancial: que é o que acontece no Estado absoluto – pouco importa se politicamente democrático – onde qualquer norma existente, desde que produzida segundo as formas estabelecidas pelo ordenamento, é, só por isso, válida” (FERRAJOLI, O direito como..., in: O novo em direito e política..., p. 99).

313 AMARAL, Princípios penais:..., p. 89.

314 Esses quatro desdobramentos do princípio da legalidade são mencionados pela doutrina. Confira: BATISTA,

Introdução crítica ao direito penal, p. 68-77. ROXIN, Derecho penal, p. 140-1. TOLEDO, Princípios básicos de direito penal, p. 102. AMARAL, Princípios penais:..., p. 89 e 115. Este último autor confere destaque ao princípio da taxatividade, comentando-o em item separado do princípio da legalidade, embora reconhendo o vínculo entre ambos. De igual modo, veja: LOPES, Princípios políticos do direito penal, p. 84.

315 Como ressaltado por Maurício Antônio Ribeiro Lopes: “A eficácia da reserva legal está condicionada à

qualidade da lei, ou à técnica empregada para a descrição de condutas proibidas ou ordenadas” (LOPES, Princípios políticos do direito penal, p. 84).

Basta dizer que o conteúdo indeterminado ou ambíguo de determinada lei incriminadora cria oportunidade ao Estado-juiz para estabelecer, a seu modo, na sentença os contornos da esfera do punível. Nesses termos, a lei obscura, assim caracterizada, equivale à ausência de lei.316

Afirma-se, então, que o princípio da taxatividade deve presidir a atividade incriminadora, exigindo o emprego de boa técnica legislativa para que haja leis com precisos contornos.

A incriminação mal formulada, outrossim, permite que o juiz encampe o papel do legislador na definição de crime, por meio de interpretação feita a partir de tipo indeterminado, não taxativo. Ademais, a incerteza quanto ao conteúdo da proibição frustra os objetivos de prevenção do crime, como registrou, em definitivo, Roxin317:

Uma lei indeterminada ou imprecisa e por isso pouco clara não pode proteger o cidadão da arbitrariedade, porque não implica uma autolimitação do ius puniendi estatal a que se pode recorrer; ademais é contrária ao princípio da divisão de poderes, porque permite ao juiz realizar a interpretação que bem entender e invadir com isso o terreno do legislativo; não pode empenhar eficácia na prevenção geral, porque o indivíduo não possui condições de reconhecer a proibição; e precisamente por isso a sua existência tampouco pode proporcionar base para uma reprovação jurídico-penal.

O princípio da taxatividade dirige-se não apenas ao preceito primário mas, de igual modo, ao preceito secundário do tipo.318 Desse modo, a previsão de intervalos muito

extensos entre o mínimo e o máximo abstratamente cominado para a pena ofende o princípio da taxatividade.319

Segundo Claus Roxin, a indeterminação na previsão da pena é menos grave do que a falta de taxatividade na definição do crime, porquanto ainda restará ao imputado, se condenado, contar com o princípio da culpabilidade e o da individualização da pena que regem a dosimetria.320 Contudo, conforme alerta o tratadista alemão, os pressupostos de

punibilidade do fato e suas consequências jurídicas formam o tipo penal, o qual estará em

316. BATISTA, Introdução crítica ao direito penal, p. 78. 317 ROXIN, Derecho penal, p. 169.

318 COSTA JÚNIOR, Curso de direito penal, p. 36. Na doutrina alemã, Maurach e Zipf sustentam que a

taxatividade nos tipos deve ser observada tanto no fundamento da punibilidade do fato quanto em suas consequências jurídicas (MAURACH; ZIPF, Derecho penal, p. 159).

319 ROXIN, Derecho penal, p. 175. 320 ROXIN, Derecho penal, p. 175.

confronto com o princípio da legalidade, ainda que a ausência de taxatividade verificar-se somente com relação à previsão da pena.321

Nilo Batista322 exemplifica situações em que o princípio da taxatividade resta

vulnerado:

a) quando se oculta o núcleo do tipo;

b) quando se empregam elementos sem precisão semântica; e c) quando se utilizam tipificações abertas e exemplificativas.

Observa-se que os apontamentos didáticos de Nilo Batista encontram plena aplicação nos arts. 67 e 68 do CDC, que incriminam a “publicidade enganosa” e a “publicidade abusiva” (art. 67), bem como a “publicidade tendenciosa”323 (art. 68 do CDC).

Em ambos os tipos penais é empregado o verbo “promover” a publicidade, cuja significação admite seja tal conduta praticada tanto pelo anunciante (fornecedor de produtos) como pelo publicitário responsável pela elaboração do anúncio e, ainda, pelo responsável por veicular a mensagem.324

Nos dois tipos penais em referência é utilizada a expressão “deveria saber”, cujo significado é dúbio. No Código Penal, essa mesma expressão – alternativa ao dolo direto (que

sabe ou deveria saber) – é utilizada na definição do crimes de excesso de exação.325

autores que a compreendem como indicativa de dolo eventual326, e outros que nela

vislumbram modalidade de culpa.327 A expressão, portanto, é equívoca, suscitando mais de

um sentido.

Luiz Luisi, comentando o art. 67 do CDC, sustenta que o elemento subjetivo da figura delituosa em apreço é o dolo. Porém, embora não explicitado pelo legislador, o tipo se apresenta sob a forma culposa, já que a expressão “deveria saber” corresponde à falta de diligência normalmente exigível. Esclarece o autor328:

321 ROXIN, Derecho penal, p. 175.

322 BATISTA, Introdução crítica ao direito penal, p. 81-2.

323 “Publicidadade tendenciosa” é a expressão utilizada por José Geraldo Brito Filomeno para expressar o nome

jurídico do delito descrito no art. 68 do CDC (FILOMENO et al. In: Código brasileiro de defesa do..., p. 670).

324 Veja-se o exame dos tipos em espécie, no Capítulo 5.

325 Art. 316, §1º. “Se o funcionário exige tributo ou contribuição social que sabe ou deveria saber indevido, ou,

quando devido, emprega na cobrança meio vexatório ou gravoso, que a lei não autoriza: Pena - reclusão, de três a oito anos, e multa”.

326 Assim: BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2008, p. 73; PRADO, Curso de direito penal..., p. 464-5.

327 LUISI, Os princípios constitucionais..., p. 63; MIRABETE; MIRABETE, Manual de direito penal, p. 285. 328 LUISI, Os princípios constitucionais..., p. 63.

Do ponto de vista subjetivo, o tipo é doloso. Todavia em uma das suas configurações, embora não explicitado, o tipo se apresenta na forma culposa. É bem verdade que a conduta fazer ou promover a publicidade é querida pelo agente. Todavia o tipo se desdobra de modo a que em uma de suas modalidades se configura o delito somente na hipótese do agente poder ter tido, mas não tendo efetivamente, ciência da potencialidade da publicidade para levar o consumidor à prática de comportamento capaz de causar dano ou perigo à sua saúde ou à sua segurança. Neste caso o agente não tem conhecimento desta potencialidade, mas poderia tê-la tido, e não a teve, por falta de diligência normalmente exigível. E isso implica, evidentemente em conduta culposa.

Muito embora a expressão “deveria saber” venha a aproximar-se da noção de culpa stricto sensu pela alusão ao dever objetivo de cuidado que se poderia esperar do agente, não se pode chegar a tal conclusão. É que, em face da idêntica pena cominada à figura dolosa e à pretensa modalidade culposa, restaria ferido o princípio da proporcionalidade nesse caso.

Ademais, a regra geral é a de que os crimes sejam punidos a título de dolo e, excepcionalmente, por culpa, a teor do disposto no parágrafo único do art. 18 da parte geral do Código Penal: “Salvo os casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente”. Na hipótese dos delitos publicitários do CDC (arts. 67 e 68), observa-se que o legislador não destacou que se estaria punindo a modalidade culposa, a exemplo do que ressalvou quanto a tal previsão nos arts. 63 e 66 do mesmo diploma legal.

Deve-se compreender, então, que o legislador foi infeliz ao utilizar-se da expressão imprecisa “deveria saber”. Em realidade, a expressão indica dolo eventual, tal como já entendeu Bitencourt ao comentar o tipo que define o crime de excesso de exação.329 Nesse sentido, conclui-se que o agente, que tinha condições para aferir o

caráter enganoso ou abusivo da publicidade, realiza o anúncio atuando com dúvidas a respeito de sua licitude, preferindo agir a abster-se, aceitando dessa maneira a realização da conduta proibida.

Outrossim, a elementar “abusiva” empregada pelo art. 67 do CDC, embora se refira à modalidade de publicidade que é proscrita, também é termo equívoco, de maneira a permitir ambiguidade na compreensão do injusto penal.

329 “O deveria saber, como outras expressões presentes no código, entre elas o devendo saber (art. 174) ou o

deva saber (art. 245) denota a admissibilidade de dolo eventual. Assim, a expressão empregada pelo texto normativo não revela a penal certeza sobre a realidade, e, sim, um juízo de dúvida sobre a ilicitude da exigência ou do meio empregado para a cobrança. Contudo, o agente, mesmo diante de tal circunstância, prefere continuar a sua conduta tendente à produção do resultado e “entre o renunciar à conduta e o risco de com ela concretizar o tipo, prefere esta atitude em detrimento daquela. Isso quer dizer que o agente opera com dolo eventual” (BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2008, p. 73).

Essas discussões e outras possíveis a partir dos tipos penais objeto desta tese serão realizadas mais oportunamente, quando da análise dos tipos previstos nos arts. 63, 64, 66, 67 e 68, todos do Código de Defesa do Consumidor.