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Trilhando tantas narrativas sobre o Bumba meu boi, escolho começar este percurso pela obra literária de Josué Montello, que me inspira por meio da bela imagem de uma noite de São João sendo festejada em ruas e praças da São Luís do século XIX, em seu livro Os tambores de São Luís (1975):

- Tem muito boi na rua, a noite tá bonita...

Na Praça da Alegria, no Largo de Santiago, no Largo de Santo Antônio, no Largo do Quartel, estrondavam as matracas, as zabumbas e os maracás, em redor do boi cintilante, que rodopiava e saltava, com seus enfeites de fitas coloridas, as suas capas de veludo, e a cabeça do dançador por baixo do focinho de veludo negro. De repente o compasso das matracas se acelerava, e uma toada nova irrompia, cantando

15 Geralmente, a Saudação acontece após à Licença ou o Cheguei, na sequência de apresentação do Bumba meu

boi. No entanto, para alcançar a coerência de sentido proposto neste capítulo, a Saudação foi antecipada, encaixando-se entre o Guarnicê (texto introdutório) e o Lá vai (texto de fundamentação teórica), a partir daí, o texto segue a sequência proposta no Auto do Bumba meu boi.

16 Os sotaques são estilos ou ritmos diferenciados no universo do Bumba-boi do Maranhão. Constituem formas

a morte ou a ressurreição do boi, enquanto dançavam os vaqueiros, o amo, o Pai Francisco, a Mãe Catirina, o doutor, os índios e os tocadores, por entre o faiscar dos besouros e dos busca-pés. Iriam assim noite adentro, repetindo o auto primitivo, de que ninguém conhecia a origem exata, até caírem exaustos de cachaça e de sono, nas margens das estradas, nas calçadas das ruas, no banco das praças (MONTELLO, 1975, 259-260).

A obra conta a história do negro Damião, que andava pelas ruas desertas de São Luís, numa noite enluarada, lembrando fatos de sua vida e, consequentemente, construindo uma narrativa sobre o Brasil de 1838 a 1915. Durante a narrativa, o autor destaca em muitos episódios a presença já pungente das manifestações culturais populares, tais como Bumba-boi, Tambor de crioula e cultos afro-brasileiros na São Luís desse período.

Nesse trecho do livro, Josué Montello descreve a forte presença do Bumba meu boi em noites de São João no século XIX. Nesse período, a prática já era muito popular entre os maranhenses oriundos das camadas subalternas, especialmente negros (escravos e alforriados), mulatos e mestiços. Hoje, o Bumba meu boi é considerado o maior símbolo cultural do Estado do Maranhão, não só protagonizando romances da literatura nacional, como agendando pautas para a mídia brasileira e também adquirindo legitimidade no campo acadêmico.

A força e a simbologia dessa manifestação na cultura maranhense são demonstradas, entre outras coisas, pela sua abrangência em grande parte do território estadual, constituindo traço identitário de diversas comunidades: são 253 grupos de Bumba meu boi no Estado do Maranhão, segundo dados da Secretaria de Cultura do Maranhão – SECMA. E a quantidade real de grupos é ainda maior, porque esse número se refere somente aos Bois cadastrados no órgão em 2014. Os Bumba-bois são as principais atrações culturais nos arraiais17 da capital durante o período junino, mas o ciclo do Boi nas comunidades de origem (confecção de indumentárias e instrumentos, ensaios, rituais de batismo e morte do Boi, produção de CDs etc.) ocorre o ano inteiro, tornando-se uma atividade cotidiana dos brincantes.

Para o antropólogo Sérgio Ferretti (2011, p.19), “o Boi é a maior festividade da cultura popular local e atrai grande número de participantes, envolvendo suas vidas durante boa parte do ano”. Ou seja, fazer Bumba meu boi no Maranhão não se limita a se apresentar

17 Um dos significados do vocábulo arraial é “lugar de festas populares”, originado do adjetivo real (século XIV

arayal, arreal), “acampamento do rei” (Dicionário Etimológico Nova Fronteira da Língua Portuguesa, 1986). Em outra ocasião, comparo os arraiais a espaços de reprodução das relações de poder através de rituais: o Governo do Estado, e de forma personalista a Governadora Roseana Sarney, padroniza tais espaços e passa a ser o promotor das festas. Neles, são realizadas mis en scènes que atualizam e reforçam estruturas de autoridade, separando quem tem poder e quem não tem. Conferir em: CARDOSO, Letícia. O teatro do poder: cultura e política no Maranhão. (dissertação de mestrado). São Luís: UFMA, 2008.

nas festas de São João, mas significa pertencimento, representa compartilhar uma visão de mundo, em que a arte se confunde e se mescla com o próprio cotidiano dos atores dessa prática cultural.

Mas essa percepção do Bumba meu boi como elemento significativo da nossa cultura é recente. Nem sempre foi assim. Em vários episódios do aludido romance, Josué Montello retratou o descaso e a arrogância da elite urbana maranhense em relação ao Bumba meu boi, principal forma de diversão do povo. A ficção baseou-se na vida real.

Como informa Sérgio Ferretti (2015, p. 14), "As referências ao Bumba Meu Boi localizadas até agora no Nordeste datam de meados do século XIX, geralmente relacionadas com reclamações e pedidos de providências da política contra a perturbação da tranquilidade pública".

Por muito tempo, o Bumba meu boi sofreu preconceito e foi marginalizado na sociedade local. Nascido na capital e no interior entre populações simples, de mãos calejadas e pés descalços, por isso, considerado pelas elites maranhenses “coisa de vagabundo, coisa de preto, caso de polícia” foi impedido pelas autoridades policiais de acontecer nas áreas nobres e centrais da capital até meados dos anos 70 do século XX. Essa realidade foi documentada em 1920 pela Portaria do Chefe de Polícia de São Luís, conforme registra a pesquisadora Mundicarmo Ferretti (2015, p. 22):

Publico, para conhecimento de quem interessar possa, que é expressamente proibido tocar bombas no perímetro urbano, fazer brincadeira de 'Bumba Meu Boi', bem assim como tocar caixa do 'Divino Espírito Santo'. Publique-se e cumpra-se. São Luís, 11 de maio de 1920. Raymundo Furtado da Silva (Delegado Geral) (Diário Oficial - nº 126, p. 10, 07/06/1920 - Arquivo Público de São Luís do Maranhão).

Associada a negros e pobres, a manifestação recebe duras críticas e retaliações não só do poder político-administrativo quanto da imprensa. Cascudo (1984) relata que o primeiro registro do Bumba meu boi na imprensa brasileira se deu em 1840, em Recife, num artigo do padre Miguel do Sacramento Lopes Gama, em seu periódico "O Carapuceiro". Nele, o Bumba meu boi é descrito de forma preconceituosa e pejorativa:

De quantos recreios, folganças e desenfadados populares há neste nosso Pernambuco, eu não conheço um tão tolo, tão estúpido e destituído de graça, como o aliás bem conhecido BUMBA-MEU-BOI. Em tal brinco não se encontra um enredo, nem verossimilhança, nem ligação: é um agregado de disparates.

Um negro metido debaixo de uma baeta é o boi; um capadócio enfiado pelo fundo dum panacu velho, chama-se o cavalo-marinho; outro, alaparado, sob lençóis, denomina-se burrinha; um menino com duas saias, uma da cintura para baixo, outra da cintura para cima, terminando para a cabeça como uma urupema, é o que se

chama a caipora; há além disto outro capadócio que se chama pai Mateus. O sujeito do cavalo marinho é o senhor do boi, da burrinha, da caipora e do Mateus.

Todo divertimento cifra-se em o dono de toda esta súcia fazer dançar ao som de violas, pandeiros e de uma infernal berraria o tal bêbado Mateus, a burrinha, a caipora e o boi, que com efeito é animal muito ligeirinho, trêfego e bailarino. Além disso o boi morre sempre, sem que nem para que, e ressuscita por virtude de um clister, que pespega o Mateus, cousa mui agradável e divertida para os judiciosos espectadores.

Até aqui não passa o tal divertimento de um brinco popular e grandemente desengraçado, mas de certos anos para cá não há BUMBAMEU-BOI que preste, se nele não aparece um sujeito vestido de clérigo, e algumas vezes de roquete e estola, para servir de bobo da função. Quem faz ordinariamente o papel de sacerdote bufo é um brejeirote despejado e escolhido para desempenhar a tarefa, até o mais nojento ridículo; e para complemento do escárnio, esse padre ouve de confissão ao Mateus, o qual negro cativo faz cair de pernas ao ar o seu confessor, e acaba como é natural, dando muita chicotada no sacerdote (LOPES, M. apud CASCUDO, 1984, p. 427).

Marques (1999, p. 54) registra que é dessa forma que o Bumba meu boi é apresentado pela primeira vez como notícia18. Em outro relato sobre o surgimento do folguedo, Cascudo (1972, p. 194-196) destaca as influências marcantes do negro e do indígena, evocando o branco como alvo de críticas e ridicularização, verdadeira metáfora da miscigenação complexa que originou o Brasil:

[...] o bumba meu boi surgiu no meio da escravaria do nosso país, bailando, saltando, espalhando o povo folião, suscitando grito, correria, emulação. O negro, que desejava reviver as folganças que trouxera da terra distante, para distender os músculos e afogar as mágoas do cativeiro nos meneios febricitantes de danças lascivas, teve participação decisiva nessa criação genial, nela aparecendo, dançando, cantando, enfim, vivendo. Os indígenas logo simpatizaram com a 'brincadeira', foram conquistados por ela e passaram a representá-la, incorporando-lhe também suas características. O branco entrou de quebra, como o elemento a ser satirizado e posto em cheque pela sua situação dominante.

Como destaca Sanches (2003), o auto do Bumba meu boi origina-se como uma festa em que os setores mais pobres da sociedade invertem suas posições sociais e colocam em situações hilariantes e de desconforto aqueles que representam e personificam o poder vigente. Assim, a aversão da elite maranhense ao Bumba meu boi pode justificar-se por esse elemento contestatório, que contrariava os interesses da sociedade aristocrática e opressora da época. A análise de Carvalho (1995, p. 37) reforça esta ideia:

[...] o bumba meu boi era uma das brincadeiras prediletas dos escravos no Brasil que, colocados à margem da sociedade, desafogavam no folguedo sua agressividade e o seu protesto. Isto era visto pelas autoridades como baderna, atentado à ordem pública , daí as perseguições e proibições sof ridas por essa manifestação. O seu

18 Para Rodrigues (2001, p. 99), as notícias são "fatos dignos de nota", aqueles fatos representados

discursivamente que ganham destaque ou visibilidade social. "O acontecimento jornalístico irrompe sem nexo aparente nem causa conhecida e é, por isso, notável, digno de ser registado discursivamente".

caráter de sátira e de reivindicação era difícil de ser tolerado ou permitido, pois trazia à tona as contradições presentes na realidade brasileira.

Enfrentando as adversidades, o Bumba meu boi constrói uma história que atravessa três séculos, permeada de alegrias, encantamentos, irreverências, conflitos, violências e resistências até chegar aos nossos dias sendo considerado “Patrimônio Cultural do Brasil” (título atribuído pelo Conselho Consultivo do Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional – IPHAN, no dia 30 de agosto de 2011).

A manifestação é descrita por Câmara Cascudo como “o primeiro auto19 nacional na legitimidade temática e lírica e no seu poder assimilador constante e poderoso” (CASCUDO, 1972, p. 195-196). Para o pesquisador, o Nordeste é a sua região de origem no Brasil, remontando à época colonial, mais precisamente ao século XVII, durante o "Ciclo do Gado". Marques (1999, p.75) informa mais detalhes sobre essas origens:

Apesar de estar ligado ao Ciclo do Gado, o folguedo nunca teve sua procedência confirmada, em função de sua diversidade originária. Alguns autores alegam que o Bumba-meu-boi foi uma adaptação feita pelos escravos negros, índios e mestiços, a partir do teatro catequético dos Jesuítas herdado, por sua vez, da tradição espanhola e da portuguesa de se encenarem peças religiosas de inspiração erudita, mas destinadas ao povo para comemorar festas católicas nascidas da luta da Igreja contra o paganismo.

Essa tese é reforçada pelo fato do Bumba-meu-boi utilizar a mesma tática do teatro religioso dos Jesuítas juntando ao folguedo lendas religiosas; rituais indígenas; danças africanas; adereços, instrumentos e discursos dos brancos, numa fantástica audácia técnica experimental. Um sincretismo específico que misturou aspectos místicos e religiosos para formar um cenário próprio e ser um meio privilegiado de comunicação oral dos índios, escravos, crioulos, mamelucos e mestiços nos primeiros tempos do Brasil colonial, com uma linha editorial definida por um tom reivindicativo e de crítica social de costumes, expressada na narrativa produzida e reproduzida do seu roteiro simbólico.

De acordo com essa versão sobre a origem do Bumba-boi, o folguedo teria sido levado para as outras regiões, do extremo Norte ao Sul do país, para se tornar o "auto nacional por excelência", como definiu Câmara Cascudo (1972). Assim, ao espalhar-se pelo país, esse auto popular assumiu nomes, ritmos, formas de apresentação, indumentárias, personagens, instrumentos, adereços, enredos e temas diferentes.

Embora essa versão seja a mais propagada e aceita no Maranhão, não há consenso entre os pesquisadores maranhenses sobre a real origem da brincadeira. Como defende Azevedo Neto (1983, p.13):

19 O auto é uma encenação de origem medieval, apropriada pelas culturas populares, com uso de expressões

Ah, o Boi!... O tempo se encarregou de esconder seus inícios. De sua origem nada se sabe e tudo o que se possa dizer não passará de suposições ou de pretenso e duvidoso conhecimento. Não há registros anteriores e os mais velhos informantes apenas repetem: 'quando me entendi já encontrei Boi brincando assim'.

Para o pesquisador, relacionar o surgimento do Bumba meu boi ao ciclo do gado no Nordeste é incorreto porque a manifestação existe em outras regiões brasileiras e também em outros países, ainda que de formas diferentes. Ele informa que "o acontecimento de um arremedo de Boi dançando no centro de um círculo de pessoas que tocam, cantam e dançam é universal. Em razão disto, não se pode determinar o 'onde' e, consequentemente, o 'quando'" (AZEVEDO NETO, 1983, p. 13).

A partir de diversas fontes (REIS, 2008; MARQUES, 1999; LIMA, 1982), apresento as principais designações atribuídas ao folguedo em nosso território. No Pará e no Amazonas, a festa é comemorada também em junho e denominada Boi-bumbá, com a realização, neste último estado, do Festival Folclórico de Parintins, que ganhou visibilidade nacional; em Pernambuco, festeja-se o Boi no período natalino, com um grande número de personagens e enredo bem diferente do maranhense, sendo chamado Boi-calemba ou Bumbá; no Rio Grande do Norte e em Alagoas, costuma ser chamado de Bumba meu boi; no Ceará, usam os nomes Boi de Reis (para celebrar o Dia de Reis, 6 de janeiro), Boi Surubim ou Boi Zumbi; na Bahia, ganha várias designações: Boi Janeiro, Boi Estrela do Mar Grande, Dromedário e Mulinha-de-Ouro; em Minas Gerais e Rio de Janeiro surge simplesmente como Bumba ou Folguedo do Boi; no Espírito Santo, aparece novamente o Boi de Reis; em São Paulo, tem o Boi de Jacá de Pindamonhangaba, a Dança do Boi em Ubatuba e apenas Boizinho em algumas cidades; no Paraná e em Santa Catarina, existe o Boi de Mourão ou Boi de Mamão; e no Rio Grande do Sul falam em Bumba, Boizinho ou Boi Mamão.

Chamado de Bumba meu boi, Bumba-boi ou simplesmente Boi pelos maranhenses, no Maranhão, essa festa apresenta características singulares, adotando um conteúdo ritualístico próprio, diversificando seus estilos e criando novas formas de apresentação, a partir do gosto popular.

Marques (1999) explica que nestas terras o folguedo criou um roteiro com a criação do auto do Boi, a construção de personagens, as lendas que ligam o Boi a São João Batista e a D. Sebastião, a narração do ciclo ritualístico, a produção das toadas20 e as apresentações em público, elementos da tradição oral, resultado das heranças trazidas pelo processo de colonização do Boi como auto popular.

Com o passar dos séculos, elementos das comunidades negras rurais, reelaborados através de séculos de contatos com a presença indígena e uma anterior história de trocas e opressões com o ibérico colonizador, teriam sido traduzidos e atualizados na identidade do Bumba meu boi no Maranhão, com práticas específicas de teatralidade, dança, paródia, envoltas na musicalidade e conduzidas pela fé em seus mais amplos significados.