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A TELENOVELA NARRANDO A NAÇÃO: DENTRO E FORA DA ESFERA PÚBLICA

No documento guilhermemoreirafernandes (páginas 138-145)

3. TELENOVELA, CIDADANIA E REPRESENTAÇÕES IDENTITÁRIAS

3.4 A TELENOVELA NARRANDO A NAÇÃO: DENTRO E FORA DA ESFERA PÚBLICA

Nas telenovelas, como também na vida cotidiana, “a esfera pública é colonizada pela esfera pessoal” (ANDRADE, 2003, p. 63). Seria então possível separar o que é público do que é privado, nas relações interpessoais? Jürgen Habermas (2003), em “Mudança

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O estudioso realizou uma pesquisa quantitativa e depois uma observação participante com mulheres que moram em três áreas urbanas pobres de três estados brasileiros: Rio Grande do Sul, São Paulo e Bahia. Mesmo focando na audiência feminina, cremos que as reflexões em nível macro também podem ser consideradas para a audiência masculina.

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Uma clara tendência era que uma evidente distância e uma crítica ideológica à telenovela dependiam do nível social de mulheres que estavam engajadas em, por exemplo, organizações comunitárias, sindicatos, grupos femininos, basicamente comunidades cristãs, etc. O exemplo mais claro é de Eva, de 32 anos, uma mulher muito ativa na vida da igreja e em trabalhos políticos. Ela era a mulher mais comprometida e ao mesmo tempo a única que se expressou politicamente e mais criticamente em nossas conversas sobre telenovelas, embora isso não impediu de assisti-las. Tradução nossa.

estrutural da esfera pública” tece várias características e conceituações sobre o que seria uma esfera pública. Para isso, o teórico alemão busca exemplos da idade antiga, no mundo medieval até chegar à sociedade burguesa. Gostaríamos apenas de chamar a atenção para algumas colocações do pesquisador.

Para Habermas, o espaço público92 é a esfera de pessoas privadas reunidas em público, onde se desenvolve o exercício de tornar público, já que é na esfera pública que se encontra o reconhecimento. As “ideias” privadas são “publicadas” diante de situações comuns a algum grupo, principalmente no que se refere aos assuntos de poder e de coisa pública (res publica). O espaço público foi criado a partir das necessidades e práticas de determinados grupos. Assim, o sujeito da esfera pública “é o público enquanto portador da opinião pública; à sua função crítica é que se refere a ‘publicidade’” (HABERMAS, 2003, p. 14). Habermas ainda diz que no âmbito dos medias a “publicidade” mudou de significado, passando da função da opinião pública para um atributo de quem desperta a opinião pública.

Desta forma, a esfera pública “pode ser entendida inicialmente como a esfera dos processos privados reunidos em um público” (HABERMAS, 2003, p. 44). Todavia, Habermas acredita que não existe mais um espaço público coletivo, já que a sociedade tecnológica e midiática a extinguiram. Além disso, “a estatização progressiva da sociedade, é que pouco a pouco destrói a base da esfera burguesa: - a separação entre Estado e sociedade” (HABERMAS, 2003, p. 170). Então, surge uma esfera social repolitizada em que não se distingue o que é ‘público’ e ‘privado’, “a decomposição da esfera pública, que é demonstrada na alteração de suas funções políticas, está fundada na mudança estrutural das relações entre esfera pública e setor privado” (HABERMAS, 2003, p. 170-171).

92 O uso do termo “espaço público” de Habermas é questionado por diversos pesquisados (ver SOUSA (org.),

2006) como válido para explicar a sociedade contemporânea. As principais críticas se referem às novas formas de mediação da nossa sociedade. Mesmo ciente de todas as críticas, optamos por continuar utilizando o conceito habermasiano, pois cremos que ele é válido para os nossos objetivos aqui refletidos.

Outro deslocamento descrito pelo teórico frankfurtiano diz respeito à família. Para Habermas, à medida que o Estado e sociedade se interpenetram, a instituição família se desloca dos processos de reprodução social: “a esfera íntima, outrora centro da esfera privada de um modo geral, recua para a sua periferia à medida que esta se desprivatiza” (HABERMAS, 2003, p. 180). Sobre a função da família na sociedade, Habermas é enfático

A compensação sócio-política pela perda quase total do que era a base da propriedade familiar estende-se, para além das ajudas materiais de rendimentos, para ajudas a funções existenciais. Ou seja, com as funções de formação do capital, a família também perde cada vez mais funções como a de criar e de educar filhos, funções de proteção de acompanhamento e de guia, em suma, funções elementares de tradição e orientação; ela perde o poder que tinha de determinar comportamentos, sobretudo em setores que, na família burguesa eram consideradas com o âmbito mais íntimo do privativo. (HABERMAS, 2003, p. 185).

Habermas vê que a família é cada vez menos solicitada como agência primordial da sociedade. Suas funções não são as mesmas de outrora. Além de instituições como a escola e, em alguns casos, a Igreja, percebe-se que os mass media são os responsáveis pela “educação”: “aquelas funções explicitamente pedagógicas que a família burguesa teve que entregar formalmente à escola, informalmente a forças anônimas fora do lar” (HABERMAS, 2003, p. 186). Desta forma, a vida pública é a privada e a privada é a pública – “a perda da esfera privada e um acesso seguro à esfera pública são hoje traços característicos do modo de morar e de viver urbanos” (HABERMAS, 2003, p.187).

Nesse contexto os assuntos retratados na teledramaturgia são repercutidos no fórum íntimo dos telespectadores. Uns criticam o comportamento de certos personagens, outros se espelham neles e percebem na “superação” de personagens seu objetivo de vida. A narrativa teleficcional tem capacidade de abrir à discussão pública discursos emocionais e domésticos normalmente associados ao mundo privado. Roberta Andrade (2003, p. 63) diz que:

Se as telenovelas são sempre associadas com a domesticidade e os problemas de ordem pessoal/familiar, isto não significa que os assuntos de ordem pública, do trabalho e da política não encontrem lugar no enredo. Muito pelo contrário, a distinção entre público e privado é essencial em sua estrutura. (ANDRADE, 2003, p. 63).

Ou ainda, na acepção de Lopes, Borelli e Resende:

Em sociedade que trocou a preocupação pública pela preocupação privada, os dispositivos de produção de subjetividade mobilizam questões de legitimidade do

eu e da supervalorização da personalidade; espelham uma realidade sócio-

historicamente datada e culturalmente circunscrita. Neste processo, o telespectador pode ser chamado a rever e a atualizar seus valores diante de diferentes dimensões: normas morais da sexualidade, do casamento, do pudor, da autoridade, da hierarquia enquanto mitos constitutivos o modelo de cultura vigente. Ele se permite hesitar, na hesitação de uma personagem, entre dois empregos, entre duas paixões, entre dois estilos de vida. (LOPES, BORELLI e RESENDE, 2002, p. 197-198).

A audiência conhece a intimidade de todos os personagens do enredo. Sabe de assuntos que outros personagens não sabem. O telespectador sabe quem é o vilão e os crimes que ele planeja, enquanto a vítima sofre em suas mãos. O espectador é cúmplice das mazelas e das carências dos personagens. É através dessa cumplicidade que os mecanismos de projeção e identificação são despertados. O personagem não tem que ser exatamente como é o espectador, mas sim ter algum traço psicológico/físico/emocional que o faz refletir sua intimidade para a tela da televisão.

É visível a presença, cada vez mais constante, de personagens homossexuais nas tramas. Eles também são objetos de muitas críticas. Considerando a telenovela como um “espaço público” para publicizar a intimidade dos personagens, as relações de poder são inseridas nos conflitos familiares. A teledramaturgia convida o público a fazer julgamentos sobre os dramas ali representados. Assim, não seria diferente em relação aos personagens homossexuais. Uma premissa para a aceitação desses personagens na televisão é simples: eles existem na vida real, então podem aparecer na telenovela. Mas quando outras características, como a afetividade e as relações sexuais são evocadas, elas não podem ser representadas. Assim, os gays só podem ser representados dentro da esfera privada e não na esfera pública. Ou seja, manifestações de afeto só podem ser imaginadas na privacidade dos personagens e não em ambientes públicos. De certa forma, essa mesma perspectiva vale para a nossa realidade.

Utilizando o conceito de “comunidade imaginada” de Benedict Anderson, Maria Immacolata Vassallo de Lopes (2003) percebe a telenovela como uma comunidade imaginada, em que o telespectador consegue se transportar para a narrativa e, junto aos personagens, vivenciar seus conflitos e dramas. A autora ainda diz que a “televisão dissemina a propaganda e orienta o consumo que inspira a formação de identidades” (LOPES, 2003, p. 18). Todavia, ao contrário da visão frankfurtiana, a pesquisadora não compactua com a visão “restrita” de manipulação da indústria cultural. Para ela, o processo de formação de identidades é de vital importância, uma vez que o telespectador pode ter experiências de alteridade que ele poderia não alcançar. Além disso, ao agendar assuntos de interesse público, a telenovela promove a cidadania e regula as interseções entre a vida pública e privada. Denúncia (a exemplo de políticos corruptos) no plano ficcional pode repercutir e trazer mudanças no mundo real. Essa maior ou menor aderência vai depender do repertório cultural do receptor.

Além disso, situações vividas por um personagem na novela ou características de seu caráter podem ser objeto de mobilização de sindicatos, do movimento negro ou gay, de políticos, de comunidades étnicas que criticam ou reivindicam mudanças em situações e personagens que contrariam a sua imagem pública. As novelas ainda podem ser encontradas refletidas nas propostas de projetos de lei para o estabelecimento de quotas para atores negros e disciplinando o trabalho de atores infantis e adolescentes. Frequentemente, as tramas das novelas provocam a discussão da necessidade de códigos de ética por parte das emissoras de TV, seja em forma de lei ou autoregulamentação. (LOPES, 2003, p. 31).

A professora percebe a telenovela como novo espaço público, pois ela dá visibilidade a certos assuntos, comportamentos, produtos e não a outros; ela define certa pauta que regula as interseções entre a vida pública e a vida privada. A narrativa da telenovela pode publicizar os discursos de grupos minoritários, além de representar suas identidades, dando assim certa visibilidade ao seu exercício de cidadania.

O certo é que esses dramas nas novelas já não são lineares nem unilaterais mas, antes, bastante nuanceados e marcados por um movimento ambivalente de transgressão e conformismo. Com relação ao tema da discriminação racial e sexual, o tratamento vem sendo crescentemente informativo, antidogmático e a favor da tolerância e do respeito às minorias. Nesse sentido, a novela parece configurar-se como uma linha de força na construção de uma sociedade multicultural no Brasil. (LOPES, 2009, p. 28-29).

A essas possibilidades e recursos utilizados pela telenovela, Lopes (2009) denominou de “recurso comunicativo da telenovela brasileira”. A professora explica que esse discurso é apresentando desde que a TV Tupi exibiu “Beto Rockfeller”, em que os dramas de brasileiros foram representados em linguagem televisual.

Abordar a telenovela como recurso comunicativo é identificá-la como narrativa na qual se conjugam ações pedagógicas tanto implícitas quanto deliberadas que passam a institucionalizar-se em políticas de comunicação e cultura no país. Em outros termos, é reconhecer a telenovela como componente de políticas de comunicação/cultura que perseguem o desenvolvimento da cidadania e dos direitos humanos na sociedade. (LOPES, 2009, p. 32).

Se o “recurso comunicativo” iniciou-se com “Beto Rockfeller”, sua radicalização aconteceu a partir da década de 1980, em que os autores estiveram mais livres para abordar assuntos mais delicados e tabus. O que não quer dizer que eles não existiam antes, porém eram tratados de uma forma mais suave e com poucos conflitos no âmbito psicológico. Como exemplos de temas que foram “radicalizados”, Lopes (2009) aponta: vida profissional e independência financeira da mulher; construção de novos arranjos familiares em que uma mulher, mesmo solteira, decide criar filhos de relações diferentes; casamentos interraciais; uniões homossexuais; entre outros.

E, mais importante ainda, o tratamento naturalista dado a esses temas não costuma escamotear os elementos de conflito e de preconceito, conferindo à novela alta credibilidade junto ao público. É através desse efeito de credibilidade que as novelas colocam em circulação e debate mensagens sobre a tolerância, o direito à diferença e os direitos das minorias, a despeito dos quase sempre ‘final feliz’ dado às histórias. (LOPES, 2009, p. 28)

Essa estética naturalista da telenovela é responsável por refletir uma sociedade. Temas antes poucos explorados ganham, cada vez mais, espaço nas narrativas da telenovela e, desta forma, debate no âmbito público. Nas palavras da professora Lopes, “a construção de sentidos sobre os discursos da vida pública e da vida privada brasileira passam pela telenovela” (LOPES, 2003, p. 17). É a telenovela narrando o Brasil e, logo, os brasileiros sendo representados pela telenovela.

Eu tinha tanto pra dizer Metade eu tive que esquecer E quando eu tento escrever Seu nome vem me interromper Eu tento me esparramar

E você quer me esconder Eu já não posso nem cantar Meus dentes rangem por você Solange, Solange

É o fim Solange

Eu penso que vai tudo bem E você vem me reprovar E eu já não posso nem pensar Que um dia ainda eu vou me vingar Você é bem capaz de achar

Que o que eu mais gosto de fazer Talvez só dê pra liberar

Com cortes pra depois do altar Solange, Solange, Solange É o fim, Solange

Solange, ah! Ah! Solange Pára de me censolange Ye ye ye

I feel so lonely Ye ye ye

So so so, lan lan lan Solange, Solange, Solange É o fim Solange

(Sting, versão Leo Jaime/Leoni) SOLANGE

4. A CENSURA DURANTE O REGIME MILITAR E A REPRESENTAÇÃO DAS

No documento guilhermemoreirafernandes (páginas 138-145)