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Tendo em vista as questões teóricas iniciais apresentadas, considerar o Bumba meu boi um fenômeno de comunicação significa compreendê-lo a partir de sua produção, circulação e consumo, no contexto cultural e político do Maranhão contemporâneo, numa perspectiva processual e ritual, que leve em conta as relações cotidianas e os sentidos que os sujeitos, integrantes do Bumba-boi, dão às práticas comunicacionais.

Por dizer respeito às distintas formas através das quais os indivíduos se constituem em sociedade, a mediação tensiona, relaciona e põe em evidência sujeito e estrutura, aspectos micro e macrossociológicos (MARTÍN-BARBERO, 2004) na análise comunicacional.

A partir dessa orientação, é preciso refletir sobre as dimensões culturais e históricas do Maranhão, especialmente da capital, São Luís, para apreender os significados das práticas dos brincantes do Bumba-boi de Maracanã.

Em primeiro lugar, devido à coexistência de vários processos de acumulação do capital, a distribuição e o acesso desiguais das formas culturais no estado são uma

problemática antiga: o Maranhão possui 25,7% dos seus 6,5 milhões de habitantes abaixo da linha da miséria, o pior índice entre todos os estados brasileiros, segundo dados do Censo 2010, do IBGE.

Também são marcantes as consequências do domínio do grupo político do Senador José Sarney, por 48 anos no Estado. O Maranhão começa a se inserir na política desenvolvimentista nacional quando José Sarney12 assume o Governo do Estado, em 1966, afirmando romper com o vitorinismo, um coronelismo particular, que consistiu no domínio dos interesses do senador Vitorino Freire no Estado.

A principal justificativa do discurso político de José Sarney, durante seu domínio político no Estado, é a “ruptura com o atraso” à luz do “desenvolvimento”, que, como ele próprio define, estaria ligado à “incorporação dos benefícios que decorreriam da meta da Integração Nacional” (SARNEY, 1970 apud GONÇALVES, 2000, p. 110). Portanto, o governador teria a missão de, ao mesmo tempo, acabar com a (suposta) “decadência” econômica e cultural em que se encontrava o Maranhão e retomar a “prosperidade” econômica e cultural do estado, que remonta a um passado de glórias – nos campos literário e político – supostamente extinto com o vitorinismo. Essas práticas fizeram parte do projeto de governo “Maranhão Novo”13, que, entre outras estratégias, visou reinventar o Maranhão pelo critério da identidade regional (GONÇALVES, 2000, p.110).

Assim, sintonizado com os interesses da política nacional desenvolvimentista, o Governo do Maranhão teve o apoio amplo do presidente militar Castelo Branco, sendo implementada no estado uma infraestrutura econômica e social sem, todavia, contrariar os interesses dominantes, especialmente dos latifundiários.

José Sarney desenvolveu uma "revolução administrativa", em que os investimentos decuplicaram, aumentando em 2.000% o orçamento do Estado. O chamado

12 Candidato da coligação da União Democrática Nacional (UDN) com o Partido Social Progressista (PSP), a

atuação política de José Sarney. Apesar das posições que assumira em defesa das reformas de base e em apoio a João Goulart, José Sarney tornou-se um dos principais nomes políticos do regime implantado em março de 64. Ostensivamente apoiado pelo presidente Castelo Branco, Sarney conquistou o governo do Maranhão em outubro de 1965, recebendo uma votação inédita na história do Estado: 121.062 votos, o dobro do segundo colocado, Antônio Eusébio da Costa Rodrigues, do PDC, apoiado pelo governador Newton Belo. A eleição representou a primeira derrota política de Vitorino Freire: seu candidato, Renato Archer, obteve uma votação inexpressiva. Após o término de seu mandato presidencial (1985-1989), elegeu-se duas vezes senador pelo Amapá, cargo que ocupa até hoje, exercendo a presidência dessa casa de 1995 a 1996, de 2003 a 2004. Ver mais sobre José Sarney em: Dicionário Histórico Biográfico Brasileiro. Fundação Getúlio Vargas. Disponível em: <http://www.cpdoc.fgv.br> Acesso em: 22/06/2015.

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Maranhão Novo foi o nome do projeto de governo de José Sarney no Maranhão (1966-70) baseado na defesa da modernização capitalista da economia no Estado. Dentre outros, os objetivos do projeto eram a “prosperidade”, a “modernização” e o “desenvolvimento com justiça social”. “Novo” e “Moderno” são tomados como sinônimos neste governo, que traz como retórica a ruptura com o “atraso”.

“milagre maranhense” incluiu, entre outros empreendimentos, a construção de quinhentos quilômetros de estradas asfaltadas e dois mil quilômetros de estradas de terra; a construção do porto de Itaqui e o planejamento da cidade industrial; a criação de uma rede de telecomunicações cobrindo 85 municípios; o aumento de cem mil para 450 mil das matrículas escolares; inauguração, com uma assistência de cem mil pessoas, da ponte de São Francisco, sobre a foz do rio Anil. (DICIONÁRIO Histórico-Biográfico Brasileiro, <http://www.cpdoc.fgv.br>).

O preço dos investimentos locais foi a doação de milhares de hectares de terras; a cessão de benefícios fiscais e isenção de impostos a grandes empresários nacionais pelo Governo do Estado. Prática que desencadeou a expulsão de centenas de famílias de trabalhadores rurais para a capital, São Luís, sem que investimentos de base tivessem sido feitos para lhes dar suporte (MARQUES, 1999).

Nesse contexto de êxodo rural, as famílias veem nas tradições culturais uma possibilidade de evocar sua terra de origem, um retorno (simbólico) à terra deixada. Assim, a festa passa a fazer parte do cotidiano14 desses sujeitos como uma forma de lazer, de prazer, como um modo de consolidação das relações afetivas e comunitárias - que agora precisam se estabelecer num outro contexto, as periferias urbanas. De acordo com Canclini (1983, p. 129), as festas populares propiciam uma

catarse controlada daquilo que não pode vir à tona no trabalho que é realizado em condições de opressão mas que é também regulado na sua irrupção festiva para que não prejudique a sua coesão permanente: a festa não é a liberação desregrada dos instintos que tantos antropólogos e fenomonólogos imaginaram, mas um lugar e um tempo delimitados no qual os ricos devem financiar o prazer de todos e o prazer de todos é moderado pelo "interesse social". As paródias ao poder, o questionamento irreverente da ordem é consentido em espaços e momentos que não ameaçam o retorno posterior à "normalidade".

Nas festas o povo também tece sua crítica social e resistência ao sistema hegemônico de uma maneira muito própria. Como observa Canclini (2011), muitas práticas rituais subalternas, aparentemente destinadas a reproduzir a ordem vigente, transgridem-na humoristicamente. Muito semelhante à dramatização do auto do Bumba meu boi, "Em carnavais de vários países, danças típicas dos indígenas e dos mestiços parodiam os conquistadores espanhóis, usam grotescamente seus trajes [...]" (CANCLINI, 2011, p. 221). É

14 Como analisa Canclini, sobre as festas populares no México: "A continuidade que verificamos existir entre o

tempo do trabalho e da festa, entre os elementos cotidianos e os cerimoniais, o fato de que a organização da produção (familiar e por bairros) é mantida na preparação dos festejos, desqualifica toda oposição absoluta entre a festa e a existência diária" (CANCLINI, 1983, p. 129).

claro, adverte o autor, que "não se deve otimizar essas transgressões a ponto de acreditar que desfazem, ao reivindicar histórias próprias, a tradição fundamental da dominação" (CANCLINI, 2011, p. 221). Portanto, com a ruptura da festa não há um aniquilamento das hierarquias e desigualdades sociais, mas sua irreverência constrói uma relação mais aberta, menos fatalista, com as convenções estruturais impostas.

Retomando as relações de tensão entre rural e urbano, entre industrialização/urbanização compulsiva e a situação de subdesenvolvimento da população nas cidades brasileiras, Oliven observa:

(...) o Brasil se constitui num exemplo esclarecedor de como o paternalismo e o clientelismo podem adaptar-se à dinâmica da sociedade urbano-industrial, vivendo lado a lado com relações mais impessoais. (...) A lógica da continuidade do clientelismo nas partes mais complexas da sociedade brasileira reside no fato de que no Brasil se desenvolve um capitalismo que não produziu uma separação radical entre interesses agrários e industriais e que também, apesar de seu dinamismo, não é capaz de incorporar ao sistema produtivo toda população urbana em idade de trabalho (OLIVEN, 1980, p. 31-32).

Em estudo anterior sobre as Gestões da Cultura no Governos de Roseana Sarney à frente do Governo do Estado do Maranhão (1995-2002), identifiquei graves deficiências no campo das políticas públicas: a gestão dos bens culturais no âmbito do poder executivo estadual constitui um conjunto de ações isoladas e pontuais, limitadas a mandatos e motivadas por interesses de ocasião, sem planejamento, nem participação popular efetiva nas decisões sobre os recursos financeiros. Essa lacuna permite que os políticos manipulem os recursos públicos voltados à promoção da cultura de forma personalista, buscando uma boa posição junto ao campo artístico-cultural. Por outro lado, os artistas populares passam a criar estratégias para também adquirirem capital (financeiro e cultural) e se beneficiarem nessa disputa (CARDOSO, 2008).

As mediações comunicativas no Boi se constroem, principalmente, através do sistema significante da oralidade. Na sociedade brasileira as práticas culturais do povo, no jogo com os meios de comunicação, é em grande parte construção da oralidade, nas formas de produzir, armazenar, fazer circular as mensagens e delas se apropriar, ainda que sob a influência da escrita, como defende Ferrão Neto (2010) em seu estudo sobre as tensões entre oralidade, letramento e mídia no Brasil.

A cultura do Bumba meu boi é predominantemente oralizada, especialmente tratando-se dos grupos que se situam nas periferias urbanas e áreas rurais do Maranhão.

Há um salto de regimes comunicativos, no século XX, que não é exclusividade das comunidades de Bumba-boi, mas é um fenômeno histórico nacional: maior parte da população brasileira, sobretudo de classes populares, sai de uma experiência de oralidade e passa para a experiência do audiovisual, com a implantação e popularização da TV, sem ter passado pela consolidação do letramento. Mesmo com a massificação de políticas educacionais voltadas à alfabetização e ao letramento e o incremento no acesso às escolas observados a partir do fim do século XX, não houve uma estabilidade no regime da escrita. E o surgimento e a propagação das tecnologias digitais da informação só reforçam a tendência ao audiovisual. Como ilustra Ferrão Neto:

Em casa, aprende-se com as novelas televisivas os mecanismos das síndromes que atacam o corpo e a alma (...) e, ainda, assiste-se ao intérprete de um documentário que traz curiosidades sobre mares bravios, mudanças climáticas e as novas descobertas da ciência. A programação da grande e da pequena tela adentra as salas de aula e se transforma em material didático. Radiocursos e telecursos são ferramentas de ensino e fornecem diplomas. Da mídia eletrônica saem explicações do mundo. Definitivamente não é pela cultura dos livros e pela investigação de documentos e outras narrativas escritas que se organizam a cognição, os pensamentos e as formas do saber e do conhecimento na maioria da população brasileira, que não frequenta os bancos da universidade, as escolas particulares tradicionais e muito menos os cafés da livraria da moda. As novas tecnologias da contemporaneidade reforçam ainda mais o estatuto oralizado da comunicação, que trabalha na produção de sentido e forja representações. (FERRÃO NETO, 2010, p. 6-7)

Para Walter Ong (1998), a oralidade está enraizada na experiência tradicional das sociedades. Uma de suas principais características é seu caráter de exterioridade e vivência coletiva: a partilha oral de ideias e sentimentos se dá através da narrativa (sua forma discursiva), que serve de fundamento e legitimação dos valores e normas sociais, remetendo, através da memória, para um fundo mítico compartilhado coletivamente, guardado e transmitido pelos mais velhos, os chamados “bancos de reserva da experiência”.

Thompson explica que houve um impacto transformativo das tecnologias da informação e comunicação, que ele chama de mídia, na vida social, modificando a forma de lidar com as tradições orais na experiência contemporânea:

Antes do desenvolvimento da mídia, a compreensão que muitas pessoas tinham do passado e do mundo além de seus imediatos ambientes era modelada principalmente pelo conteúdo simbólico intercambiado em interações face a face. Para a maioria das pessoas, a noção de passado, do mundo além dos seus locais imediatos e de suas comunidades socialmente limitadas, das quais fazem parte, era constituída principalmente através das tradições orais que foram produzidas e reproduzidas nos contextos sociais da vida cotidiana. Com o desenvolvimento da mídia, contudo, os indivíduos puderam experimentar eventos, observar outros e, em geral, conhecer mundos situados muito além da esfera de seus encontros diários (...) à medida que os indivíduos tiveram acesso aos produtos da mídia, eles puderam também manter um

certo distanciamento do conteúdo simbólico das interações face a face e das formas de autoridade que prevaleciam em seus contextos sociais. (THOMPSON, 2008, p. 233-234)

Embora reconfiguradas, as tradições orais não desapareceram. Apesar de predominar nas sociedades “de memória”, a comunicação oral não perdeu o seu papel com a invenção da escrita e das diversas tecnologias da informação. Ela continua necessária à comunicação que vigora nas relações sociais espontâneas do cotidiano e ainda desempenha o mesmo papel de fundamento da sociabilidade e de apreensão das normas/valores que regem a vida em comum.

A oralidade constitui uma "tecnologia da inteligência" (LEVY, 2004), juntamente com a escrita e a informática. Mas o debate acadêmico do campo da comunicação costuma esquecer ou menosprezar a oralidade, sem se dar conta do seu importante papel, das técnicas de memorização, de aprendizagem, dos modos de guardar e passar o conhecimento. Os mitos, por exemplo, têm valor pedagógico, de identificação social, de representação das relações, de produção de sentidos que são fundamentais. O "auto do Bumba meu boi", que será tratado no capítulo seguinte, é um mito que explica a origem do Bumba meu boi, mas também pode ser interpretado como questionamento da "democracia racial" ou metáfora da luta de classes, criticando os papéis sociais atribuídos ao português colonizador (dono da fazenda e do Boi), ao negro (serviçal que engana o patrão e mata o animal para oferecê-lo a sua mulher) e ao índio (o curandeiro que ressuscita o Boi, aliado do negro).

Desse modo, o próximo capítulo traça uma contextualização do Bumba meu boi, um fenômeno nacional que se estabelece no Estado do Maranhão num processo de hibridações com diversas culturas e de arranjo/adaptação/reelaboração constante, segundo as especificidades econômicas e sociais do Estado.

2 SAUDAÇÃO

Agradeço meu santo Que me dá inspiração Pra cantar Boi todo ano Junto com meu batalhão Estou firme no meu terreiro No Brasil Nosso nome espalhou Salve o povo brasileiro

Que nos dá valor. (Humberto de Maracanã, Boi de Maracanã, 2002)

A Saudação15 é o momento em que o grupo louva os santos e cumprimenta o dono da casa ou do terreiro que o contrata. Hoje em dia a saudação também é direcionada ao público, fazendo uma apresentação do Boi. E aqui me aproprio desse recurso para apresentar e contextualizar o Bumba meu boi na cultura maranhense, construindo uma historiografia do fenômeno, dentre tantas outras possíveis, baseio-me na literatura nacional, em pesquisas acadêmicas e de folcloristas. No decorrer deste capítulo, também ofereço um panorama de elementos artísticos dessa manifestação cultural, assumindo o risco de que todo esforço para explicar o rico universo simbólico do Bumba meu boi, com suas lendas, seus ritos e variados sotaques16, sempre será parcial e incompleto, tenderá muito mais a generalizações do que a explorar as particularidades e poderá ser contado de outra maneira.