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Aspectos relevantes da teoria piagetiana e seus contributos para a educação

QUADRO DE REFERÊNCIA TEÓRICO

2.3 Acerca da construção da inteligência e do conhe cimento

2.3.1 Aspectos relevantes da teoria piagetiana e seus contributos para a educação

Jean Piaget, famoso epistemólogo do século passado, nascido em 1896, em Neuchâtel, na Suiça, faleceu aos 84 anos, em Genebra, tornou-se mundialmente conhecido pela teoria que desenvolveu entre 1920 e 1980, na qual propõe um modelo de desenvolvimento da inteli- gência individual, em que se passa de estados de menor conhecimento para outros de maior conhecimento (César, 2000a). Os princípios epis- temológicos inerentes à construção da sua teoria são o construtivis- mo, o interaccionismo, o estruturalismo e o paralelismo entre funcio- namento biológico e funcionamento psicológico (César, 1994; Jesuíno, 1979, Perraudeau, 1996). Desenvolveu estudos relacionados com os factores de desenvolvimento cognitivo, tendo a sua teoria do desenvol- vimento contribuído para a construção de novas perspectivas no domínio da educação.

Piaget desenvolveu a sua teoria através de um método de inves- tigação que se designou por método clínico piagetiano, que implicava uma observação activa do sujeito, que designou de epistémico ou cog- noscente, com o qual estabelecia trocas verbais, a fim de poder aceder mais facilmente ao seu pensamento. Utilizou questões standard, como ponto de partida, que lhe permitiam seguir o pensamento das crian- ças, acreditando que os comentários espontâneos, por elas elabora- dos, se traduziam em pistas fundamentais para compreender o seu pensamento. Não se mostrou muito interessado em classificar as res- postas como certas ou erradas, mas sim em compreender o raciocínio lógico subjacente à elaboração das respostas apresentadas pelas crianças.

Para Piaget (1972, 1973a), o desenvolvimento é função de quatro factores: maturação biológica, experiência pessoal, interacções e

transmissão social, e equilibração. A maturação biológica é importante por se encontrar ligada ao sistema orgânico e neuroquímico, sendo regida pelo código genético, tendo um carácter hereditário, permitindo “a possibilidade a novas condutas as quais não se actualizariam senão houvesse interacção com os factores externos” (Jesuíno, 1979, p. 187).

A experiência ou exercício funcional do sujeito (César, 1994) possibilita o contacto com o mundo, os objectos e permite a manipu- lação do organismo em relação ao meio, podendo ser de dois tipos: experiência física ou lógico-matemática. A primeira permite ao sujeito aperceber-se das características dos objectos e a segunda gera um conhecimento independente das propriedades dos objectos (Jesuíno, 1979), sendo um factor essencial na consolidação dos esquemas ope- ratórios intelectuais.

A influência sociocultural permite a assimilação da organização da sociedade adulta, ou a construção de novas regras, valores e conhecimentos, através das interacções com o meio, permitindo “ao indivíduo a prática sustentada de determinadas competências e a rea- lização duma série de experiências potenciadoras ou inibidoras do desenvolvimento individual” (Canavarro, 1999, p. 35). Porém, para a teoria piagetiana, estes três factores de desenvolvimento, por si só, não permitem explicar o desenvolvimento individual. Daí que haja necessidade de uma estrutura abstracta que tenha por objectivo a manutenção de uma dialéctica interaccional entre os factores endóge- nos (maturação) e os exógenos (experiência e aprendizagem social), que se designa por equilibração (Piaget, 1973b), o que faz salientar a interrelação entre todos os factores de desenvolvimento individual. É a equilibração, concebida como um mecanismo de retroacção, que dá sentido ao próprio desenvolvimento.

Piaget é essencialmente conhecido pela teoria do desenvolvimen- to cognitivo que construiu, na qual afirma que as crianças raciocinam de formas diferentes, consoante a fase de desenvolvimento ontogenéti- co em que se encontram. Menciona que os indivíduos passam por uma sequência invariante de quatro estádios, que são qualitativamen-

te diferenciáveis: o sensório-motor, o pré-operatório concreto, o das operações concretas e o das operações formais. O termo invariante é usado na acepção de que ninguém pode “saltar”, em termos qualitati- vos, qualquer um dos estádios, ou reordená-los, pelo que mantêm uma coerência e ordem próprias. Assim, os estádios correspondem a descontinuidades, em termos qualitativos do funcionamento cognitivo, designados por desfasamentos verticais, existindo entre eles uma ordem rígida de sucessão e marcando as fases da construção das ope- rações mentais. Apresentam carácter integrativo, na medida em que as estruturas construídas em determinado estádio integram as estru- turas do estádio seguinte; e uma estrutura de conjunto, que se traduz numa multiplicidade de operações distintas que a criança é capaz de executar (Jesuíno, 1979; Perraudeau, 1996; Piaget, 1973a). Dentro de cada estádio, o desenvolvimento cognitivo traduz-se, fundamental- mente, em progressos quantitativos, designados de desfasamentos horizontais, em que os sujeitos são capazes de efectuar coisas diferen- tes, apesar dessas diferenças não terem repercussões em termos qua- litativos, pois são mobilizados os mesmos tipos de operações mentais. Há quem critique o conceito piagetiano de estádio por se debruçar apenas sob o aspecto cognitivo, não atendendo à totalidade dos aspec- tos psicológicos da criança. Contudo, devido à unidade de análise escolhida por Piaget, a opção metodológica parece ser coerente.

Piaget atribuiu limites de idade correspondentes a cada um dos estádios do desenvolvimento cognitivo, tendo sido fortemente criticado por essa associação, apesar de diversas vezes ter mencionado que os mesmos apenas serviam de referência a uma ordem de sucessão na construção das operações (Piaget, 1972). As idades não têm grande importância, já que é o meio que determina a idade em que se conclui determinada etapa do desenvolvimento, sendo fundamental a inexis- tência de quebra da sequência em que os estádios ocorrem (Lima, 1999). Assim, é a sequência e não a cronologia que têm importância, sendo os limites de idade estabelecidos meros indicadores do nível de desenvolvimento da criança.

O estádio sensório-motor caracteriza-se por um predomínio de acções motoras e de coordenação, sendo desenvolvidos mecanismos que põem em acção os diferentes órgãos sensoriais. No início deste estádio, as aquisições são mais rápidas e numerosas encontrando-se a criança num estado de indiferenciação entre o “eu” e o “mundo” que a rodeia – egocentrismo. Ao longo dos dois primeiros anos, ela constrói algumas noções fundamentais como a de permanência dos objectos, apercebendo-se que eles existem para além do sujeito, iniciando-se um processo de descentração. Na fase final deste estádio, que poderá ocorrer, por volta dos dois anos, dá-se a transição para níveis repre- sentativos, com o surgimento da função simbólica ou semiótica, em que a criança se torna capaz de diferenciar os significados dos signifi- cantes e que é composta pela imitação diferida, pelo jogo simbólico, pelo desenho, imagem mental e pela linguagem (Piaget, 1972).

No estádio pré-operatório, ocorre o desenvolvimento da função semiótica, nomeadamente através do aperfeiçoamento da linguagem. Caracteriza-se, ainda, pela incapacidade de realização de tarefas que apelem à utilização da noção de conservação e as acções interioriza- das ainda não apresentam reversibilidade, que é uma das característi- cas que distingue o pensamento da criança do pensamento do adulto, em que se revela naquela uma incapacidade para fazer, desfazer e refazer uma acção motora ou interiorizada. Esta discriminação em relação ao que a criança ainda é incapaz de realizar serviu de crítica à teoria piagetiana, já que os seus detractores o acusavam de ter carac- terizado o desenvolvimento de um modo negativo, ou seja, a teoria acentua as deficiências cognitivas da criança (Lourenço, 2002), em vez de salientar as potencialidades das operações mentais desenvolvidas. No entanto, Piaget, no decorrer dos anos 60, do século passado, atri- buiu características positivas a este estádio, que se desenvolverá até cerca dos 6 ou 7 anos: identidade, funções, correspondências, mor- fismos e implicações significativas (Lourenço, 2002).

No estádio das operações concretas, a criança passa a ter aces- so a três regras cognitivas: a identidade, que se completa; a negação e

a reversibilidade. Contudo, este nível só se manifesta na presença dos próprios objectos, sendo a criança capaz de efectuar raciocínios liga- dos à noção de conservação e transitividade, desde que presencie as transformações efectuadas sobre os objectos. Colocando-se-lhe os mesmos problemas, em termos hipotéticos, a criança mostra-se inca- paz de os resolver. Ainda neste estádio, que poderá estar concluído por volta dos 14 ou 15 anos, o jovem adquire progressivamente as noções de substância, peso e volume, acabando de construir as noções de tempo e espaço.

O estádio das operações formais é caracterizado pela possibili- dade do sujeito raciocinar sobre enunciados hipotéticos, permitindo- lhe o acesso à resolução de problemas que envolvem uma multiplici- dade de factores, sendo possível efectuar operações não directamente sobre os objectos mas sobre proposições. Este último estádio, que ini- cia o seu desenvolvimento, entre os 14 e os 15 anos, não apresenta o mesmo grau de universalidade dos anteriores na medida em que “por razões de deficiente estimulação intelectual, por parte do meio, pode suceder e sucede que o sujeito não consiga elevar-se a níveis formais” (Jesuíno, 1979, p. 122). A importância do raciocínio formal deve-se também ao facto de o sujeito poder criar um sistema de valores morais próprio, podendo adoptar outros pontos de vista, diferentes dos seus, sendo-lhe permitido “inserir-se socialmente de uma forma mais com- prometida e consciente” (César, 1994, p. 152). Para alguns críticos, Piaget parou o desenvolvimento cognitivo na adolescência, quando tudo leva a afirmar que o mesmo evolui na vida adulta, pelo que cla- maram pela existência de um estádio pós-formal. No entanto, Piaget referia que se tratava do último estádio em termos de construção de estruturas e não de conteúdo (Lourenço, 2002). Assim, parece que existe um pensamento formal emergente e outro elaborado, sendo vários os proponentes do estádio pós-formal com o desenvolvimento de uma cognição de carácter prático, meta-reflexiva e local.

Para Piaget, o desenvolvimento cognitivo envolve dois processos essenciais: assimilação e acomodação, considerados como invariantes

funcionais, ou seja, “funções que não variam ao longo do desenvolvi- mento e que o explicam” (Jesuíno, 1979, p. 90). A assimilação envolve a incorporação de novos factos ou situações numa estrutura cognitiva preexistente, ou seja, “é a integração de um elemento da realidade na gama e esquemas já construídos pela criança” (Perraudeau, 1996, p. 21). A acomodação implica que estruturas existentes se alterem para se interrelacionarem as novas informações, havendo uma tendência para que as estruturas cognitivas se adaptem, o que corresponde a uma alteração de esquemas já construídos, ou a criação de outros totalmente novos. Este processo de assimilação-acomodação é o mecanismo que permite a aprendizagem. Para Piaget (1973b), “a aco- modação solidariza-se assim com a assimilação e pode-se dizer, reci- procamente, que toda a assimilação é acompanhada por uma acomo- dação (...) não são duas funções separadas mas os dois pólos funcio- nais, opostos um ao outro, de toda a adaptação” (pp. 199-200).

A adaptação envolve um processo de balanceamento entre o sujeito e o meio, entre a assimilação e a acomodação. Quando uma criança se relaciona dialecticamente com um determinado objecto desconhecido, o desequilíbrio instala-se, provocando um conflito cog- nitivo, até que se encontre habilitado para assimilar e acomodar os novos conhecimentos, atingindo-se um novo equilíbrio. Durante o processo de desenvolvimento cognitivo de um indivíduo há um balan- ço de compensação entre a assimilação e a acomodação. A assimilação tende a fazer com que o objecto se adapte às necessidades do sujeito e a acomodação leva o organismo a adaptar-se à realidade, o que permi- te a sua sobrevivência. Para Piaget, só há aprendizagem se o aluno efectuou as acomodações respectivas, que o levaram a uma modifica- ção da sua estrutura cognitiva, sendo que só uma situação problemá- tica, que promova o conflito cognitivo, é passível de promover a apren- dizagem, tornando-se pois no “verdadeiro factor do desenvolvimento mental” (Perredeau, 1996, p. 83). É o conflito cognitivo, resultante do confronto entre a criança e o meio, que promove o desenvolvimento, permitindo que se estabeleça uma forma superior de equilibração,

resultante da relação entre assimilação e a acomodação. De acordo com alguns autores, como Tudge e Rogoff (1995), Piaget atribuiu tanta relevância ao papel da equilibração no processo de aprendizagem que concedeu menos importância à maturação, à experiência e à interac- ção social, já que ele concebe o meio primordialmente como sendo o meio físico, ao contrário de outros, como Wallon, que o concebem como um espaço de interacções e relações sociais (Berrocal, & Zabal, 1995).

No entanto, ao afirmar que o conflito cognitivo, condição neces- sária mas não suficiente para se produzir o progresso cognitivo, se estabelece por interacção entre a criança e o meio, Piaget acaba por atribuir um papel fundamental ao interaccionismo. Como nos refere Lima (1999), “esse processo de assimilação-acomodação é o mecanis- mo fundamental de modificação dos seres vivos (...) donde a impor- tância da interacção dos organismos (pessoas) na construção dos con- ceitos abstractos” (p.41, itálico no original). Verifica-se, pois, que os processos de interacção com o objecto (seja ele o conhecimento, um sujeito, ou um objecto) são fundamentais nos processos de aprendiza- gem e desenvolvimento. Desta forma, Piaget (1973a, 1973b), nega duas das explicações do funcionamento dos organismos: o inatismo, segundo o qual os organismos nascem com mecanismos de assimila- ção; e o empirismo, que defende que o sujeito recebe passivamente as informações provenientes do meio.

Apesar disto, há quem o acuse de hiperconstrutivista, termo associado ao apriorismo kantiano, que minimiza a influência do meio na construção das estruturas do comportamento (Lima, 1999; Perre- deau, 1996). Para Piaget, o sujeito epistémico é construtor e não con- templativo e passivo, pelo que o conhecimento se constrói na interac- ção indissociável entre o sujeito e o objecto. Assim, no processo de apropriação do mundo que o rodeia, os indivíduos devem agir sobre os objectos e é esta acção que lhes dá a conhecer esses mesmos objectos. Dando primazia ao papel activo que o sujeito deve ter na apropriação do objecto, no que se constitui como um primado fundamental da filo-

sofia construtivista da aprendizagem, “Piaget critica a escola tradicio- nal, por impor ao aluno determinadas tarefas que ele terá de desem- penhar, muitas vezes sem perceber exactamente o que faz, como faz, ou por que motivo faz daquela maneira” (César, 1994, p. 153). De fac- to, o construtivismo procede da interacção entre o sujeito e o mundo, demarcando-se de posições positivistas e empiristas sobre o conheci- mento. Dada a importância que atribui ao processo de construção do conhecimento e de apropriação do objecto, Piaget dá destaque à pos- sibilidade das interacções sociais poderem ser um mecanismo facilita- dor do desenvolvimento cognitivo:

“a criança torna-se cada vez mais apta à cooperação, a relação social sendo já aqui distinta da obrigação de que ela supõe uma reciproci- dade entre indivíduos sabendo diferenciar os seus pontos de vista. Na ordem da inteligência, a cooperação é a discussão dirigida objec- tivamente (donde esta discussão interiorizada, que é a deliberação ou a reflexão), a colaboração no trabalho, a troca de ideias, o contro- lo mútuo (...). É portanto claro que a cooperação está num ponto de partida de uma série de condutas importantes para a constituição e o desenvolvimento da lógica” (Piaget, 1978, p. 185)

Parece, assim, que numa fase final do seu trabalho, Piaget retoma a importância das interacções sociais no processo de desen- volvimento cognitivo. As discussões que podem surgir entre os sujeitos facilitam o processo de descentração e levam-no a colocar-se no papel do outro, o que pode gerar o conflito cognitivo, e a realizar auto-crítica e um reajuste de opiniões, levando à operacionalização do pensamen- to-raciocínio (Lima, 1999).

Assim, podemos afirmar que o modelo piagetiano do desenvol- vimento cognitivo é tripolar: inclui a dialéctica entre o sujeito e o objecto – interacção operativa; mas também a cooperação com o outro – interacção comunicativa; a propósito do objecto (Lourenço, 2002). As operações do sujeito sobre os objectos e a cooperação com outrem são duas condições complementares e igualmente necessárias à aprendi- zagem, já que

“os sujeitos nascem com potencialidades que vão, ou não, sendo actualizadas, cabendo ao meio social um papel crucial no seu desenvolvimento. Assim, se por um lado Piaget não nega a influên- cia de factores como a maturação biológica, a experiência pessoal e a equilibração, tão pouco esquece as influências das interacções” (César, 2000a, p. 16).

Estas referências não invalidam, no entanto, que Piaget tenha sido e seja fortemente criticado pelo papel menor que, dizem, atribuiu à função social do meio no desenvolvimento cognitivo da criança. Assim, há quem refira que ele minimizou o papel das interacções sociais ao afirmar que o meio se limita a acelerar ou a retardar a idade em que as crianças atingem determinados estádios de desenvolvimen- to, ou que as influências sociais na sua teoria se centram apenas na interacção da criança com o mundo físico (Tudge, & Rogoff, 1995). De facto, a teoria de desenvolvimento de Piaget não é uma teoria da socia- lização, conforme refere Lourenço (2002). Contudo, nunca negou que o meio social pode influenciar a velocidade de emergência das compe- tências operatórias para além de ter mencionado a importância da lin- guagem e das interacções no favorecimento da descentração do sujeito e a passagem, consequente, para o pensamento socializado.

A teoria piagetiana tem inúmeras implicações, em termos edu- cacionais. As actividades escolares deverão ser planeadas para facili- tarem a assimilação e a acomodação. As crianças necessitam de explorar, manipular, experimentar, questionar e procurar soluções para os problemas – o papel activo na construção dos conhecimentos é essencial. A aprendizagem deve interessar-se menos pelos produtos do que pelos processos, devendo ser atribuído um novo estatuto ao erro, conforme já antes tínhamos mencionado a propósito da filosofia construtivista. Piaget via os professores como facilitadores da aprendi- zagem, tendo como função guiar e motivar, estimular os seus alunos, ajudando a criança a desdramatizar os erros e a aprender com eles,

estimulando a aprendizagem num clima de auto-confiança e respeito mútuos.