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Reflexão sobre os conceitos clássicos da conservação-restauração

2. A CONSERVAÇÃO RESTAURAÇÃO EM XEQUE

2.2 AS QUESTÕES LEVANTADAS PELA ARTE MODERNA E

2.2.5 Reflexão sobre os conceitos clássicos da conservação-restauração

Os conceitos que regem a restauração começaram a ser elaborados com a carta de Atenas, mas tem sofrido modificações e se readequando constantemente as novas necessidades. Existe uma séria controvérsia por partes dos autores tanto na classificação como na interpretação destes.

O conceito de reversibilidade, por exemplo, ainda que tenha sido, por muito tempo, defendido pelos restauradores, trata-se de uma utopia. Qualquer profissional que atue diretamente sobre um objeto sabe, sem necessitar de uma reflexão muito profunda, que é impossível reverter os tratamentos e retornar a obra ao estado anterior à intervenção. Segundo Smith:

Ainda que legiões inteiras de restauradores proclamam aderir-se ao princípio da reversibilidade, todos os restauradores o violam, Os restauradores nunca alcançaram, e nunca alcançarão, a reversibilidade total!297

No que ele tem razão, pois, tentativas desta natureza normalmente criam um terceiro estado, que normalmente é diferente do “original” e do anterior a tentativa.

Justamente pela própria incoerência do princípio ele vem sendo substituído por removibilidade, retratabilidade, estabilidade e mínima interferência.

O princípio de estabilidade, assim como o de reversibilidade, também é uma ilusão. Tudo o que é material inevitavelmente se degrada e muda de aparência, perde a exatidão. Acreditar na estabilidade dos materiais é ter uma fé irracional na capacidade da ciência. A estabilidade dos materiais, mesmo aqueles fabricados especialmente para área de conservação e restauro e que, portanto, possuem uma inalterabilidade e

297 SMITH, R.D. Reversibility: a questionable philosophy (1999). In: MUÑOZ VIÑAS, Salvador.

durabilidade diferenciada, depende diretamente dos fatores extrínsecos, ambientais, ao quais estes serão submetidos.

O princípio da mínima interferência levanta questões de ordem mais subjetivas pois, embora esteja assentado no conceito que toda intervenção fragiliza o objeto e por isso deve ser evitada, não define claramente seus limites o que possibilita múltiplas interpretações e questionamentos. Mínima intervenção para quem? Para o objeto ou para o restaurador? A mínima intervenção que um objeto necessita é igual para todos os profissionais? Mínima intervenção sob quais condições? A mínima intervenção que requer uma obra mantida em local inadequado é a mesma que requer outra acondicionada em local adequado? Para Chris Caple, a “mínima intervenção deve ser definida para um determinado objeto em um determinado período em um determinado conjunto de condições.”298 Embora o princípio não consiga responder com clareza a estas questões, é um dos mais mencionados em todos os códigos de ética.

O princípio da legibilidade, por estar associado à compreensão e consequentemente à leitura da obra de arte, também pode ser considerado um conceito subjetivo, por mais objetiva que seja a sua descrição, pois depende da capacidade de compreensão de um indivíduo ou grupo. O que para as obras de arte modernas e contemporâneas pode ser complexo uma vez que nem todos possuem os códigos que permitem o acesso a correta leitura da obra. Segundo Muñoz Viñas: “a legibilidade a que fazem referências as teorias clássicas da Restauração não pode ser a que depende da capacidade leitora do sujeito.”299

Além disto, como já mencionado, na nova produção, a alteração na legibilidade de uma obra pode ocasionar a potencialização de sua fruição e, portanto, não deve ter sua “leitura” original restituída, pois esta foi substituída por outra mais significativas para seu autor. No caso das obras de arte modernas e contemporâneas, é o artista, quando vivo, que deve definir se determinado dano ou interferência tornou a obra mais legível, dentro da ideologia na qual foi criada, ou se impossibilitou ou descontextualizou sua compreensão. Qualquer atitude que priorize a compreensão da obra desconsiderando o contexto no qual ela está inserida e a propriedade intelectual do artista é eticamente e moralmente incorreta.

298 CAPLE, Chris. Conservation Skills, Judgement, Method and Decision Making. Londres: Routledge, 2000. p. 65.

Para Muñoz Vinãs, a legibilidade na restauração é compreendida como a seleção de um estado de legibilidade sobre os demais:

(...) ao restaurar uma imagem se restitui parte de uma legibilidade perdida, porém ao mesmo tempo se eliminam outras legibilidades. Se restitui uma possibilidade de leitura em detrimento de outras. Uma obra de arte, ou melhor, um objeto de Restauração, é um palimpsesto: uma sucessão de textos que se sucedem sobrepondo-se mutuamente. Quando se restaura, se elege um destes textos sobre os demais. Não se reconstitui a legibilidade do objeto, se privilegia uma de suas possíveis leituras em detrimento de outras. 300

Embora a legibilidade esteja diretamente relacionada com a atividade de restauração, pois é esta que tornará a obra “reconhecível” para o público, deveria ter seu conceito também estendido para todos os demais níveis em que ocorra esta interação, ou seja, a exposição, por exemplo.

Quando um museográfo desenha uma exposição e expõe as obras em contextos outros, muitas vezes criativos, e não a contextualiza para o público pode estar tornando ilegível a obra, da forma com que foi concebida, e criando uma terceira obra. Foi o que aconteceu, por exemplo, na exposição Cadavre Exquis, realizada no Centro Cultural São Paulo (CCSP), em maio de 2010, onde os curadores optaram por expor a obra sem

título (vinheta), do artista J. Carlos, dentro da gaveta de um criado mudo dos anos cinquenta; obrigando o público, para ter acesso à obra, a abrir a gaveta. Se, por um lado, este jogo de “esconde e descobre” trás uma proposta interessante, principalmente para o público alvo da exposição, as crianças, por outro cria outra obra. Aliás, pode-se dizer que o que ocorreu, nesta exposição específica, foi uma apropriação de diversas obras do acervo para criar uma instalação de autoria da curadoria e museografia, não muito diferente das ações propostas pelos artistas Iñarras e Genilson com as obras do MAC, nos anos de 1970.301

De toda forma o conceito de legibilidade dá muitas leituras, pois depende da capacidade de leitura do observador e, portanto, está diretamente ligado ao contexto sociocultural do presente histórico em que este se encontra.

O princípio da distinguibilidade, embora continue sendo basilar da restauração desde que foi mencionado em 1931, na Carta de Atenas, deve ser considerado também um conceito subjetivo. Quem deve distinguir as partes não originais adicionadas em

300 MUÑOZ VIÑAS, Salvador. Op. cit., 2005, p. 117.

uma intervenção? Quem distingue qual o grau de distinguibilidade? De toda forma, quando se analisa os anais de congressos, nacionais e internacionais, ou quando se visita museus, torna-se claro que este não é um princípio normalmente seguido por restauradores de obras de arte. As integrações pictóricas feitas em afresco talvez sejam as que mais o respeite, devido a própria natureza deste tipo de obra religiosa.

Se muitas vezes este princípio não é utilizado para as obras academicamente construídas, ele se torna abstruso quando aplicado em arte moderna e contemporânea como, por exemplo, nos monocromos, nas pinturas concretas ou em obras sobre papel como as monotipias de Mira Schendel, os metaesquemas de Hélio Oiticica e as obras de Iran do Espírito Santo. Deve-se considerar que este princípio, muitas vezes, é diametralmente oposto à intenção do artista. Além disso, obras com as características das citadas, perdem a legibilidade e fruição com qualquer ruído ou interrupção que ocorra em sua manifestação estética.

É evidente a importância dos princípios éticos para que as intervenções se realizem dentro de limites que protejam a obra de arte em toda a sua complexidade, mas também, é evidente o caráter subjetivo e a total inadequação, de muitos destes, a nova produção artística. O restaurador deve, mediante uma avaliação histórico-crítica, estabelecer a melhor forma de proceder diante do novo cenário buscando harmonizar os conflitos em escolhas pautadas em profunda reflexão.