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2. A CONSERVAÇÃO RESTAURAÇÃO EM XEQUE

2.2 AS QUESTÕES LEVANTADAS PELA ARTE MODERNA E

2.2.1 A intenção do artista

O restaurador de obras de arte moderna e, mais precisamente os de arte contemporâneas, tem uma vantagem que nem sempre considera em sua tomada de decisão, que é o fato do artista provavelmente estar vivo e ter uma posição concretamente propositiva na salvaguarda de sua obra.

Segundo Heinz Althofer, diretor do Restaurierungszentrum de Düsseldorf:

Nos dias de hoje não basta mais conhecer os materiais e dominar as técnicas do restauro para fazer um trabalho correto. É necessário também penetrar profundamente no universo intelectual, na filosofia do artista, porque de outra forma o mesmo ponto de partida do restauro seria incorreto. No final das contas, são sempre usados os mesmos materiais e as mesmas técnicas para pintar madonas, imperadores e socialistas: fundo, superfície, cor, verniz, enquanto a ideia que antecede a representação tem sempre influenciado muito pouco nos matérias empregados. Atualmente, na arte contemporânea, são os mesmos materiais que são expressões da subjetividade artística.

268 ESCOBETO, Helen. Work as process or work as product: a conceptual dilemma. In: CORZO, Miguel Angel (org.). Op. cit., 1999, p. 56.

Não se trata somente de simples consideração teórica, análoga, por exemplo, a questões do retoque neutro ou com tratteggio, mas da premissa da importância central, porque se não a leva em consideração a obra não será destruída somente em sua existência física, mas também naquela espiritual.269

Picasso e Braque, por exemplo, eram inflexíveis quanto ao fato de que suas pinturas cubistas tivessem um acabamento fosco, não aceitavam, sob nenhuma circunstância que estas fossem envernizadas, pois consideravam que o verniz acentuaria as cores e eliminaria os contrastes, alterando em consequência a concepção original da obra.

No caso de algumas obras de Braque, o verniz provocaria um resultado ainda mais danoso. Nos trabalhos que ele denominou de poésie, por exemplo, intencionalmente enviou sinais confusos quanto às identidades dos objetos jogando arbitrariamente com a aparência dos mesmos, tornando fosco o que era brilhante e transparente o que era opaco. O contraste discreto, mas crucial para a fruição da obra em sua potencialidade, se perderia se a superfície fosse, por qualquer motivo, envernizada.270

John Richardson271 comenta que, quando escreveu o artigo, em 1980, sobre a retrospectiva de Picasso no MOMA, observou que os restauradores haviam involuntariamente arruinado a superfície das pinturas cubistas. As superfícies envernizadas das obras demonstravam mais o desejo de embelezar do que de entender a intenção do artista. Tanto as obras do MOMA como as de outros museus americanos e as de colecionadores privados que participavam da exposição, pontua Richardson, apresentavam a superfície avivada por uma restauração bem intencionada, mas historicamente ignorante.

Segundo William Rubin, Diretor do Departamento de Pinturas e Escultura do MOMA na época, este procedimento havia sido adotado antes de sua entrada no museu e antes de seus olhos serem abertos pelo próprio Picasso, quando este criticou o fato de terem envernizado um Cézanne. Rubin comentou ainda que, Picasso aproveitou a oportunidade para enfatizar que as pinturas cubistas eram muito mais vulneráveis a este

269 POLI, Francesco. In: CHIANTORE, Oscar; RAVA, Antonio. Conservare l’arte contemporanea. Milão: Mondadori Electa, 2005, p. 14.

270 RICHARDSON, John. Crimes against the Cubists. In: STANLEY PRICE, Nicolas et al. Historical

and Philosophical Issues in the Conservation of Cultural Heritage. Los Angeles: The Getty Conservation Institute, 1996, pp.185-192.

respeito; tanto que ele se recusava a assinar qualquer tela que tivesse sido limpa ou envernizada, alegando falta de reconhecimento da obra.

A descaracterização provocada por uma intervenção baseada em salvaguardar a obra para o futuro, desconsiderando as características estéticas desejadas e buscadas pelo artista, incorre em sérios erros conceituais. John Richardson explica que só teve consciência da extensão deste problema quando fez uma visita ao estúdio de Braque e uma pintura de guitarra, que havia sido assinada no verso – como era hábito dos cubistas – chegou da América para ser assinada na frente. Sobre o fato, ele comenta:

O horror do artista, com a condição de sua pintura recém-restaurada, era doloroso de observar. Olhe como os pretos saltam para você, ele suspirou. E de fato as linhas pretas que havia sido discretas agora sobressaiam – graças ao verniz brilhante – como pintura recente. Restauradores são surpreendentes, disse Braque, Eles transformaram minha

guitarra em tamborim.272

O artista Tony Cragg, por outro lado, não deseja se envolver com processos de restauração, pois considera que estas questões são pertinentes a outras áreas de conhecimento.273 Para ele esta atividade:

É tarefa do curador e do conservador encontrar soluções apropriadas para os problemas de conservação. O quanto será bem sucedido dependerá de seu profissionalismo. Algumas vezes eu vi meu trabalho em bom estado e outras em mau estado. As coisas são como são, eu não posso cuidar de tudo. Compare isto com uma avó que era bonita quando ela era jovem. Nós temos que aceitar que uma obra de arte envelhece, amadurece.274

A musealização não deveria implicar em mumificação ou em atitudes preservacionistas extremas, sem a devida reflexão. O artista Gianni Colombo comenta, por exemplo, que Sargentini, um grande galerista italiano dos anos de 1970, presenteou

272 Idem, ibidem.

273 BEERKENS, Lydia; BERNDES, Christiane. Interview Tony Cragg on conservation. In: HUMMELEN, IJSBRAND; SILLÉ, DIONNE (ed.). Modern Arte: Who Cares? The Foundation for the Conservation of Modern Art and the Netherlands Institute for Cultural Heritage, Amsterdam. Belgica: Snoeck-Ducaju & Zoon, 1999, p. 83.

a Galeria Valle Giulia, em Roma, com três trabalhos seus formados com lâminas de plexiglass presas em uma caixa, uma diante da outra:

(...) Estas lâminas possuem um corte (uma linha vertical, outra horizontal e duas diagonais) que pode refazer-se em qualquer lâmina. Como o plexiglas perdeu a sua transparência e apareceram algumas gretas que pareciam fazer parte da obra, propus substituí-las. Porem não me permitiram porque a obra entrou em um museu com este material e assim tem que se conservar. Eu creio que isto é má interpretação do rigor filológico. 275

A propósito da questão conceitual da troca do plexiglas ele comenta:

(...) Quando em uma obra a parte manual é fundamental para comunicar a mensagem, não se pode substituir nada. Porém em muitos casos isto não ocorre.

(...) Diria que quando o suporte de apresentação, seja este original ou não, não modifica a quantidade nem a qualidade da informação estética ou conceitual da obra, se pode realizar a substituição, oportunamente supervisionada, sem alterar a integridade da mensagem. É estúpido continuar considerando com princípios e velhos pontos de vista obras feitas com pontos de vista diferente. 276

Se não estamos respeitando a opinião dos artistas, estamos respeitando a de quem?

Segundo Ann Temkeim,277 vivemos em um tempo em que os museus, e obviamente seus profissionais, estão muito mais engajados com o público, e obviamente com o público futuro, do que com os seus artistas. Infelizmente a intenção do artista não ultrapassa a porta de entrada das instituições, o que facilita o trabalho dos profissionais, pois, segundo Adriano Baccilieri, “Talvez seja mais difícil trabalhar com algo que não tenha história, porem que é o reflexo de nosso presente”.278