• Nenhum resultado encontrado

Como registra Renato Ortiz (1985, p.70), os primeiros estudos sobre cultura popular no Brasil, influenciados por Gilberto Freyre e Câmara Cascudo, apontam para uma identidade entre cultura popular e folclore, uma concepção elitista que constitui uma forma de saber associada às camadas tradicionais de origem agrária.

Essa concepção, ainda presente em estudos sobre cultura brasileira, é considerada conservadora pelo autor e provém de um paternalismo cultural, já que valoriza a tradição como presença necessária do passado e considera o progresso, as inovações, as transformações da cultura como dessacralização da sabedoria popular (ORTIZ, 1985, p.70- 71). Em outras palavras, esta lógica entende que a cultura popular é um elemento a ser preservado, inalterado. Tal visão reforça a velha separação entre cultura erudita (das elites) e cultura popular (folclórica, do povo). Uma tendência em “folclorizar” e ver produtos culturais como exóticos, uma “museificação” do patrimônio cultural, posto de forma isolada das relações sociais.

Reivindicando um olhar mais atento às reconfigurações contemporâneas do popular, Canclini (2011, p. 206) aponta a necessidade de "examinar como se reformulam hoje, ao lado do tradicional, outros traços que tinham sido identificados de maneira inevitável com o popular: seu caráter local, sua associação com o nacional e o subalterno". O que quer dizer, em outras palavras, que as culturas populares não estão mais restritas às experiências

locais ou nacionais em tempos de mundialização cultural; nem restritas a uma experiência de classe social, atreladas às camadas oprimidas da sociedade, tendo em vista que:

os fenômenos culturais folk ou tradicionais são hoje o produto multideterminado de agentes populares e hegemônicos, rurais e urbanos, locais, nacionais e transnacionais. Por extensão, é possível pensar que o popular é constituído por processos híbridos e complexos, usando como signos de identificação elementos procedentes de diversas classes e nações (CANCLINI, 2011, p. 220).

Dando continuidade à discussão, Teixeira Coelho também propõe uma ressignificação no estudo do popular:

[...] não se trata mais apenas de formular programas de preservação de tradições arcaicas, supostamente inalteradas, mas de examinar as interações entre o folclore e os demais modos culturais modernos e determinar suas atuais funções na dinâmica cultural (COELHO, 1997, p.176).

Então, apesar de entender o folclore como depositário privilegiado da identidade de cada país e núcleo central de seu patrimônio cultural, o autor discorda que ele corra perigo diante dos meios de comunicação e de outros fluxos/circuitos culturais que promoveriam, segundo os folcloristas, "o processo final de desaparecimento do folclore", a desintegração desse patrimônio e a perda da identidade dos povos, como registrado na Carta do Folclore Americano, elaborada por um conjunto de especialistas e aprovada pela OEA (Organização dos Estados Americanos) em 1970.

A globalização, pondera Woodward (2014, p.21):

produz diferentes resultados em termos de identidade. A homogeneidade cultural promovida pelo mercado global pode levar ao distanciamento da identidade relativamente à comunidade e à cultura local. De forma alternativa, pode levar a uma resistência que pode fortalecer e reafirmar algumas identidades nacionais e locais ou levar ao surgimento de novas posições de identidade.

Realmente, os processos de globalização que alarmaram estudiosos nos anos 1980-1990, pela provável homogeneização mundial de bens materiais e simbólicos que causariam, levaram também a uma preocupação maior com as identidades locais, o que fez proliferar novos movimentos culturais e formas contra-hegemônicas de atuação política. Em outras palavras, apesar de o capitalismo ter estabelecido um novo quadro dentro do qual as culturas puderam coexistir, há espaço para as resistências.

Assim, uma percepção mais contemporânea, que considera as trocas culturais e os fluxos globais inerentes aos processos de mundialização da cultura, choca-se com o discurso

das culturas tradicionais apenas a ser conservadas, cuja autenticidade se encontraria no passado e para o qual qualquer intercâmbio aparece como contaminação.

Concordo com Martín-Barbero (2005, p. 68) ao afirmar que “não é possível ser fiel a uma cultura sem transformá-la, sem assumir os conflitos que toda comunicação profunda envolve”, implicando um entendimento de cultura popular dinâmico, antropológico e relacional.

Canclini (1983) também contribui para o debate chamando atenção para uma problemática no estudo da cultura popular de forma essencialista e universalizante, como se houvesse apenas uma cultura popular que abarcasse todas as práticas culturais oriundas do povo. O autor adverte que o termo, no singular, não dá conta de traduzir a multiplicidade de sentidos possíveis nos processos culturais gerados pelo povo, entidade que não é homogênea, como pressupõem as teorias do Estado-nação. Assim, não caberia determinar a cultura popular de um país, de uma região, mas identificar culturas populares que traduzem os sentidos da existência de grupos sociais, de coletividades.

A compreensão do popular e suas manifestações como "culturas híbridas" (CANCLINI, 2011) inseridas numa sociedade capitalista (CANCLINI, 1983) pareceu mais adequada para esta investigação, após pesquisar diversas concepções não consensuais sobre cultura popular contidas na bibliografia nacional e internacional.

Em seu estudo sobre a inserção das culturas populares no sistema capitalista, Canclini (1983) defende que uma investigação das culturas populares hoje não pode ignorar o processo de produção, circulação e consumo dessas práticas culturais.

A concepção romântica, protecionista, que considera uma “contaminação” o contato do popular com o desenvolvimento capitalista baseia-se numa autenticidade ilusória sobre a sabedoria do povo, uma pureza da cultura, como se “as culturas populares não fossem resultado da absorção das ideologias dominantes e das contradições entre as próprias classes oprimidas” (CANCLINI, 1983, p. 11). Ela já não dá conta de explicar as relações num contexto de globalização e cultura cada vez mais convergente. As trocas, fusões, apropriações e os hibridismos compõem a dinâmica do popular, num processo de negociação constante com culturas hegemônicas, com os meios de comunicação de massa, com o mercado, com o turismo, com a política, num movimento de perdas e ganhos, que não se confunde com aculturação, descaracterização ou mera manipulação.

Para ilustrar, o Bumba meu boi, associado às classes subalternas no Maranhão adquiriu o estatuto de Patrimônio Cultural do Brasil, em 2011, depois de muitas negociações

com as elites maranhenses: até a década de 1970, a manifestação era proibida de aparecer nas áreas centrais da capital, vista como “coisa de vagabundo” e “caso de polícia”. Hoje, recebe apoio financeiro do Governo do Estado, já tem leis que reconhecem sua importância na cultura maranhense, é constantemente agendado pela mídia e no período de São João é a atração mais esperada nos arraiais da capital, São Luís, pelas diversas classes sociais.

Claro que esse processo não foi pacífico. Os grupos de Bumba meu boi tiveram que se adaptar à lógica do mercado, do espetáculo, para agradar um público que não aceitava muito bem a sua estética “grotesca”. Houve várias ressignificações, mas o que se ganhou e o que se perdeu é resultado das demandas e necessidades dos sujeitos em relação num processo de disputa, que será retomado adiante.

Por outro lado, é possível avaliar que a concepção meramente mercadológica e turística, ao tratar a produção e as crenças populares como formas primitivas a serem superadas ou artefatos exóticos a serem somente comprados (CANCLINI, 1983, p.11) também não responde às inquietações deste estudo, porque ignora a relação entre os sujeitos e o valor simbólico desses bens culturais. Nesta acepção, a valorização do bem cultural corresponderia apenas ao seu potencial em gerar lucros. Cultura e natureza são vistos de forma igual, seja uma cerimônia de batizado de Bumba meu boi ou uma paisagem dos Lençóis Maranhenses, o passado se mistura ao presente, num espetáculo a ser fotografado, um bibelô a ser comprado.

Evitando tanto a visão romântica quanto a meramente mercadológica, a postura aqui assumida conjuga as noções do popular sugeridas por Martín-Barbero (2008, p. 268): “enquanto trama, entrelaçamento de submissões e resistências, impugnações e cumplicidades”; e por Canclini (1983, p.43-44), em que a cultura popular é resultado de uma apropriação desigual do capital cultural e elaboração específica das condições de vida dos setores populares em negociação, conflitiva, com os setores hegemônicos.

Interpretando o pensamento de Canclini, Carvalho (1995) afirma que o sistema capitalista possui vários mecanismos e estratégias pelos quais organiza a vida na sociedade contemporânea, dentre eles, a escola e os meios de comunicação, apontados como principais responsáveis pela difusão e afirmação das ideologias das classes dominantes. Os setores populares recebem influências também dessas estratégias oriundas das classes dominantes:

[...] tanto que suas expressões culturais são perpassadas por ideias e valores do saber das elites. Entretanto, a diferença de posições sociais leva também a decodificações e a elementos culturais distintos, o que resulta na produção pelos setores populares de formas próprias de manifestarem a perspectiva da sociedade em que vivem. Por

isso, a sua cultura possui, ao lado dos padrões culturais dominantes, um conjunto de ideias, intuições, valores emanados das suas próprias condições de vida, que podem exercer um senso crítico da realidade e se constituir num conteúdo específico (CARVALHO, 1995, p. 50).

Assim, é preciso sublinhar as contradições que permeiam o cotidiano dos sujeitos das culturas populares e marcam suas formas de expressão, implicando produções imprevistas com marcas de dominação e resistência, de assimilação e rejeição, de reprodução e criatividade, de reelaboração do mesmo e apropriação do outro, enfim, de hibridismos. A noção de cultura, aqui, equivale a um conjunto de processos sociais de produção, circulação e consumo da significação na vida social; é constituída por uma série de intercâmbios e mesclas de formas culturais, portanto, híbrida (CANCLINI, 2009, p. 41).

Trata-se de entender a cultura popular como uma categoria complexa, que representa sistemas de ideias, imagens, atitudes, valores, símbolos, heterogêneos e em permanente reelaboração, construídos a partir de relações internas na sociedade. A cultura popular é uma das formas pelas quais o povo dá sentido a sua existência. É, portanto, um processo de significação, expresso por manifestações artísticas, modos de ver, falar, comer, vestir, sentir, conforme é lido nas palavras do amo Marcelino Azevedo que, apesar das adversidades e dificuldades financeiras para manter a brincadeira do Bumba-boi, não abdica dela:

Eu continuo fazendo Boi porque isso tá no sangue de cada pessoa cultural; não é porque a gente faz Boi todo ano, que todo ano ele tem uma representação que preste. Mas a gente faz como o lavrador: se ele faz uma roça este ano e apodrece tudinho? Ele tem que fazer outra no outro ano, porque ele é lavrador! Ele não vai sair da terra dele pra ir pra outro canto fazer outra coisa. O que ele vai fazer? Roçar de novo! (informação verbal)40.

A fala do dono do Boi de Guimarães ratifica a justificativa religiosa e identitária da manifestação que lidera, apesar das preocupações e exigências que decorrem de uma forma contemporânea de brincar Boi, que assume uma interface mercadológica e espetacular.

Essa postura pode ser lida a partir de uma noção de identidade cultural cambiante e fluida, em que a identidade é uma questão de 'tornar-se'. Para Hall (2006, p. 43), a cultura é produção e o trabalho produtivo da cultura depende de um conhecimento da tradição, que por sua vez é (re)atualizada e dinamizada pelas gerações e pelos processos sociais, tais como as ações políticas e de mercado, a mídia, as novas tecnologias, a globalização. O que essas dinâmicas fazem é “nos capacitar, através da cultura, a nos produzir a nós mesmos de novo,

como novos tipos de sujeitos. Portanto não é uma questão do que as tradições fazem de nós, mas daquilo que nós fazemos de nossas tradições” (HALL, 2006, p. 43).

De acordo com Woodward (2014) essa percepção não nega que a identidade tenha um passado, mas defende que ao reivindicá-la, os sujeitos a reconstroem, transformando também o passado que seria parte de uma "comunidade imaginada".

Ao ver a identidade como questão de 'tornar-se', aqueles que reivindicam a identidade não se limitariam a ser posicionados pela identidade: eles seriam capazes de posicionar a si próprios e de reconstruir e transformar as identidades históricas, herdadas de um suposto passado comum (WOODWARD, 2014, p.29).

Afirmar que os sujeitos que brincam Boi compartilham uma identidade cultural não significa dizer, portanto, que comungam de um

eu coletivo ou verdadeiro que se esconde dentro de muitos outros eus - mais superficiais ou mais artificialmente impostos - que um povo, com uma história e uma ancestralidade partilhadas, mantém em comum. Ou seja, um eu coletivo capaz de estabilizar, fixar ou garantir o pertencimento cultural ou uma 'unidade' imutável que se sobrepõe a todas as outras diferenças (HALL, 2010, p. 108).

Essa seria uma visão essencialista de identidade cultural, contestada por Hall. O autor propõe um entendimento estratégico e posicional de identidade que interessa a esta análise. Para ele:

É precisamente porque as identidades são construídas dentro e não fora do discurso que nós precisamos compreendê-las como produzidas em locais históricos e institucionais específicos, no interior de formações e práticas discursivas específicas. Além disso, elas emergem no interior do jogo de modalidades específicas de poder e são, assim, mais o produto da marcação da diferença e da exclusão do que o signo de uma unidade idêntica, naturalmente constituída, de uma 'identidade' em seu significado tradicional - isto é, uma mesmidade que tudo inclui, uma identidade sem costuras, inteiriça, sem diferenciação interna" (HALL, 2014, p. 109-110).

Nesse jogo de poder e disputas, os sujeitos são diferentemente posicionados, em distintos momentos e lugares, de acordo com os papéis sociais que assumem, ou seja, eles têm diversas identidades que são acionadas em variados contextos sociais. Então, a noção de identidade adotada neste estudo é de um processo, uma produção nunca acabada, são "pontos instáveis de identificação ou sutura, feitos no interior dos discursos, da cultura e da história. Não uma essência, mas um posicionamento (HALL, 1996, p. 70).

Por constituir um posicionamento, a identidade é relacional. Por isso, não pode ser compreendida fora de seus sistemas de significação - a cultura e seus sistemas simbólicos. É nesses espaços que adquire sentido.

Quando dizemos que pertencemos à mesma cultura significa que compartilhamos praticamente os mesmos mapas conceituais e, por isso mesmo, construímos sentidos ou interpretamos o mundo de maneiras bem parecidas, apesar das diferenças individuais e subjetivas de cada sujeito que partilha desse "sistema de representação". Para Stuart Hall (1997, p.5), sistema de representação "consiste em diferentes formas de organizar, agrupar, arranjar e classificar conceitos, e em estabelecer relações complexas entre eles". Desse modo, são os sistemas de representação que permitem a comunicação entre os sujeitos de uma mesma cultura.

Todas as relações sociais têm que ser “representadas na fala e na linguagem para adquirir significado” (HALL, 2006, p. 170). A representação, portanto, significa usar a linguagem para dizer algo com sentido sobre o mundo ou para representá-lo de maneira significativa para as outras pessoas (HALL, 2010).

Dessa maneira, é possível afirmar que os sujeitos pertencentes ao universo do Bumba meu boi constroem códigos, classificações e sentidos próprios, a partir de seus sistemas de representação. Embora façam parte da sociedade maranhense, recebam informações midiáticas, interajam com outros circuitos comunicacionais, estabeleçam relações com o turismo e com a política, os sujeitos que integram o Bumba meu boi possuem vínculos comunitários muito fortes e um estilo de vida bastante influenciado pelas demandas dessa prática cultural (o ciclo anual da festa), que em alguns casos é estabelecida também por laços familiares e religiosos, fatores que geram características muito específicas. Para analisar esse universo, portanto, é necessário acessar e compreender os sentidos desse grupo social.

Ao mesmo tempo, é preciso estar atento para o fato de que os sistemas de representação e os sentidos são estabelecidos sempre de forma processual e dinâmica. Esse cuidado pode evitar interpretações meramente essencialistas da cultura. Conforme alerta Hall (2006), a cultura constitui um conjunto de significados que integram práticas sociais, num processo contínuo de formação de identidades. O significado que se atribui em qualquer experiência semiótica não pode ser fixado definitivamente, a experiência humana se ressignifica continuamente. Assim, “sempre há o ‘deslize’ inevitável do significado na semiose aberta de uma cultura, enquanto aquilo que parece fixo continua a ser dialogicamente reapropriado” (HALL, 2006, p. 33).

Considerando tanto a relativa estabilidade dos sistemas de representação de um grupo social, quanto a circulação dinâmica de significados, é permitido afirmar que o Bumba meu boi, bem como outras práticas culturais populares, materializadas em dança, música,

indumentárias, festas modificam-se também segundo os sentidos que os sujeitos constroem a partir das mudanças sociais, econômicas, políticas, tecnológicas. Constituem, sob essa ótica, identidades fluidas e cambiantes.

A arte e a cultura já têm a grande tarefa de traduzir o que está dentro de nós e entre nós permanece incompreensível, defende Canclini (2011, p. XL), o que deveria liberá- las da "missão 'folclórica' de representar uma só identidade".

O cenário cultural contemporâneo não é mais formado por níveis ou compartimentos estanques que separam a cultura erudita da popular e de massa, a científica da literária, a artesanal da industrial, a étnica arcaica da tecnológica de ponta, a identitária da globalizada, mas pelo sistema do hibridismo cultural.

"A palavra hibridação aparece mais dúctil para nomear não só as combinações de elementos étnicos ou religiosos, mas também a de produtos das tecnologias avançadas e processos sociais modernos ou pós-modernos" (CANCLINI, 2011, XXIX). A hibridização ou hibridação refere-se ao modo pelo qual modos culturais ou partes desses modos se separam de seus contextos de origem e se recombinam com outros modos ou partes de modos de outra origem, configurando, no processo, novas práticas. A cultura popular pode ser pensada a partir desse ponto de vista, sendo resultado de tensões e negociações entre os sujeitos.

No Bumba meu boi, as mudanças e hibridações acontecem em decorrência de vários processos de negociação com a política, com a mídia, com a urbanização e o deslocamento das comunidades rurais para zonas urbanas.

O Bumba-boi passa a ser incorporado em função de um identidade regional que tem nas manifestações populares a fonte de uma nova identidade regional que não seria mais a da "Atenas Brasileira"41, construída no projeto político de José Sarney como Governador do Maranhão. A justificativa cultural da Atenas Brasileira cede lugar à cultura popular no Governo de Roseana Sarney (1995-2002; 2009-2014), que buscou se legitimar no campo das manifestações populares, o que intensificou o jogo de disputas e de trocas do Bumba meu boi com o campo político, acirrando o cenário de captação de recursos da cultura popular junto à política. Como situa o pesquisador Conceição:

A partir daí, se montam os grandes arraiais na cidade e o Boi vai pro palco. Quando ele vai pro palco, ele vai se adaptar também à lógica do palco, o que não é só uma questão midiática, porque o próprio cotidiano dos brincantes vai mudando com essa

41 O projeto político do governador teria a missão de retomar a “prosperidade” econômica e cultural do

Maranhão, remontando a um passado de glórias, nos campos literário e político, quando São Luís teria ganhado a alcunha de "Atenas Brasileira".

adaptação, vai traduzindo a experiência. Antes, o Bumba-boi dançava numa roda, mas com a urbanização e por conta do jogo político, ele assume uma outra lógica (informação verbal)42.

Conceição comenta outros aspectos que atuam para a atual configuração do Bumba-boi:

O Bumba meu boi é uma experiência que nasce na zona rural e depois se desloca pra zona urbana. Muitos grupos vieram com a migração, eram famílias do interior que vieram pra capital e o Boi acompanhou essas famílias, que vieram morar nas periferias de São Luís. É o caso dos Bois de zabumba da Fé em Deus e o Boi de Leonardo, originários de Guimarães... É um primeiro tensionamento, essa relação do rural com o urbano. Essa mudança de local vai dificultar acesso a materiais, o material que é utilizado para produzir o Boi começa a mudar, e alguns Bois vão ficar brilhosos, porque vão buscar outros materiais. Alguns vão se encantar e se identificar com Escolas de Samba, aí vão buscar novos materiais pra dar novo sentido à brincadeira, porque eles trouxeram a brincadeira, mas o lugar deles mudou (informação verbal)43.

As brincadeiras vindas do interior misturam-se às novas demandas urbanas e àquelas manifestações que já existiam na capital, gerando diversas negociações, inclusive com as elites e com o poder público. A formação de identidades culturais, como destaca Stuart Hall (1997, p. 88-89), perpassa um processo de “tradução”, que:

(..) descreve aquelas formações de identidade que atravessam e intersectam fronteiras naturais, compostas por pessoas que foram dispersadas para sempre de sua terra natal. Essas pessoas retêm fortes vínculos com seus lugares de origem e suas