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Assim na terra como no céu

No documento guilhermemoreirafernandes (páginas 161-182)

4. A CENSURA DURANTE O REGIME MILITAR E A REPRESENTAÇÃO DAS IDENTIDADES HOMOSSEXUAIS NAS TELENOVELAS

4.2 A TRAJETÓRIA DOS PERSONAGENS HOMOSSEXUAIS NO CONTEXTO DA CENSURA MILITAR

4.2.1 Assim na terra como no céu

De acordo com informações dos livros publicados pela Memória Globo (2003, p. 24; 2010, p. 49) e em Nilson Xavier (2007, p. 145) a primeira representação de um personagem homossexual nas telenovelas globais foi em “Assim na Terra como no Céu103”, de autoria de Dias Gomes, dirigida por Walter Campos, e exibida de 20 de julho de 1970 a 23 de março de 1971, com 212 capítulos. Na trama, Rodolfo Augusto (Ary Fontoura) vivia um costureiro. Ismael Fernandes (1997, p. 142) apresenta o personagem apenas como “efeminado” e não como homossexual.

“Assim na terra como no céu” retratava o dia a dia da juventude de Ipanema, e as histórias dos amigos: Helô (Dina Sfat), Nívea (Renata Sorrah), Ricardinho (Carlos Vereza), Mariozinho (Osmar Prado), Verinha (Djenane Machado), Marcos (João Paulo Adour), Samuca (Paulo José), Joaninha (Susana Moraes) e Maria Lúcia (Aizita Nascimento). Dias Gomes, assim justifica a história e o cenário:

Uma crônica de um certo estilo de vida de um determinado grupamento humano da Zona Sul carioca – República de Ipanema, Território Livre do Leblon, Selva de Copacabana e adjacências -, com sua fauna conhecida de paqueras, vigaristas, boas- vidas, garotas-de-Ipanema e homossexuais. (GOMES, 1970, p.78 apud PIQUEIRA, 2010, p. 11)

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Enquanto escrevíamos essa parte do capítulo um fato nos chamou a atenção. O blog “Biscoito, Café e Novela” leva “ao ar” a trama “Assim na Terra como no Céu”, em roteiro de Toni Figueira, inspirada na telenovela de Dias Gomes (provavelmente por meio da adaptação literária de Norberto Natalício), tendo como cenário o Rio de Janeiro atual. Porém, na chamada de elenco, aparecem os nomes e fotos dos atores da trama da TV Globo. A chamada da telenovela, assim como os primeiros capítulos, pode ser consultada através do link: <http://biscoitocafeenovela.blogspot.com/search/label/ASSIM%20NA%20TERRA%20COMO%20NO%20C% C3%89U>. Acreditamos ser uma forma de nostalgia (e recepção) transmidiática, tema em voga nos estudos contemporâneos sobre as telenovelas e que permite perceber a migração e transformação de um produto em outras mídias, agregando, sempre que possível, novos elementos. Sobre telenovela e trasmídia recomendamos a obra LOPES (org.) 2011.

103 As informações sobre enredo de diálogos desta telenovela foram retiradas do livro “Assim na Terra como no

Céu”, uma adaptação literária da telenovela de Dias Gomes, realizada por Natalício Norberto. A Rede Globo não possui mais os scripts desta telenovela. Em contato com a família de Dias Gomes, a viúva Bernadeth Dias Gomes nos informou possuir os roteiros, mas não nos permitiu consultá-los. De qualquer forma, agradecemos a Renata Dias Gomes pela intermediação do contato.

O primeiro conflito da trama foi um desfalque de 20 milhões no caixa do banco de Oliveira Ramos (Mário Lago), pai de Helô, causado por Emiliano (Paulo Padinha), pai de Nívea. Oliveira Ramos havia dado o prazo de 48 horas para Emiliano repor o dinheiro. Desesperado, o pai de Nívea tentou se matar com um tiro no peito, contudo a bala se alojou acima do pulmão e ele logo ficou fora de perigo. Emiliano possuía 10 milhões e precisava, urgentemente, dos outros 10. Então, Nívea aceitou o convite de Renatão (Jardel Filho) para posar nua para uma revista estrangeira, com a ressalva de que estas fotos não chegariam ao Brasil.

Nesse ínterim, surge a figura de Padre Vítor (Francisco Cuoco), que vem trazer uma mensagem dos avós de Nívea. Mesmo comprometida com Ricardinho, a paixão dos dois é imediata. Vítor resolve largar a batina para viver seu amor com Nívea e ela procura romper com Ricardinho e recuperar as fotos com Renatão.

Nesse momento da narrativa, quando tudo parecia dar certo na vida de Vítor, Nívea é encontrada morta na praia por Zé Gregório (Adalberto Silva). Inicia-se então a investigação criminal. Diversos são os suspeitos que o delegado Zélio Fontoura (Urbano Lóes) interroga, entre eles Rodolfo Augusto, Ricardinho, Renatão, Oliveira Ramos e Helô.

A telenovela ainda apresentou outros grandes plots, como o casamento de Vítor e Helô; a aparição de Elisa (Maria Luiza Castelli), mãe de Helô, que estava internada em uma clínica de saúde a mando do ex-marido; o retorno da prisão de Leopoldo (Paulo Gonçalves), pai de Ricardinho, que havia matado o amante de sua esposa Danusa (Heloísa Helena); a luta de Renatão para conseguir a guarda da filha Carlinha (Carla Cavalcanti); o casamento do arrivista Samuca com a velha mexicana Consuelo (Estelita Bell).

Jurema (Arlete Salles), convencida que havia sido Ricardinho quem matara Nívea, se entrega à polícia e passa anos presa – Ricardinho sabia que Jurema não era a assassina, mesmo assim a deixou na prisão. O assassino de Nívea foi Mariozinho, filho do delegado

Fontoura. Tudo não passou de uma brincadeira. Ricardinho tinha combinado com Mariozinho de dar um susto em Vítor e Nívea, pelo rompimento de seu namoro. Contudo, o padre havia ido a São Paulo para deixar a batina. Mesmo sem Ricardinho (e o aval dele), Mário, ao ver Nívea sozinha, decidiu vingar-se dela. Após um tempo de discussão, Nívea começa a correr pela praia e se depara com um abismo. Quando Mário se aproximou, Nívea se desequilibrou e caiu.

Na adaptação literária realizada por Natalício Norberto (1971), encontramos algumas passagens sobre a personalidade e caracterização do personagem Rodolfo Augusto. Em depoimento ao delegado Fontoura sobre a morte de Nívea, o costureiro fala:

-Seu nome?

-Rodolfo Augusto Bittencourt. Bittencourt com dois “t”. -Com dois “t”… Profissão?

-Bem, seu delegado, eu sou funcionário público. Mas a costura é meu hobby. Fontoura se lembrava dele nos jornais, ou nas revistas.

-O senhor não venceu o concurso do Teatro Municipal no ano passado?

-Não, foi o Evandro de Castro Lima, aliás, uma injustiça. O senhor não se lembra da minha fantasia?

Fontoura não se lembrava. Era o “Mistério Amazonense” no qual Rodolfo Augusto usara trezentas vitórias-régias, duas cobras vivas, duas mil penas de pavão... No entusiasmo da descrição, Rodolfo levantou-se e desfilou para o delegado.

-Quando desfilei no Municipal, ficou todo mundo de boca aberta... Fontoura olhou detidamente para Rodolfo.

-Onde o senhor se encontrava na noite que Nívea Louzada foi assassinada?

Rodolfo colocou o dedo mínimo na testa, revirou os olhos onde se notava uma acentuada camada de rímel, e disse:

-No apartamento de Danusa Miranda, jogando buraco. (...) (NORBERTO, 1971, p. 57-58).

Em outro momento da narrativa, Rodolfo Augusto vai à delegacia, pois tinha lido nos jornais que a irmã Marisa Heden (Maria Pompeu) havia sido presa. Chegou elevando a voz em defesa da irmã. Mesmo assim

(...) o delegado pareceu se divertir com os trejeitos do costureiro, mas pediu ao detetive que trouxesse a mulher. Quando Jonas [Sólon de Almeida] saiu, perguntou a Rodolfo Augusto como ia a sua fantasia. – Vão todas bem. Felizmente consegui terminar a do Sírio Libanês: Sonho de um Beduíno (...) (NORBERTO, 1971, p. 85).

Outro momento em que se pode perceber a exaltação do personagem é verificado nas seguintes passagens: “(...) Rodolfo Augusto havia caído na piscina, empurrado por

Renatão. Estava a ponto de ter um chilique” (NORBERTO, 1971, p. 89-90) e “(...) Parado, na porta entreaberta, em vias de ter um chilique, estava Rodolfo Augusto, terrivelmente apavorado” (NORBERTO, 1971, p. 103).

Entretanto, outros momentos da obra nos fizeram pensar que Rodolfo Augusto não era um homossexual, mas sim um hetero ou bissexual efeminado – em conformidade com as propostas da estética camp e da permormatividade de gênero. Rodolfo Augusto conhece Maria Regina (Vera Ibrahim), uma jovem mulher que quer alçar um lugar ao sol. Um tempo depois, os dois começaram um romance: “(...) o namoro de Rodolfo Augusto pegou firme e deu até notícia nas colunas sociais. Por enquanto, só era um romance: Rodolfo Augusto in love. Mas, alguém já pensou se isso acabasse em casamento?” (NORBERTO, 1971, p. 146). E realmente, o matrimônio aconteceu: “(...) Rodolfo Augusto e Maria Regina se casaram com grande pompa, de acordo com os gostos da noiva e de Danusa [Heloísa Helena]” (NORBERTO, 1971, p. 174).

Não acreditamos que a união de Rodolfo Augusto com Maria Regina tenha sido por amor. Somos da opinião que isso tudo não passou de um “golpe publicitário” com o objetivo de colocar Maria Regina no estrelato, pois ela objetivava ser atriz, e promover Rodolfo Augusto, que adorava aparecer nas colunas sociais. Entretando uma dúvida surge na seguinte passagem: chocado com a morte de Ricardinho (Carlos Vereza), filho de Danuza, o costureiro dispara: “Coitada da Danuza, tenho muita pena dela. Por isso, tomei uma decisão: nós não vamos ter filhos! Para acontecer o que aconteceu com Ricardinho...” (NORBERTO, 1971, p. 205).

Entretanto, o próprio ator Ary Fontoura, em entrevista ao site do projeto “Memória Globo” relata que o personagem Rodolfo Augusto era homossexual:

Heloísa Helena era minha parceira, contracenávamos muito. Nossos personagens viviam em função do carnaval, do desfile de fantasias de luxo. Eles se preparavam para aquilo durante o ano inteiro. Algumas das pessoas que desfilavam profissionalmente participaram da novela, como Clóvis Bornay. Rodolfo Augusto era homossexual assumido. Acho que foi o primeiro homossexual em novelas. Fui

um pioneiro. No teatro, acho que fui o primeiro a aparecer nu, totalmente pelado – de frente, de costas, de tudo quanto era jeito. (FONTOURA, 2007, s/p – grifo nosso).

Ainda nesta entrevista, o ator revela que o público não aceitou um personagem homossexual, mesmo que cômico, e aponta que tinha medo de ter que interpretar só personagens homossexuais. Ao ser perguntado sobre a repercussão do seu personagem revela:

Sob determinado aspecto, foi muito triste para mim. Eu recebia cachê, não era contratado da Globo, e ganhava mal. Ainda não era muito conhecido, não tinha volume para me impor. Então, era obrigado a ir trabalhar de ônibus e sofria muitas provocações. Eu passava por situações desagradáveis. Porém, sob o aspecto artístico, o personagem foi excelente. Foi uma atitude muito corajosa de um ator que poderia ter ficado estigmatizado e passado a fazer só aquilo, porque geralmente é assim: quando você faz bem um padre, por exemplo, vai ser padre a vida inteira. (...) Então, artisticamente, o papel foi excelente, mas, pessoalmente, foi péssimo, porque realmente sofri muito, tive que evitar muitas brigas. As pessoas me provocavam demais. Tempos depois, pensei que deveria mesmo ter passado por aquilo. Fui uma testemunha ocular da história. Participei e vi o que é o ibope (...). (FONTOURA, 2007, s/p).

Contudo, em outro momento, recordando-se do personagem, o ator revela que não havia preconceito, por parte do público, com o personagem, graças à humanização do mesmo. O episódio do ônibus também é narrado:

O personagem participava do desfile de fantasias do Teatro Municipal e a vida dele era totalmente voltada para isso, passava o ano inteiro pensando no tipo de fantasia que vestiria no carnaval seguinte. Mas no capítulo 121 todos foram pegos de surpresa, porque após perder um concurso ele vai para a praia e tenta se matar. Quando está se aproximando do mar, aparece um garoto que quer lhe vender algo: “Moço, o senhor está tão cheio de brilhantes, o senhor deve ter muito dinheiro, o senhor não podia comprar um amendoim pra me ajudar?” Rodolfo Augusto então olha para o menino e pergunta: “O que você faz? Isso é sua profissão?” O menino diz que sim. Ele pergunta: “Mas onde é que você trabalha? O que você faz com o

dinheiro que você ganha?” O menino responde: “Sustento a minha família”. Então

tudo começa a se passar na cabeça dele de uma maneira tão forte que desiste de se matar e começa a chorar. Como realização ficou assim um negócio comparável ao que Fellini fazia no cinema. Humanizei o personagem de um jeito tal que a homossexualidade dele não foi nunca questionada pelo público. (MENEZES, 2006, p. 135-136).

Esse personagem fez tanto sucesso que não podia mais pegar ônibus no Rio de Janeiro. Já era ator de sucesso, mas continuava andando de ônibus. Ainda não tinha dinheiro para comprar carro. Ia de ônibus todo o dia de minha casa em Copacabana até o Jardim Botânico, onde então ficavam os estúdios da Globo. Quando entrava no ônibus as pessoas começavam a me chamar de Gugu, o apelido do personagem na novela, e a imitar os trejeitos do meu personagem. Começavam a me chamar de bicha e a gritar “ai, ai, ai”. Pior: às vezes passavam a mão na minha bunda. Aquilo tudo, claro, começou a me incomodar muito. (MENEZES, 2006, p. 136).

Não encontramos referências sobre o casamento de Rodolfo Augusto na trama, o que faz confirmar nossa hipótese de que tudo não passou de um plano para conseguir o sucesso de ambos. Essa ambiguidade presente no personagem nos faz lembrar o carnavalesco carioca Clóvis Bornay104, que pode ter sido uma das inspirações de Dias Gomes.

O primeiro personagem homossexual é ligado ao que chamamos de estética camp, tinha gestos efeminados e extravagantes. No dia a dia utilizava roupas masculinas, porém não as convencionais da época, aproximando-se do estilo alternativo, mas não transgênero. Sua realização era estar com (e fazer) roupas luxuosas. Era muito amigo (e costureiro) de Danuza (Heloísa Helena), uma mulher fútil que só se preocupava em manter a aparência física. Na ocasião da morte do filho (Ricardinho), ela se aproximou do corpo com uma máscara facial e não pôde chorar – por proibição médica, já que acabara de realizar uma nova plástica. De certa forma, essa foi mais uma crítica de Dias Gomes ao mundo das aparências, à sociedade do consumo e, também, à sociedade do espetáculo de Guy Debord.

4.2.2 O Grito

Escrita por Jorge Andrade e dirigida por Walter Avancini, Roberto Talma e Gonzaga Blota, “O Grito” foi exibida, às 22h, de 27 de outubro de 1975 a 30 de abril de 1976, com 125 capítulos. A trama não tinha um único personagem principal; pode-se dizer que a cidade de São Paulo foi a protagonista. A telenovela contou a história dos moradores do Edifício Paraíso, construído ao lado do elevado Costa e Silva, o “Minhocão” de São Paulo.

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Clóvis Bornay (1916-2005) foi o idealizar do baile de gala com concursos de fantasias do Teatro Municipal do Rio de Janeiro. Na primeira edição, venceu o concurso com a fantasia “Príncipe Hindu”, que nos faz lembrar as excêntricas criações de Rodolfo Augusto.

A vida de São Paulo – nas suas vinte e quatro horas de correrias, poluição, gente se esbarrando e nem sentindo, solidão, superpopulação e potencialidades – é a vida destinada a se ter em qualquer grande metrópole não programada. São Paulo basta como exemplo, como alerta. A cidade como personagem principal de “O Grito”, de Jorge Andrade. (BOLETIM DE ESTREIA – O GRITO, 1975, p. 01).

No Edifício Paraíso, famílias de diferentes classes sociais se encontraram e se misturavam. O prédio possuía um amplo e luxuoso duplex de cobertura – onde moram os proprietários Edgard (Leonardo Villar), Mafalda (Maria Fernanda) e a filha Estela (Lídia Brondi) –, apartamentos confortáveis de três quartos, do nono ao terceiro andar, com dois apartamentos por andar, e doze pequenos compartimentos escuros e enfumaçados nos andares inferiores, de onde não se enxerga o céu. (BOLETIM DE ESTREIA – O GRITO).

“Apenas um fator incomoda igualmente a todos: os gritos inumanos de um menino doente, repetidos durantes as noites, perturbando o sono, ameaçando a tranquilidade. O grito que ninguém mais suporta e que a maioria quer expulsar do Edifício Paraíso” (BOLETIM DE ESTREIA – O GRITO, p. 2). O grito em questão é proferido por Paulo (Marcos Andreas Harder), filho de Marta (Glória Menezes) e Henrique (Otávio Augusto – em participação especial). Paulo possui uma doença mental, não se locomove, nem fala. Passa o dia tranquilo, mas à noite seus gritos abalam o Edifício Paraíso, ecoando por todos os andares. Por causa disso, Marta já havia sido expulsa de diversos lugares e teme que isso aconteça novamente. O ator Rubens de Falco revela, em uma biografia, que gostou da telenovela, porém ela não foi bem aceita pelo público. Sabemos que inovações estéticas e temáticas são, quase sempre, rejeitadas em um primeiro momento. O ator também destaca o grande elenco reunido em torno da telenovela de Andrade.

Era bonita a novela. Foi um fracasso total, porque mostrava uma São Paulo muito árida, muito concreto. Era no Minhocão; em cada andar do prédio vivia uma classe social. Nos baixos do Minhocão era a ralé, e ia subindo de nível a cada andar, até chegar na cobertura, onde moravam os donos do terreno. Acho que pouquíssimas vezes uma novela teve um elenco como aquele: Glória Menezes, Maria Fernanda, Yara Cortes, Françoise Fourton, por aí, e os homens, bom, era todo mundo que estava na Globo naquela época: Sebastião Vasconcelos, Edson França, Leonardo Villar, Walmor Chagas, Ney Latorraca, estava todo mundo na novela. Chamava-se

com o silêncio da noite, no Minhocão, começava a gritar. E o grito dele é que desperta o grito de toda aquela sociedade do edifício. (LICIA, 2005, p. 101-102)

Jorge Andrade utilizou um recurso similar ao que Bráulio Pedroso fez em “O Rebu”. Os 125 capítulos de “O Grito” são, na verdade, apenas seis dias. Contudo, diferente da telenovela de Pedroso, Andrade fez questão de esconder este dado do público, só revelando no último capítulo em um diálogo proferido por Marta.

Outro conflito em torno do Edifício foi o roubo de um interceptador que permitia que se escutassem todas as conversas em todos os apartamentos. O delegado Sérgio (Ney Latorraca) foi o encarregado de desvendar o caso. Próximo ao fim da trama, Estela é sequestrada. Porém, a pessoa que havia roubado o interceptador se entregou a Sérgio com todas as pistas para o resgate da filha de Edgard. Sérgio prometeu não revelar o autor do furto. No capítulo final de “O grito”, há uma reunião entre todos os condôminos, durante a qual vários personagens assumem a autoria do roubo do interceptador, por diferentes razões. Marta diz que roubou o aparelho para levar os vizinhos a pensar que agora alguém ouvia todos os “gritos” deles, tão incômodos quanto os do filho dela. Gilberto (Walmor Chagas) diz que queria ajudar Marta e ter a chance de estudar, como antropólogo, o comportamento dos vizinhos. O síndico Otávio (Edson França) diz que queria impedir que o prédio ficasse desvalorizado com a polêmica em torno de Marta e Paulinho e por isso cometeu o roubo, para depois incriminar a vizinha. (MEMÓRIA GLOBO)

De todos os presentes na reunião, apenas Sérgio sabe a real identidade do ladrão, mas ele decide encerrar o inquérito sem processá-lo argumentando que ele acabou prestando um grande serviço a todos ao ajudar a resgatar a filha de Edgard. No meio da reunião, Marta é avisada que Paulinho morrera durante o sono. Todos os moradores se unem para providenciar o velório e a cremação do menino. Durante a cerimônia, cada um deles relembra a própria infância e se arrepende dos seus atos.

Marta decide espalhar as cinzas do filho por todos os bairros em que viveu e foi expulsa durante os anos. Na cena final, ela sobrevoa São Paulo de helicóptero, atirando punhados de cinzas sobre a cidade. Gritos idênticos aos de Paulinho são ouvidos enquanto a câmera passeia por sobre os prédios. Na tela, surgem as palavras: “E a semente vai germinar, brotar, crescer, florescer e dar frutos” (MEMÓRIA GLOBO). Em cena de flashback, somente para o público, é revelado que a verdadeira autora do roubo foi Marta.

O que nos interessa analisar nessa trama é o personagem Agenor105 (Rubens de Falco). O rapaz é filho do fazendeiro Sebastião (Castro Gonzaga) e da recatada Branca (Ida Gomes). Preocupado com o futuro do filho, que “nunca havia ido a uma zona”106

, Sebastião vende algumas propriedades, compra ações em um banco importante e muda com sua família para São Paulo. Por deter grande parte das ações, indica o filho Agenor para um importante cargo de chefia.

Durante o dia, o personagem era um executivo que se vestia de forma impecável. Durante a noite, ele saía com roupas extravagantes, excêntricas e perambulava pelas ruas de São Paulo. Seus pais se mostravam preocupados com essa maneira exagerada de Agenor. Ficavam também preocupados com que os vizinhos diriam caso o encontrassem pelos corredores. Agenor não utilizava o elevador social quando saía de noite, preferindo sair pela garagem. O ator Rubens de Falco, também argumenta sobre a dubialidade de seu personagem e afirma que outros atores recusaram o papel por temer o estigma.

Todos os atores chamados para o papel recusavam, porque era um personagem dúbio. Eu achei que ele não tinha nada de dúbio, era apenas um cara que não se encontrava. A novela do Jorge Andrade passava-se em uma semana. Começava numa sexta-feira e acabava no outro domingo. Só que nessa semana aconteciam 120 capítulos. O meu personagem era um diretor do Banco do Brasil. Passou a ser funcionário, porque diretor do Banco do Brasil não pode ser dúbio (naquela época, pelo menos, não podia), e ele era castrado, tanto pela mãe, que o protegia muito,

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O personagem é assim apresentado no Boletim de Estreia da telenovela. “Chefe adjunto de um banco renomado, leva uma vida dupla. Discreto e calado durante o dia, é inquieto e extravagante à noite, quando passeia pelos bares da cidade para se divertir com a observação do comportamento alheio. Acha gratificante o relacionamento com a cidade, pois nela encontra possibilidades de vida social, opções de evolução cultural e

No documento guilhermemoreirafernandes (páginas 161-182)