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2. A CONSERVAÇÃO RESTAURAÇÃO EM XEQUE

2.2 AS QUESTÕES LEVANTADAS PELA ARTE MODERNA E

2.2.4 Aspectos legais

Desconsiderar o fato de o artista estar vivo em um processo de restauro, atitude muito comum entre restauradores acostumados a trabalhar com obras antigas, pode implicar em sérias consequências, uma vez que obras com valor de contemporaneidade

286 CABANNE. Op. cit., 2008, p.130. 287 Idem, p.131.

Raquel Kogan

São Paulo, SP, Brasil, 1955

Sem título

Pirógrafo sobre papel Coleção particular

são protegidas por leis federais que objetivam garantir a sua fruição de acordo com o proposto pelo artista. A lei n. 9.610, de 19 de fevereiro de 1998, sobre a questão do direito autoral é muito clara no Capítulo II, Dos Direitos Morais do Autor:

Art. 24. São direitos morais do autor:

(...) I – o de reivindicar, a qualquer momento, a autoria da obra

II – o de ter seu nome, pseudônimo ou sinal convencional indicado ou anunciado, como sendo o do autor, na utilização da obra.

III – O de conservar a obra inédita.

IV – o de assegurar a integridade da obra, opondo-se a quaisquer modificações ou à prática de atos que, de qualquer forma, possam prejudicá-la ou atingi-lo, como autor, em sua reputação ou honra;

(...) VI – o de retirar de circulação a obra ou de suspender qualquer forma de utilização já autorizada, quando a circulação ou utilização implicarem afronta à sua reputação e imagem.

(...) § 1º Por morte do autor, transmitem-se a seus sucessores os direitos a que se referem os incisos I a IV.

§ 2º Compete ao Estado a defesa da integridade e autoria da obra caída em domínio público.

Art. 26. O autor poderá repudiar a autoria de projeto arquitetônico alterado sem o seu consentimento durante a execução ou após a conclusão da construção.

Parágrafo único. O proprietário da construção responde pelos danos que causar ao autor sempre que, após o repúdio, der como sendo daquele a autoria do projeto repudiado. Art. 27. Os direitos morais do autor são inalienáveis e irrenunciáveis.

O direito moral foi estabelecido entre as nações soberanas, em 1886, na Convenção de Berna e, é administrado, desde 1967, pelo World Intellectual Property

Organization (WIPO), uma agência das Nações Unidas.288

No caso do direito brasileiro, ele reconhece tanto o direito de atribuição (Art. 24- I) quanto o de integridade (Art. 24-IV). Isto significa que o artista pode reivindicar, a qualquer momento, a autoria do trabalho assim como contestar caso considere que a obra foi modificada, descaracterizada ou exposta de forma que se sinta atingido em sua honra e reputação. A lei possibilita, portanto, que ele recorra a soluções legais caso considere que seu trabalho não foi bem restaurado.289

Segundo o Guia Brasileiro de Produção Cultural 2010-2011:

As infrações aos direitos morais do autor são aquelas que, além de prejudicar sua imagem e reputação, lhe doem no coração, por isso o caráter de sua avaliação é subjetivo. Ver sua criação atribuída a outra pessoa, alterada de forma inaceitável,

288 GARFINKLE, Ann et al. Art Conservation and the Legal Obligations to Preserve Artistic Intent. In: Journal of the American Institute for Conservation, 36:165-79, 1997.

publicada de forma que lhe ofenda a reputação pode, sem dúvida, representar ofensa aos direitos morais do autor, que pode pleitear do ofensor uma reparação por danos morais.290

Os direitos morais, segundo a Convenção de Berna, permanecem com o artista independente dos direitos financeiros, ou seja, quando uma obra é vendida o direito financeiro, é transferido, mas não o direito moral. Em outras palavras, pode-se dizer que se transfere o direito material e não o imaterial. Garfinkle (et al)291 comenta que este foi um dos motivos dos Estados Unidos ter se recusado a assinar a Convenção de Berna até o ano de 1989.

A legislação brasileira estabelece que o artista, enquanto estiver vivo, deterá todos os direitos morais de autor e, diferente da legislação americana na qual este existe somente enquanto o artista estiver vivo, após a sua morte este se estende aos seus sucessores pelo período estabelecido por lei para começar a vigência do domínio público, ou seja, setenta anos após a morte do artista.

Consciente da problemática que pode advir para os restauradores, o Guidelines

for Practice-Professional Conduct, do AIC (1994), estabelece no Art. 3, sobre Leis e Regulamentos:

Os profissionais de conservação devem estar cientes das leis e regulamentos que podem ter uma influência na atividade profissional. Entre essas leis e regulamentos estão aquelas relativas aos direitos dos artistas e suas propriedades, saúde ocupacional e segurança, material sagrado e religioso, objetos escavados, espécies ameaçadas, restos humanos e bens roubados.292

Procurando fornecer maiores esclarecimentos, o AIC informa, em anexo, que os conservadores-restauradores devem procurar conhecer as leis locais, estaduais e federais, assim como os regulamentos, para evitar ações e processos judiciais e, como prática mínima, devem respeitar as leis e regulamentos aplicáveis às suas práticas específicas. Para tanto recomenda as seguintes práticas:

O profissional de conservação deve manter-se informado das leis e regulamentos aplicáveis, especialmente aquelas que se referem a conservação e citadas na literatura profissional

290 OLIVIERI, Cristiane; NATALE, Edson (org.). Guia Brasileiro de Produção Cultural 2010/2011. São Paulo: Edições Sesc, 2010, p. 121

291 GARFINKLE, Ann et al. Op. cit., loc cit.

292 Informação disponível em: <http://www.conservation-

O profissional de conservação deve procurar aconselhamento de um advogado ou autoridade competente a respeito das leis e regulamentos aplicáveis.

(...) O profissional de conservação devem estar cientes e respeitar as cartas não governamentais e demais documentos reconhecidos que têm uma influência sobre as atividades profissionais. (...).293

Nos Estados Unidos, está se tornando uma prática comum, os conservadores- restauradores, solicitarem aos artistas, por escrito, o consentimento e a renúncia dos direitos morais antes de qualquer intervenção. No Brasil, esta preocupação inexiste porque os profissionais, quase que em sua maioria desconhecem a lei, sua abrangência e seus prováveis desdobramentos.294 De toda forma, a lei existe e claramente altera as relações entre o artista, ou seus descendentes, e os profissionais que trabalham diretamente com as obras, seja restaurado, expondo ou guardando.

No que concerne à restauração de obras de arte modernas e contemporâneas, o restaurador deve ter ciência que qualquer alteração na constituição material da obra que altere a transmissão ou fruição da mensagem nos moldes desejados pelo artista deve ser feita de comum acordo com estes ou, no caso de morte deste, seus descendentes. Somente estes podem requer judicialmente o direito moral, não os diretores de museus, curadores, galeristas, proprietários, colecionadores, etc. Por outro lado, devido à fragilidade, aos problemas de conservação que estas obras apresentam e aos aspectos subjetivos do significado de dano e degradação nestas, alguns países já começam a refutar os direitos morais em obras como, por exemplo, da Arte Povera.295 Segundo Thomas Dreier, nenhum problema teria se o artista e o proprietário, não se incomodassem com as alterações na obra, o que normalmente não ocorre, para ele:

Podemos ou não ir tão longe a ponto de afirmar que as mudanças são intencionadas pelos artistas, então elas são parte integral do trabalho e não podem, por isso serem estabilizadas, pois, neste caso, a estabilização pode ser “prejudicial à honra do artista”? O mais provável é que as cortes nacionais estariam inclinadas a proteger o legítimo interesse do proprietário em preservar o objeto material de seu direito legal. Mas o que fazer exatamente quando o proprietário sabe, desde o início, que o objeto adquirido não foi feito para durar? 296

293 Idem, ibidem.

294 Fato constado pela reação dos conservadores-restauradores em palestras que a autora preferiu no qual abordava o tema. A primeira vez que a autora colocou a problemática em público foi no II Seminário

Nacional de Patrimônio Cultural: Conservação e Restauração no Século XXI, realizado em 2008, na cidade de Ouro Preto.Título da apresentação: A Conservação no Centro Cultural São Paulo. A reação dos restauradores foi de total incompreensão e descrença.

295 DREIER, Thomas K. Copyright aspects of the preservation of nonpermanent Works of modern art. In: CORZO, Miguel Angel (org.), op. cit., 1999, p. 65.

Pode-se perceber a importância, em se trabalhando em uma instituição, do trabalho interativo das áreas. Deveria fazer parte da documentação, gerada pelo setor de catalogação, um documento, assinado pelo artista, renunciando aos seus direitos morais sobre a obra, isto não elimina os direitos autorais, mas viabiliza que as intervenções de restauro fossem feitas em segurança e sem gerar ônus para estas.