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Ciranda de pedra

No documento guilhermemoreirafernandes (páginas 196-200)

4. A CENSURA DURANTE O REGIME MILITAR E A REPRESENTAÇÃO DAS IDENTIDADES HOMOSSEXUAIS NAS TELENOVELAS

4.2 A TRAJETÓRIA DOS PERSONAGENS HOMOSSEXUAIS NO CONTEXTO DA CENSURA MILITAR

4.2.6 Ciranda de pedra

“Ciranda de Pedra” foi a telenovela de estreia de Teixeira Filho na Rede Globo, baseada no romance homônimo de Lygia Fagundes Telles, publicado em 1954. A telenovela teve direção de Reynaldo Boury e Wolf Maia, com supervisão de Herval Rossano, foi exibida de 18 de maio a 4 de novembro de 1981, com 155 capítulos.

A trama de “Ciranda de Pedra” se inicia em 1947, em São Paulo, no momento em que Virgínia (Lucélia Santos) se prepara para voltar ao Jardim Europa. A menina foi educada pela mãe, Laura (Eva Wilma), na Vila Madalena, quando esta se separou do marido, o autoritário Natércio Prado (Adriano Reys). As outras duas filhas do casal – Otávia (Priscila Camargo) e Bruna (Sílvia Salgado) – ficaram com o pai. Virgínia é, na verdade, filha do neurologista Daniel (Armando Bógus), com quem Laura teve um romance enquanto ainda era casada com Natércio. Após a separação, Laura e Virgínia foram morar com Daniel. (BOLETIM DE ESTREIA – CIRANDA DE PEDRA; MEMÓRIA GLOBO, 2010).

Além de sofrer com o desprezo de Natércio e a hostilidade da governanta Frau Herta (Norma Blum), Virgínia fica dividida entre o amor de Eduardo (Marcelo Picchi) e Luís Carlos (Roberto Pirillo), mas acaba se casando com Eduardo, seu ex-vizinho da Vila Madalena. Teixeira Filho criou outros personagens que não estavam presentes na obra de Telles, além de modificar o perfil de alguns personagens, como Letícia (Mônica Torres). O próprio “Boletim de Estreia” da telenovela atesta a suavização do perfil psicológico de alguns personagens:

Mas alguns dos personagens foram suavizados, em função do horário em que será exibida a novela – 18 horas –, tornando-os compatíveis em termos de comportamento. Principalmente levando-se em conta a força da imagem, bem maior do que a das palavras. (BOLETIM DE ESTREIA – CIRANDA DE PEDRA, 1981, p. IV).

Interessa-nos nessa dissertação o perfil de Letícia. No livro de Lygia Fagundes Telles, Letícia é uma lésbica (e também feminista) assumida, que se revolta contra o espírito conservador de seu pai Cícero. Na telenovela, Letícia é uma esportista (nadadora na telenovela e tenista no livro), liberal, que não aceita as condições de repressão do pai. A sua identidade homossexual, porém, foi praticamente abafada na versão televisiva.

O “Boletim de Estreia” (1981) apresenta a personagem como uma mulher que “não se prende a qualquer rapaz em especial. Transforma-se numa espécie de protetora de Virgínia e Otávia (...). Meio rebelde às ordens de seu pai, não aceita seus princípios conservadores” (BOLETIM DE ESTREIA – CIRANDA DE PEDRA, 1981, p. XII). As modificações dos personagens do livro para sua transmutação em telenovela ganhou atenção da crítica especializada em televisão, como pode ser visto nesse fragmento retirado da coluna de Maria Helena Dutra no Jornal do Brasil.

Em Ciranda de Pedra, adaptação de Teixeira Filho para o primeiro romance de Lygia Fagundes Teles e atual cartaz da novela das seis na Rede Globo, o conflito é também familiar. Como no livro - apenas um pouco alterado, como é hábito nesse horário sempre muito pouco fiel às obras originais que lhe dão título. A autora [L. F. Telles] basicamente conta a história de Virgínia, filha adulterina que por sua concepção provoca a separação de sua mãe, que é também forçada a abandonar, por imposição do marido, suas duas filhas mais velhas e legítimas. Virgínia vai morar com a mãe, que gradativamente enlouquece, e Daniel, que ela não sabe ser seu

verdadeiro pai. Visita as irmãs de vez em quando e se apaixona pelo vizinho Conrado que, no final da história, descobrirá impotente e se torna amiga da irmã dele, Letícia, lésbica assumida. Depois da morte da mãe e do suicídio de Daniel, Virgínia vai para um colégio e toda a segunda parte da obra é seu processo de amadurecimento, um fracassado amor com Rogério e uma viagem que encerra Ciranda de Pedra. A novela ainda está na sua primeira fase, pois foi estreada em 18 de maio. A versão para a televisão conta mais ou menos essa história. Apenas a mãe, interpretada por Eva Wilma, ainda não morreu. Está apenas internada e Virgínia, Lucélia Santos, foi morar com seu suposto pai, Adriano Reys. No livro, um homem apagado e distante. Na novela, vilão total. Há também quantidade enorme de personagens inexistentes ou apenas referidos no original, entre eles namorados e apaixonados das irmãs, nenhum Conrado e uma Letícia vagamente homossexual. Mas entre a família Prado, do pai, e a dos vizinhos, Cassini, já se Iniciaram alguns namoros e um mesmo galã, Roberto Pirilo, ama simultaneamente duas irmãs, jovens que sempre têm dois romances com homens que são parentes ou amigos entre si. (DUTRA, 1981, s/p).

Entre os personagens criados por Teixeira Filho, está a enfermeira Guiomar (Djenane Machado), que trabalha na clínica do Dr. Daniel. Assim como Letícia, Guiomar é uma mulher à frente da sociedade conservadora da década de 1930/1940. Ainda jovem, Guiomar sai da casa dos pais, em Campinas, interior de São Paulo, e vai para a capital estudar medicina. Contudo, ela é obrigada a deixar o curso para trabalhar e acabou trocando o sonho de ser médica para se tornar uma enfermeira. Tal fato pode ser verificado neste diálogo entre Guiomar e Letícia.

Guiomar: Se eu fosse você não saia de casa nessas condições.

Letícia: Escute, só porque eu disse que você é bonita, que eu gosto de você, já esta pensando que pode ser minha conselheira?

Guiomar: Desculpe.

Letícia: Pode dar conselho sim, estou brincando. Guiomar: É que eu saí de casa também e me dei mal. Letícia: Ah é?

Guiomar: É... olha... certos pais... Acho que a maioria, não perdoam as filhas que fazem isso. A sociedade também não aceita isso. Moça que sai antes de casada da casa dos pais, fica na boca do povo.

Letícia: Você saiu por quê?

Guiomar: Eu queria vir para São Paulo, queria estudar medicina. Nossa, o mundo veio a baixo.

Letícia: Você chegou a ingressar na faculdade?

Guiomar: Cheguei e tive que deixar a medicina, era tempo integral e meus pais não pagaram. Aí me empreguei como enfermeira e fiz curso de enfermagem e quando voltei para Campinas não pude entrar em casa! Nem nas casas das minhas amigas! Eu era mulher... “falada”. (CIRANDA DE PEDRA, capítulo 93).

Percebe-se que a personalidade das duas é bem parecida. Diferente de Letícia, Guiomar não é apresentada como lésbica, pois ela se apaixona pelo médico Alceu Ladeira

(José Augusto Branco). No diálogo, fica perceptível as inclinações lésbicas de Letícia, como admitir a beleza de uma mulher e se mostrar independente em relação à sociedade machista. Letícia almeja sair na casa dos pais, já não suporta a imposição conservadora. Contudo, ela segue o conselho da amiga. Letícia termina a trama sozinha. Se ela não podia ser lésbica, de fato ela não se tornou “heterossexual”. Teixeira Filho manteve a personagem dúbia.

Não foi somente em 1981 que a lesbianidade de Letícia não pode ser transmutada para uma telenovela das 18h. Em 2004, Alcides Nogueira escreveu outra adaptação do romance de Lygia Fagundes Telles. Desta vez, coube a Paola Oliveira o papel de Letícia. Assim como a personagem de Mônica Torres, a Letícia de 2004 também não se assumiu como lésbica. Tal característica já havia sido anunciada pelo dramaturgo antes mesmo de a novela estrear, como podemos verificar nessa passagem do jornal Zero Hora de Porto Alegre:

O dramaturgo Alcides Nogueira revela sem temor que recuou deliberadamente ao adaptar o livro de Lygia Fagundes Telles para o horário das seis da tarde. Assim, na novela que a Globo começa a exibir dia 5 de maio, a tenista Letícia será derrotada em sua atração por mulheres, uma vez que a classificação por faixa etária não permite que crianças vejam pessoas do mesmo sexo se amando na televisão. E o que vai ser de Conrado, o amor de infância de Virgínia, a heroína do romance, um homem amargurado por sua impotência sexual? E de Frau Herta, a empregada recolhida a um cômodo imundo, doente e abandonada na periferia? Tudo isso cabe no horário das seis? A saída encontrada por Alcides Nogueira para driblar a camisa- de-força da classificação etária foi compensar o tônus peculiar de Ciranda de Pedra - a força social do romance - com o desenvolvimento do perfil psicológico dos personagens. Assim, a lésbica Letícia deixa de ser a desbravadora do território da sexualidade alternativa para ser uma mulher que rejeita o modelo patriarcal, assumindo sua autonomia como esportista profissional. Conrado, o correspondente brasileiro do "belo Antonio" de Brancati, não será um impotente sexual, mas "afetivo", tendo dificuldades para assumir o cargo de diretor da siderúrgica que recebe como herança. (A NOVELA..., 2008, s/p).

A atriz Mônica Torres também participou dessa nova adaptação, na pele da mãe de sua ex-personagem Letícia (Paola Oliveira), Lili (Julieta) Cassini, papel que coube a Ana Lúcia Torre na primeira versão. Telenovelas posteriores à “Ciranda de Pedra” mostraram personagens homossexuais, porém bem suaves e amenos. Não sabemos exatamente o motivo, mas essa faixa horária ainda não apresentou nenhum perfil forte de homossexuais, diferente

dos demais horários, o que incluiu a soap opera “Malhação”, exibida às 17h30, que em diversas temporadas exibiu personagens gays, lésbicas e travestis.

No documento guilhermemoreirafernandes (páginas 196-200)