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Bumba meu boi: a fabricação de um símbolo de identidade no Maranhão

3.1 A CONSTRUÇÃO DO NACIONAL-POPULAR NO BRASIL

3.1.1 Bumba meu boi: a fabricação de um símbolo de identidade no Maranhão

No Maranhão, até os anos 1960, os grupos de Bumba meu boi eram constantemente expulsos das áreas nobres e centrais da cidade à base de força policial. Para ultrapassar essas barreiras físicas, o Boi teve que se enquadrar em alguns padrões de normalidade das elites, além de contar com a ajuda de políticos, passando por um processo de "assepsia", em que elementos considerados grotescos, oriundos das culturas negras, sofreram adaptações.

Houve uma ressemantização de conteúdos que faziam parte do processo criativo dos folguedos a partir da “reelaboração simbólica das suas relações sociais” (CANCLINI, 1983, p. 43), gerando novas práticas, táticas e sentidos. Hoje, o Bumba-boi é símbolo de identidade regional, divulgado e financiado pelo poder público estadual e municipal.

Uma das repercussões desse processo é que os agentes passam a lidar com o fenômeno cultural de modo diferente, ao passo em que assumem compromissos perante o

Governo, tanto para propagar a cultura local quanto para divulgar a imagem do político que os ajudou.

Assim, o Bumba meu boi, expressão musical, cênica e de dança, originário das classes baixas e das periferias, da cultura negra, perseguido e proibido, tratado como “caso de polícia”, acaba sendo apropriado por políticos e pelas elites, aceito e veiculado como autêntico símbolo da cultura estadual, representante máximo de uma cultura popular.

Num processo muito parecido com o que ocorreu com o samba – antes restrito às classes populares e circunscrito aos morros, transformado em símbolo de identidade nacional pelos militares –, o Bumba meu boi foi introduzido em outro circuito, modificando seu significado inicial. Tornou-se símbolo de identidade do Estado do Maranhão ao ser incorporado pelo mercado de bens simbólicos e apropriado por ações estatais.

Marcelino Azevedo, amo do Boi de Guimarães, importante representante da cultura negra no Maranhão e cujos integrantes são remanescentes quilombolas, conta sua experiência:

Quando eu me entendi, eu ainda conheci gente que foi escravo, as velhinhas já tavam velhinhas, mas elas contavam alguma coisa. A gente novinho deixou na memória. [...] Já brincavam, mesmo escravos. O Boi nessa época não era como agora. Ele era reprimido e era proibido de brincar em algumas partes, em praça... Eles brincavam mais era no quilombo, eram tratado como baderneiro. É muito relativo isso. Depois, de uns tempos que eles [as elites locais] foram se acostumando e até quando eu comecei a brincar Boi [década de 50] eles já chamavam pra brincar na porta deles. Mas antigamente era um outro patamar. Hoje, não. O Boi tem que ser mais sofisticado. O vestiário dos brincantes tem que ser mais sofisticado. [...] Porque a gente saindo de Guimarães pra brincar um Boi aqui [na capital], a gente vai se encontrar com o turista (informação verbal)32.

O brincante reconhece que o Boi conquistou um novo espaço na cultura local, sendo não só aceito como requisitado pelas elites durante as festas juninas, mas também como representante do Estado do Maranhão em eventos oficiais nacionais e internacionais e como produto turístico que impulsiona a economia no Estado. No entanto, a moeda de troca para obter esse novo "patamar", foi "sofisticar" a brincadeira para atender as exigências do mercado turístico e dos compromissos políticos.

A apropriação do Boi pelo Estado, pelo mercado, pelas elites urbanas compõe um movimento de perdas e ganhos para a brincadeira. De um lado, "sofisticar" a brincadeira significa estar atento para novas questões como a renovação das indumentárias anualmente, a gravação de CD para expandir a circulação em rádios e outras cidades, cumprir horários

rígidos nas apresentações, transformar as "representações33" dos terreiros em espetáculos de palco nos arraiais urbanos, entre outros fatores que ressignificam as relações comunitárias e familiares, as solidariedades tradicionais dos brincantes. Enfim, a experiência do brincante com seu fazer cultural passa a ser reconfigurada por relações contratuais, pelo tempo e espaço urbanos, pela lógica da sociabilidade em massa. Do outro lado da moeda, está o novo "patamar" alcançado pelo Bumba meu boi, que pode ser traduzido na maior visibilidade que a manifestação adquiriu na sociedade local e nacional, na cultura como fonte de trabalho e de renda para a comunidade, na profissionalização dos sujeitos, na possibilidade de os grupos de Boi tornarem-se espaços estratégicos de acesso às políticas públicas do poder executivo, como é o caso dos Pontos de Cultura34. Essas ações se situam no processo de "emergência urbana do popular", citada por Martín-Barbero (2008).

Não seria um erro afirmar, aos moldes de Canclini (2011), que o Bumba meu boi tornou-se uma forma híbrida do popular, em que uma cultura tradicional, de origem popular, periférica e rural, une-se sincreticamente a diversas modalidades de cultura urbana e massiva.

O amo Marcelino reforça essa ideia de hibridismo no Boi ao explicar que para colocar em prática seus saberes e tradições - oriundos de uma experiência rural e subalterna -, tem que se preocupar também com questões financeiras, materiais, contratuais e de produção da cultura - oriundas da experiência urbana e massiva. Ele explica que, hoje em dia, só para transportar o seu grupo de Bumba-boi, formado por 88 membros, da cidade de Guimarães para a capital, precisa contratar dois ônibus em São Luís:

Eu pago 18 mil reais de carro pra trabalhar uma temporada [junina] pra mim, e ganho 35 mil [por 10 apresentações no São João do Governo do Estado]. Ainda têm os instrumentos, as roupas. Eu que mando fazer tudinho: seja bordar, fazer Boi, tudo é pago! Não dá! E ainda tem a comida do pessoal aqui (informação verbal)35.

Antes da divulgação do Boi como “produto turístico maranhense”, “símbolo oficial de identidade do estado”, processo iniciado nos anos 1960 no Governo de José Sarney e impulsionado nos anos 1990-2000, nos Governos de Roseana Sarney, os brincantes

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Expressão dos brincantes para designar a apresentação do Boi, que inclui encenação, música e dança.

34 De acordo com o Site do MINC: "Ponto de Cultura é a entidade cultural ou coletivo cultural certificado pelo

Ministério da Cultura. (...) uma base social capilarizada e com poder de penetração nas comunidades e territórios, em especial nos segmentos sociais mais vulneráveis. Trata-se de uma política cultural que, ao ganhar escala e articulação com programas sociais do governo e de outros ministérios, pode partir da Cultura para fazer a disputa simbólica e econômica na base da sociedade". Disponível em: http://www.cultura.gov.br/pontos-de- cultura. Acesso em: 29.01.2016.

produziam suas próprias roupas, que eram mais simples, e instrumentos; o Boi brincava no seu terreiro ou na porta da casa de alguma personalidade importante (empresário, político, entre outros) recebendo "cachaça e merenda" como pagamento.

Como analisou Peter Fry (1982, p.53), “a conversão de símbolos étnicos em símbolos nacionais não apenas oculta uma situação de dominação racial, mas torna muito mais difícil a tarefa de denunciá-la”. Observei esse processo em estudo anterior, no âmbito do mestrado (CARDOSO, 2008): a gestão cultural nos Governos de Roseana Sarney tendeu a se apropriar de expressões culturais populares, como o Bumba meu boi, no processo de produção de símbolos identitários para o Estado, o que contribuiu para a legitimação da governadora como a "protetora" da cultura popular do Maranhão.

Nesse processo, o caráter contestatório do Bumba meu boi foi atenuado por uma estratégia de poder que o elegeu como símbolo de identidade local. Essa eleição ressemantizou o auto do Bumba meu boi (que até início do século XX servia de denúncia, momento em que população podia falar das desigualdades): hoje, a crítica política raramente aparece nas toadas, cedendo lugar cada vez mais à exaltação das belezas naturais, do amor, do próprio grupo e de seu padrinho político-financeiro e a temáticas genéricas como preconceito, drogas, ecologia, futebol. Por essa estratégia, o poder instituído abrandou o caráter contestatório do Bumba meu boi, investindo em práticas discursivas (táticas) que transformaram o folguedo em símbolo de identidade maranhense.

Recorri às noções de estratégias e táticas, no sentido atribuído por Certeau (1998), para entender essas práticas presentes no cotidiano das culturas populares. Segundo este autor, a estratégia é uma ação planejada, o cálculo ou a manipulação das relações de forças que se torna possível a partir do momento em que um sujeito exerce poder sobre outro, em seu próprio domínio; consiste num um saber que sustenta e determina o poder de conquistar para si um lugar próprio. De modo distinto desenha-se a tática, caracterizada como um movimento possível dentro do campo de visão do inimigo, no espaço por ele controlado; trata-se de uma ação de contingência, aproveitando oportunidades e falhas do poder instituído; por isso mesmo é considerada "a arte do mais fraco" (CERTEAU, 1998, p. 100-101).

O amo Marcelino mostra ser consciente das estratégias criadas pela política e aciona táticas possíveis, como a adaptação das toadas, para também se apropriar daquilo que a política pode oferecer:

[...] porque se a gente criticar o Governo, aí que eles não dão nada pra gente. Ninguém quer receber crítica. Por exemplo, um candidato: você vai criticar um candidato, ele rebate logo... e aí Fulano de Tal fica excluído! A gente não pode fazer

uma crítica, muito embora merecendo, mas a gente fica com medo de ser retalhado, de sofrer consequência (informação verbal)36.

É preciso ressaltar que a apropriação que o Estado faz da cultura não é pacífica e faz parte das contradições de uma cultura política na qual, "enquanto o popular é suscitado, coloca-se o problema de dominá-lo em benefício da totalidade" (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 244). Mesmo não dando conta de encobrir as tensões e de apagar os sentidos de resistência (embora mais pulverizados) das formas culturais populares, o Estado busca legitimação na imagem do popular, enquanto o popular buscará cidadania no reconhecimento oficial (MARTÍN-BARBERO, 2008, p. 244).

Mais uma vez, a fala de seu Marcelino expõe esse jogo de interesses e disputas com o campo político:

Eu voto porque o Boi ainda sobrevive por causa do Governo. Aí eu voto com eles pra não dizer que eu tô contrariando ou que eu sou de um lado político e quero a ajuda deles. É ajudar pra ser ajudado, né? Assim que se faz hoje em dia. Depois de eles servidos, eles não olham pra Marcelino, dono do Boi de Guimarães (informação verbal)37.

Em se tratando de uma arena de disputa, diversos fatos importantes aconteceram a partir da década de 1970 e contribuíram para a popularização, divulgação e fabricação de um símbolo de identidade no Maranhão tendo como foco o Bumba meu boi: a apresentação do Bumba meu boi de Pindaré no Rio de Janeiro e gravação de seu primeiro disco, promovidas pelo Governo do Estado do Maranhão; a gravação do disco Bandeira de Aço38, com selo da Marcos Pereira e composições que incorporaram símbolos e elementos da cultura popular, especialmente do Bumba meu boi, impulsionando o movimento da Música Popular Maranhense (MPM), como a canção Boi da Lua, de César Teixeira39; o programa televisivo

Raízes, do radialista José Raimundo Rodrigues, cujo conteúdo baseava-se nos eventos da

cultura popular, com destaque para o Bumba boi; programas de rádio AM, que divulgam as

36 Entrevista concedida para esta pesquisa por AZEVEDO, Marcelino. São Luís: 09.10.2012. 37 Ibid.

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Este disco é apontado por pesquisadores locais (SANTOS, 2012; CAMPOS JUNIOR, 2014) como um marco para a produção musical autoral no Maranhão, que garante grande visibilidade à então nascente música popular e provoca maior aceitação da sociedade em relação a essa nova estética musical e às manifestações tradicionais da cultura popular, até então vistas como subculturas. O LP foi gravado por Papete em 1978, com composições de César Teixeira, Josias Sobrinho, Sérgio Habibe e Ronaldo Mota. Ver mais em: SANTOS, Ricarte Almeida. Música popular maranhense e a questão da identidade cultural. Dissertação de mestrado. São Luís: UFMA, 2012; CAMPOS JÚNIOR, José Alberto. Bandeira de aço: música, identidade e cultura popular no Maranhão. Dissertação de mestrado. São Luís: UFMA, 2014.

culturas populares, com música, agenda e entrevistas com os produtores; a expansão e diversificação do Boi de orquestra; a organização dos Bois em associações culturais e folclóricas.

De acordo com o dossiê do registro do Bumba meu boi como Patrimônio Cultural (IPHAN, 2011), a partir dos anos 90, de forma mais acentuada nos Governos de Roseana Sarney, houve um impulso no que se refere à promoção e divulgação dessa cultura com viagens de grupos para outros estados brasileiros e para o exterior, gravação de discos com as toadas dos Bumbas, premiação de representantes dos Bois como mestres de cultura e reconhecimento da manifestação por meio de leis nas esferas municipal, estadual e federal. De 1991 até 2009 cinco leis relacionadas ao Bumba meu boi foram aprovadas. A lei estadual 5.299/91 instituiu a toada “Urrou do Boi” (1972), composição de Bartolomeu dos Santos, o mestre Coxinho, do Boi de Pindaré, como o Hino Cultural e Folclórico do Maranhão, determinando a sua execução em todo evento cultural promovido em território maranhense.

Urrou do Boi

Lá vem meu boi urrando, subindo o vaquejador, deu um urro na porteira, meu vaqueiro se espantou, o gado da fazenda

com isso se levantou. Urrou, urrou, urrou, urrou meu novilho brasileiro que a natureza criou Boa noite meu povo Que vieram aqui me ver Com essa brincadeira Trazendo grande prazer Salve grandes e pequenos Este é meu dever

Saí pra cantar boi bonito pro povo ver São João mandou

Que é pra mim fazer Que é de minha obrigação Eu amostrar meu saber Urrou, urrou, urrou, urrou meu novilho brasileiro que a natureza criou Viva Jesus de Nazaré E a Virgem da Conceição Viva o Boi de Pindaré Com todo seu batalhão São Pedro e São Marçal E meu senhor São João Viva as armadas de guerra Viva o chefe da nação

Viva a estrela do dia São Cosme e São Damião Urrou, urrou, urrou, urrou meu novilho brasileiro que a natureza criou. Viva meu Maranhão Com toda sua fidalguia Um dos estados brasileiros Que o povo tem alegria

Existe educação, respeito e harmonia Quem visita o Maranhão

Vem cheio de alegria Sempre seja abençoada A terra de Gonçalves Dias Urrou, urrou, urrou, urrou meu novilho brasileiro que a natureza criou João Câncio tem um boi Que não conhece vaqueiro É caiado de preto e branco É tourino verdadeiro

Saiu pra passear no nosso país brasileiro Vem conhecer outro estado

Que tenha gado estrangeiro E desta viagem que veio Chegou até no Rio de Janeiro Urrou, urrou, urrou, urrou meu novilho brasileiro que a natureza criou Meu povo preste atenção Nos poeta do Maranhão Que canta sem ler no livro Já tem em decoração Todo ano mês de junho Temos por obrigação De cantar toada nova Em louvor de São João Viva a Bandeira brasileira Cobrindo a nossa nação Urrou, urrou, urrou, urrou meu novilho brasileiro que a natureza criou Por aqui vou saindo São horas d’eu viajar Adeus, até para o ano Quando eu aqui vortá Vou ficar ao seu dispor Os tempo que precisar A turma de Pindaré É pesada no boiá O conjunto é brasileiro E a força Deus é quem dá. Urrou, urrou, urrou, urrou meu novilho brasileiro que a natureza criou.

Em 2005, duas leis municipais, a de número 4.544/05 e a 4.487/05, homenagearam São Marçal definindo o dia 30 de junho também como o Dia do Brincante de Bumba meu boi e a mudança do nome da Avenida João Pessoa para Avenida São Marçal, no bairro do João Paulo, palco de um grande desfile de Bois do sotaque da Ilha no dia do santo, encerrando os festejos juninos. Em 2007, a Câmara Municipal de São Luís aprovou a Lei 4.806/07, que instituiu o Bumba meu boi como Patrimônio Cultural Imaterial da cidade de São Luís. E em 2009 o Bumba meu boi teve o seu dia nacional instituído no dia 30 de junho, pela lei federal número 12.103/09. Essas leis são reflexo das lutas por direitos culturais encabeçadas pelo movimento organizado do Bumba meu boi, mas também da articulação dos grupos junto a agentes políticos específicos (vereadores, deputados, prefeitos, secretários, governadores) que têm influência nos processos de decisão do que importa como político ou não.