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4 A TUTELA PENAL DO CONSUMIDOR E OS PRINCÍPIOS CONSTITUCIONAIS

4.5 Princípio da intervenção mínima

O princípio da intervenção mínima constitui diretriz político-criminal condizente com os pressupostos de Estado Democrático de Direito assegurados na Constituição da República.

Não se vê acolhimento explícito do princípio pela Constituição, mas, implicitamente, sustenta-se o seu acolhimento pelo ordenamento jurídico-penal a partir da conjugação dos arts. 1º, III, e 3º, I, da Carta Magna.360 Nesses dispostivos, a dignidade da

pessoa humana como fundamento da República Federativa do Brasil e a liberdade como um de seus objetivos fundamentais são as bases que sustentam o princípio em foco. A vinculação da intervenção mínima à Constituição ocorre também em face da concepção material de Estado Democrático de Direito.361

A ideia de mínima intervenção não é recente e encontra esteio na obra de célebres penalistas do século XVIII.362 É também da época do Iluminismo a liberal imposição de

limites ao poder legiferante penal presente na Declaração Universal dos direitos do Homem e do Cidadão (1789), cujo art. 8º assim dispõe: “A lei apenas deve estabelecer penas estrita e evidentemente necessárias.”

A noção de direito penal como ultima ratio de política de proteção aos bens jurídicos − subsidiário, portanto − rege o princípio, vinculando-o a razões de necessidade de sua tutela. Conforme tal noção, o direito penal apenas deverá intervir quando falharem todos os demais meios de proteção de bens jurídicos, formais ou informais363, devendo atuar apenas

quando for necessário. Nas palavras de Roxin364:

360 Nesse sentido: LUISI, Os princípios constitucionais..., p. 26; BATISTA, Introdução crítica ao direito penal,

p. 85; AMARAL, Princípios penais:..., p. 140. SILVA, Dos crimes de perigo abstrato..., p. 119. Nilo Batista (BATISTA, Introdução crítica ao direito penal, p. 85) cita, ainda, o inciso IV do art. 3º da Constituição, que dispõe sobre o objetivo da República “[...] promover o bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo, cor, idade e quaisquer outras formas de discriminação”.

361 PRADO, Curso de direito penal..., p.138. SILVA, Dos crimes de perigo abstrato..., p. 119.

362 BATISTA, Introdução crítica ao direito penal, p. 84. Sobre o princípio iluminista da “mínima pena

necessária”, confira: FERRAJOLI, Direito e razão:..., p. 267-8.

363 Meios formais de controle são pertencentes a outras áreas do direito, não penais. Os meios informais são a

igreja, associação de bairro, ONGs, etc. Confira em: AMARAL, Princípios penais:..., p. 145.

O Direito penal somente é incluído na última dentre todas as medidas protetoras que se deve considerar, isto é, apenas poderá intervir quando falhem outros meios de solução social do problema – como a ação civil, as regulações da polícia ou técnico- jurídicas, as sanções não penais, etc. Por isso se denomina a pena como a ‘ultima ratio da política social’ e se define a sua missão como proteção subsidiária de bens jurídicos.

A subsidiariedade vem recomendar a intervenção penal somente nos casos em que os demais meios de controle social, formais (direito civil, administrativo, empresarial, etc) e informais (escola, associações, família), menos drásticos do que a tutela penal, falharem.

De acordo com Regis Prado, além do critério da necessidade que norteia a intervenção mínima, de ultima ratio, deve-se atender, outrossim, à eficácia da intervenção penal. Desse modo, para legitimar o direito penal é preciso que seja ele necessário e também eficaz. Todavia, alerta o mencionado autor que a eficácia não deve ficar a critério do arbítrio do legislador, o qual deve apresentar justificativa de seu conteúdo.365

A fragmentariedade do direito penal é, outrossim, pertinente à intervenção mínima.366 Há autores, contudo, que sustentam que a intervenção mínima basta-se com a

subsidiariedade do direito penal.367 Juarez Tavares defende posição diversa das duas

correotes:

Normalmente, o princípio da intervenção mínima é confundido com o princípio da subsidiariedade ou com o caráter fragmentário do Direito Penal, consoante a formulação de Binding ou com o princípio da necessidade da intervenção. Essa postura, entretanto, deve ser evitada. O princípio da intervenção mínima constitui, antes de mais nada, um princípio de ordem política, que vincula o legislador, previamente a qualquer elaboração legislativa, de modo que esse se veja obrigado a verificar se a lei que irá propor, formular, discutir, redigir ou promulgar se harmoniza com os postulados dos direitos humanos.

A expressão “caráter fragmentário do direito penal”, creditada a Binding, parte do pressuposto de que o direito penal não detém a exclusividade da proteção dos bens jurídicos,

365 PRADO, Curso de direito penal..., p.138.

366 Cláudio do Prado Amaral (AMARAL, Princípios penais:..., p. 145) e Luiz Regis Prado (PRADO, Curso de

direito penal..., p. 138) entendem que a fragmentariedade é um subprincípio ou corolário da intervenção mínima, ao lado da subsidiariedade. Para Nilo Bastista (BATISTA, Introdução crítica ao direito penal, p. 85-6), no mesmo sentido, as características da subsidiariedade e da fragmentariedade relacionam-se ao princípio da intervenção mínima.

367 Para Ângelo Roberto Ilha da Silva: “O mínimo aqui significa subsidiário, ultima ratio, norteado pela

necessidade” (SILVA, Dos crimes de perigo abstrato..., p. 118). Cezar Roberto Bitencourt, em seu Tratado de direito penal, ao discorrer sobre o princípio da intervenção mínima restringe-se também à subsidiariedade do direito penal para explicá-lo; em tópico apartado de princípios, é que preleciona sobre o “princípio da fragmentariedade” (BITENCOURT, Tratado de direito penal, 2003, p. 11-13).

mas seleciona as hipóteses em que irá intervir a partir do critério de “merecimento de pena”.368 Tal critério admite três variáveis, conforme Jescheck: valor do bem jurídico,

perigosidade da agressão e reprovabilidade da atitude interna do autor.369 De acordo com

Cláudio do Prado Amaral, a atuação do direito penal seria, então, de “defesa seletiva” dos bens jurídicos.370

Atualmente, os conceitos fornecidos pela doutrina portuguesa de dignidade e de carência penal371, ambos a estabelecerem condições de legitimidade para a intervenção penal,

são variações no mesmo tom dos corolários acima caracterizados (subsidiariedade e fragmentariedade). Nesse sentido, Figueiredo Dias limita o direito penal à tutela subsidiária de bens jurídicos que possuam dignidade penal, que são “bens jurídicos cuja lesão seja digna de pena”.372 Para o professor português, os bens jurídicos dotados de

dignidade penal são “concretizações dos valores constitucionais expressa ou implicitamente ligados aos direitos e deveres fundamentais”.373 Mas, de acordo ainda com

Figueiredo Dias, deve-se perquirir se haverá necessidade374 (carência) para a tutela dos bens

com dignidade penal.

É bem de ver que a ideia que preside a mínima intervenção penal é a exigência de proporcionalidade entre o rigor intrínseco à sanção criminal e a gravidade da conduta delituosa.

O princípio da proporcionalidade, então, revela-se como verdadeira matriz da intervenção mínima, sendo ambos exigências orientativas na busca da justiça material no Estado Democrático de Direito.

368 JESCHECK; WEIGEND, Tratado de derecho penal, p. 57. 369 JESCHECK; WEIGEND, Tratado de derecho penal, p. 55. 370 AMARAL, Princípios penais:..., p. 145.

371 ANDRADE, A dignidade penal e..., in: Revista Portuguesa de..., passim. Veja também: DIAS, Questões

fundamentais de..., p. 62 e ss.

372 DIAS, Questões fundamentais de..., p. 62.

373 Ainda segundo o Mestre de Coimbra, é de se notar entre a ordem axiológica constitucional e a ordem legal

dos bens jurídicos uma coincidência de sentido e de fins da tutela (DIAS, Questões fundamentais de..., p. 67).

374 A necessidade a que refere tem em vista o desenvolvimento da personalidade de cada um na comunidade, in

verbis: “A violação de um bem jurídico não basta por si para desencadear a intervenção, antes se requerendo que esta seja absolutamente indispensável à livre realização da personalidade de cada um na comunidade.” (DIAS, Questões fundamentais de..., p. 78).