1.2
Nós somos o que somos, não o que virtualmente seríamos capazes de ser. Iberê Camargo
Que consciência temos dos personagens que nos ocupam? Se pudéssemos ser outros, continuaríamos nós mesmos? Somos o mesmo mesmo para os outros, que somos para nós mesmos? Questões que permeiam a identidade, a alteridade e a existência, por vezes são específicas a outras disciplinas do conhecimento, sendo a Sociologia tantas vezes indiferente. No entanto, retomando a reflexividade agencial enquanto categoria conceitual a ser desdobrada, coloco em evidência o artista como artífice do artístico, sem que necessariamente esteja muito bem definido o que é ser artista. Esta evidência indefinida encontra ainda mais respaldo quando atenta-se para as diferenças que existem entre as inúmeras possibilidades de práxis do artístico. Ainda mais, considerando que
a ideia do artista (...) está sendo substituída pela constatação da posição deste em uma rede, na qual outros (curador, colecionador) ocupam lugares igualmente importantes (CATTANI, 2007, p.23).
Mesmo assim, mesmo existindo outros que juntamente com o artista ocupam lugares igualmente importantes na rede que estrutura o que vem a ser considerado artístico (quaisquer que sejam estes outros) porque ainda se dá tamanha importância ao artista? Talvez isto seja porque o artista ainda equaciona o ponto nodal entre o que nos acostumamos a chamar de obra artística e o contexto. Em todo caso, cada um destes que desempenham os mais variados tipos de ocupação, cada um com um tipo específico de inserção, todos estes também podem ser sujeitos de narrativas biográficas em suas trajetórias do artístico.
A narrativa (auto)biográfica tem significação sociológica como já apresentou Archer (2007)
e
apresenta-se como estratégia de pesquisa que permite uma inserção na forma como uma pessoa pensa e sente a própria experiência; como percebe o mundo em que vive; o que faz, diz, acredita e deseja; como percebe ser percebida por outros.
Esta (auto)percepção pode variar de acordo com a perspectiva da situação pois, como percebemos a nós mesmos, depende de onde estamos; como somos; para quem nos compomos; com quem nos identificamos; em quem reverberamos. Estas díspares sutilezas da existência são, por vezes, tão fugazes que resta saber justamente como é possível estruturar
os eventos da vida de alguém de modo a torná-los inteligíveis? Ainda mais: como conjugar
estes elementos com outros provenientes da rede de relações e significados dos quais esta pessoa faz parte? Uma forma de fazer isto é mediante a compreensão de que a história de vida de uma pessoa permite que sejam feitas considerações espelhadas sobre ela mesma e também sobre outros indivíduos bem como, sobre um momento histórico, uma determinada configuração social. Esta afirmação é ainda mais plácida quando consideramos que, atualmente, o artista é percebido muito mais como “propositor de situações sensíveis em que a experiência perceptiva está localizada no próprio corpo do espectador” (GOMES, 2006, p.170)
do que como um ser deslocado das cadeias de significação social já que a sua participação em determinados estilos de vida é marcada por limites em função do status simbólico de que desfruta. Para além de uma determinação,
a identidade do artista não mais se configura em simples problema de cruzamento de fronteiras (entrar e sair), mas sim enquanto delineadores de uma figura de espacialidade que acaba conduzida a vivenciar estes atravessamentos a partir de uma possível singularidade de inserção
(BASBAUM, 2006, p.235).
Talvez por isto, ao se afirmar que artistas elaboram sua subjetividade e por vezes estão
sujeitos (como qualquer um) a um processo mais amplo de socialização, afirma-se
simultaneamente, que o que caracteriza um artista não é (ao menos não tão somente) um dom,
uma qualidade extra-social ou incumbência cósmica. Existem mecanismos sociais de conformação da identidade do artista (DABUL, 2001)
que permeiam o aprendizado que em certa
medida são convivas de um com-mundo (Vide p.106). Este compartilhamento de possibilidades geralmente é compreendido em termos do conceito de geração em que as condições sociais que possibilitam uma determinada prática artística implica também
compreender a geração como um tipo particular de situação social (...) que restringe a uma gama específica de experiência potencial, predispondo-‐os a um certo modo característico de pensamento e experiência e a um tipo característico de ação historicamente relevante (MANNHEIM, 1982, p.72).
Fazer parte de uma geração implica compartilhar semelhanças e diferenças nas condições que permeiam um determinado momento histórico, seja em termos da exposição a determinadas oportunidades, seja em função de uma dinâmica própria das gerações envolvidas com outras gerações antecedentes e subsequentes. Assim, muitas vezes a opção de promover novas possibilidades e alternativas (ou resgatar estruturas anteriores) segue a compreensão de que em Artes “nenhuma forma é intrinsecamente superior à outra, o artista pode usar, igualmente, qualquer forma, desde uma expressão verbal (escrita ou falada) até a realidade física” (Le WITT, 2006, p.206). Em tantas palavras, estas semelhanças e diferenças destilam as existências de modo a compor as pessoas e com elas, seus problemas pungentes, suas vontades atuadas. Corroboram para o que significa ser artista, enquanto experiência coletiva de devir, em um processo mais ou menos formal (ou autodidata) de aprendizado da própria percepção e sensibilidade. Permite ainda compreender a subjetividade da poética e do contexto que estrutura a prática em dimensões da experiência que não necessariamente transparecem na poética, como sugere o seguinte depoimento
Minha entrada na universidade foi um desastre total, sobretudo nos primeiros semestres. Eu nada entendia: ditadura militar, sociologia, metodologia, movimento estudantil, materialismo dialético, drogas, aborto-‐ elétrico, Duchamp e música dodecafônica. Tive de me reinventar para poder sobreviver nesse novo mundo, pelo menos para mim. Vivenciava tensões profundas entre o que eu era e o que deveria ser. (...) Só conseguia ler os acontecimentos sob a ótica dos meus recalques. O sentimento de inferioridade e o comportamento paranoico me maltrataram bastante, recuei várias vezes. Não tinha consciência da realidade das barreiras (sociais, econômicas e intelectuais) que me separavam da vida brasiliense e universitária. A ingenuidade aumenta a sordidez da realidade, deixa a pessoa só e com uma imensa responsabilidade quanto ao possível fracasso e o aniquilamento da subjetividade. (...) Nessa altura eu não queria mais continuar o curso de história e ele, por vez, também não me queria. Aí alguém me disse: vai ao departamento de arte, lá é seu lugar. Até esse momento, eu desconhecia a arte como disciplina acadêmica. A ideia que eu tinha de artista e de arte era totalmente ligado à marginalidade, boemia e transgressão em todos os sentidos (...) Foi uma boa mudança: nova pausa, algum conforto psicológico e reencontro com minha subjetividade já bem machucada. Mas o encontro durou pouco; eu ainda vivia retraído com muita dificuldade de assimilar conhecimentos formais, que, para mim, eram absolutamente exóticos. A arte, vim a saber, já tinha os donos legitimados em várias histórias da arte e em grandes museus do mundo ocidental. Se eu ambicionasse ser chamado de artista eu teria que necessariamente aprender a pensar e fazer como eles. Recuei novamente (SIMÃO, 2012, p.105).
Retomo a importância das narrativas (auto)biográficas que me encantam justamente por escancararem uma subjetividade que acumula, por entre seus meandros, um campo semântico de sentimentos que muitas vezes não encontram lugar de respiro. Eventualmente, ao refletir sobre estas questões, fui tentada a elaborar uma tipologia. No entanto, esta tipologia de identidades e expectativas sociais do que significa ser artista confronta-se com o fato que
a condição de ser artista tem sido extremamente fluida, desde o abandono da artesania e virtuosismo como condições a priori para a produção da obra (encontramos ainda em Mário de Andrade uma insistência muito grande neste ponto) e sua inserção numa ordem econômica de mercado (sempre marcada por contradições e conflitos) – transformações que remontam ao início da era moderna – até as discussões acerca da morte do sujeito
(BASBAUM, 2006, p.235).
Ou seja: elaborar uma tipologia sobre o que é ser artista depende tanto dos interesses, quanto
da evidência dos fatos que se queira salientar. Depende também de um quando, já que o
artista não foi sempre percebido da mesma forma ao longo do tempo. Em todo caso, isso de elaborar uma tipologia pode ser uma forma de repetir dualismos e zonas de invisibilidade ou deiscência. Às vezes, o que realmente faz falta é uma tipologia da não-exemplaridade das formas sociais. Bem que queria fazer uma tipologia de perfis inadequados: artistas ingênuos, recalcados, iconoclastas, ridículos ou desdenhados. Com isto, devo confessar certa desconfiança quanto à própria possibilidade (ou pertinência) de elaboração de uma tipologia. Ao mesmo tempo, percebo a relevância desta maneira de formalizar conteúdos e posso citar como referência as categorias elaboradas por Becker (1976), que elenca como critério dos diferentes tipos de artistas os “comportamentos regulares que constituem a ação coletiva do mundo a que pertencem e dos quais dependem os resultados dessa ação” (BECKER, 1976, p.11).
Segundo o autor existiriam quatro tipos de artistas, que seriam: a. os profissionais
integrados que realizam trabalhos rigorosamente de acordo com as conformidades do cânone
de modo que suas conquistas ocorrem com relativa eficiência e facilidade, “restritos aos limites do que os públicos potenciais e a situação consideram respeitáveis” (op. cit., p.13); b. os inconformistas que percebem o mundo da arte como algo “tão inaceitavelmente restrito que acabam por não querer mais conformar-se com suas convenções (...) criam assim, sua própria rede de colaboradores, chegando a recrutar novos públicos” (op. cit., p.14-‐5); c. os
artistas ingênuos que seriam aqueles que provavelmente nunca fizeram parte do mundo
artístico, de modo a desconhecerem sistematicamente as suas realizações no entanto, executam processos que configuram estilos idiossincráticos que internalizam procedimentos próprios do artístico; e, d.
os artistas populares que não constituem uma comunidade artística propriamente dita, por não atribuir à sua produção o artístico em si. Importante destacar que esta tipologia explicita uma relação entre identidade e a inserção que o profissional tem no circuito das Artes. Diante disto e das particularidades das poéticas contemporâneas resta saber como elaborar uma tipologia que considere os comportamentos regulares de uma produção atual permeada por linguagens híbridas e práticas heterodoxas (que são a norma para além de um inconformismo gratuito)?