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4.1 ATEÍSMO E MARXISMO-LENINISMO

4.1.2 O ateísmo no contexto marxista-leninista

Na verdade, no marxismo-leninismo, Lênin segue os pensamentos de Marx e prevalecia uma visão materialista do mundo. Marx, a respeito do materialismo, dissertou:

[...] não se parte daquilo que os homens dizem, imaginam ou representam. E tampouco dos homens pensados, imaginados e representados para, a partir daí, chegar aos homens em carne e osso; parte-se dos homens realmente ativos e, a partir de seu processo de vida real, expõe-se também o desenvolvimento dos reflexos ideológicos e dos ecos desse processo de vida. E mesmo as formações nebulosas no cérebro dos homens são sublimações necessárias do seu processo de vida material, empiricamente contestável e ligado a pressupostos materiais. A moral, a religião, a metafísica e qualquer outra ideologia, assim como as formas de consciência que elas correspondem perdem toda aparência de autonomia. [...] Não é a consciência que determina a vida, mas a vida que determina a consciência. (MARX, 1996, p. 37).

Seguindo a linha de Marx, Lênin expõe em sua obra que a matéria é o princípio de tudo:

o movimento do pensamento é apenas o reflexo do movimento real, transportado e transposto pelo cérebro do homem.[...] “a unidade do mundo não consiste no seu ser... a unidade real do mundo consiste na sua materialidade, e esta prova-se... por um longo e laborioso desenvolvimento da filosofia e da ciência da natureza... o movimento é o modo de existência da matéria. nunca e em parte alguma houve matéria sem movimento, e não pode haver movimento sem matéria. (LÊNIN, 1990, p.19).

Portanto, vê-se que o materialismo vê o mundo como um composto físico, como apenas matéria. Os materialistas não crêem em Deus, nem em qualquer outro ser sobrenatural ou espiritual. Homem e mundo são máquinas. (GAARDER, 2002; LINDOSO, 1986).

O materialismo declara que o cosmos é desprovido de propósito consciente imanente;[…] que não há interferência sobrenatural na vida humana; que a humanidade - encontrando seus recursos dentro de si mesmos - pode e deve criar seu próprio destino.[…] A "Fé" do materialismo é na humanidade e sua capacidade de transformar a cultura mundial por seus próprios esforços. […] Ele considera a luta pelo progresso como uma obrigação moral que é impossível sem idéias nobres que nos inspiram a trabalhos criativos e audaciosos. O materialismo sustenta que o nosso potencial para um bom e mais gratificante desenvolvimento cultural é, para todos os

efeitos práticos, ilimitado.30 (AMERICAN ATHEISTS CENTER, 2014, tradução nossa).

O materialismo enfatiza o mundo material, os pensamentos são um reflexo da matéria, a qual sempre existiu e “é a base de tudo o que existe”. “Ninguém criou a matéria. […] Deus é supérfluo: o mundo evolui eternamente sem a sua intervenção. É assim que o materialismo conduz à negação de Deus. Liga-se inevitavelmente ao ateísmo”. (YAKHOT, P. 15 e 20).

Desta forma, vemos que a ideologia marxista-leninista tem seus alicerces no ateísmo, isto é, na descrença em um ser sobrenatural. Na intenção de embasar tal afirmação, cita-se a seguinte afirmação de Lênin:

cada idéia religiosa, cada idéia de Deus, até mesmo entreter a idéia de Deus é uma vileza indizível... vileza da mais perigosa espécie, ‘contágio’ do tipo mais abominável. Milhões de ações corruptas, de atos de violência e de contágios físicos são muito menos perigosos que a idéia sutil e espiritual de um Deus vestido com os mais elegantes trajes ‘ideológicos. (LÊNIN apud SHIPLER, 1983, p. 355).

Através do exame das palavras acima citadas, torna-se evidente, não apenas a incredulidade do principal dirigente do marxismo posto em prática, mas também, a condenação por ele proferida. As fortes palavras de Lênin apresentam a religião como sendo algo pior para o homem que um crime ou uma doença contagiosa.

Nota-se, na Figura 7, a aversão demonstrada pelos socialistas ateístas militantes em relação às religiões. Especificamente, a imagem abaixo, publicada em uma revista ateísta, mostra operários jogando Jesus fora, utilizando um carrinho de mão, em demonstração de sua liberdade do julgo religioso.

30 Materialism declares that the cosmos is devoid of immanent conscious purpose; […] that there is no supernatural interference in human life; that humankind -- finding their resources within themselves -- can and must create their own destiny. […] Materialism's "faith" is in humankind and their ability to transform the world culture by their own efforts. […] It considers the struggle for progress as a moral obligation that is impossible without noble ideas that inspire us to bold, creative works. Materialism holds that our potential for good and more fulfilling cultural development is, for all practical purposes, unlimited.

Figura 7 – Ateístas na bancada de trabalho na fábrica.

Fonte: Merrill C. Berman Collection, 2014.

Para a teoria marxista-leninista, a igreja desapareceria com o passar do tempo. As antigas tradições deixariam de existir e as novas gerações creriam apenas naquilo que pode ser cientificamente provado. Nesse sentido, a Constituição soviética pode ser mencionada como exemplo de instrumento utilizado para atingir o objetivo de diminuir o domínio da igreja, gradativamente, até superá-la por completo.

A Constituição de 1918 permitia “liberdade de propaganda religiosa e antirreligiosa” [...] o artigo foi emendado em 1929 para “liberdade de culto religioso e de propaganda antirreligiosa”. Consequentemente, privada de seu direito de fazer “propaganda”, a igreja perdeu a capacidade de transmitir formalmente seu credo e valores: nada de grupos de estudo, escolas dominicais ou evangelismo. Enquanto isso, o partido tinha a liberdade e até mesmo a obrigação de pregar o ateísmo. [...] A “Constituição revisada de 1978, artigo 52, que garante aos cidadãos ‘liberdade de consciência’, [...] pode parecer espantosamente liberal. Mas uma sociedade em que o Estado engloba tudo, significa que resta pouco espaço à Igreja.” (SHIPLER, 1983, p.356-357).

Ainda segundo Shipler (1983, p.358), a religião era ridicularizada pelos “textos oficiais” e, também, por atos de grande parte da população soviética. O autor escreveu: “A

mensagem do ateísmo está em toda parte, dos livros didáticos de biologia aos espetáculos de cabaré”.

Nota-se que o ateísmo não é apenas uma opção dentro do socialismo real, mas sim a opção. Além de a religião ser polidamente desencorajada ou ridicularizada, o ateísmo era estimulado entre a população, através da educação, da política e da cultura.

O proletariado de hoje toma o lado do socialismo, o qual recruta a ciência na luta contra a névoa da religião, e liberta os trabalhadores de sua crença na vida após a morte soldando-os juntos para lutar no presente por uma vida melhor na terra. A religião deve ser declarada um assunto privado. [...] Nós exigimos que a religião seja mantida um assunto privado até onde toca o estado. Mas de modo algum podemos considerar a religião um assunto privado no que toca ao nosso partido. A religião não deve ser de nenhum interesse para o Estado, e sociedades religiosas não devem ter conexão com a autoridade governamental. Todo mundo deve ser absolutamente livre de professar qualquer religião que quiser, ou nenhuma religião que seja, isto é, para ser um ateu, o que cada socialista é, como regra.31 (LÊNIN, 1905, tradução nossa).

Ilustrando a citação acima, a Figura 8 exibe o orgulho dos ateítas em o serem, e seu ímpeto em encorajar outros a os seguirem.

31 The proletariat of today takes the side of socialism, which enlists science in the battle against the fog of religion, and frees the workers from their belief in life after death by welding them together to fight in the present for a better life on earth. Religion must be declared a private affair. […] We demand that religion be held a private affair so far as the state is concerned. But by no means can we consider religion a private affair so far as our Party is concerned. Religion must be of no concern to the state, and religious societies must have no connection with governmental authority. Everyone must be absolutely free to profess any religion he pleases, or no religion whatever, i.e., to be an atheist, which every socialist is, as a rule.

Figura 8 – Eu sou um ateu, e você?

Fonte: Апологет, 2010.

Reforçando as citações acima, Lindoso (1986, p. 79) diz que “A militância ateísta, predominou nos primeiros anos da Revolução de Outubro, e ainda hoje é a ideologia oficial do marxismo-leninismo”. E completa: “O marxismo-leninismo como ideologia sempre foi ateísta, embora não devesse ser nem uma coisa nem outra. Nem ateísta nem antirreligioso”.

Vale aqui destacar que Lindoso (1986, p. 83) refere-se ao marxismo-leninismo como ideologia que abriga o ateísmo, sem embargo apresenta Marx não como ateísta, mas como irreligioso e materialista, pois “não se limita à crítica negativa de Deus, mas recomenda o abandono do ‘estado de ilusão’ e do ‘vale de lágrimas’”.

Ainda averiguando a visão de Schumpeter (1961) acerca do marxismo, vê-se que o autor afirma categoricamente que, de certa forma, o marxismo é uma religião, pois este dispõe ao crente marxista “um sistema de fins últimos que envolvem o significado da vida e

constituem critérios absolutos para o julgamento de acontecimentos e ações”. Podemos interpretar, esse sistema de fins últimos como sendo o marxismo, um “plano de salvação” o qual oferece como recompensa final, como resultado de seu triunfo: o céu na terra.

Shipler declara que o marxismo é um “sistema completo de explicação e crença”, e reforça o argumento de Schumpeter em seu relato, traçando um paralelo entre comunismo e cristianismo:

Como mecanismos de pensamento, tanto o comunismo como o cristianismo satisfazem a necessidade de uma vida intelectual estruturada; ambos proporcionam uma âncora contra um mar revolto de aterrorizantes ambigüidade e dúvida; ambos são capazes de atenuar a sede espiritual de respeito e reverência, outrora mitigada por czares e santos e depois pelas figuras de Lênin e Stálin como seres superiores aos terrestres. (SHIPLER, 1983, p. 352).

Acerca do caráter ateísta intolerante do marxismo-leninismo nos anos de

socialismo real, Besançon (1976) alega que, nesse período, a Igreja Ortodoxa sofreu uma das maiores perseguições da História, “a Rússia era cristã há um milênio. A igreja foi dizimada [...]. Foi corrompida, pastores colaboraram com a polícia [...]. A regra de ouro da repressão era levá-la até o ponto exato em que os fiéis desertariam em massa da Igreja [...]”. Daí pode- se fazer um paralelo com a perseguição da Igreja medieval aos hereges. Sobre esta atitude hostil, Schumpeter escreve:

A qualidade religiosa do marxismo também explica a atitude característica dos marxistas ortodoxos para com os seus adversários. Para eles, como para todos os crentes de uma fé, o adversário não está unicamente em erro, mas também em pecado. A dissensão é condenada, não só intelectualmente, mas também moralmente. Não pode haver desculpas, pois a mensagem já foi revelada. (SCHUMPETER, 1961).

Sendo assim, Besançon e Schumpeter corroboram na idéia que a paixão dos marxistas por sua ideologia é tão forte quanto a de um religioso por sua crença, chegando ao ponto de excluir, rejeitar e, até, matar os que não compartilham da mesma fé.

Não obstante, Shipler (1983) relata em sua obra que dentro do sistema socialista as coisas não eram exatamente o que pareciam. Segundo o autor, havia padres que não criam em Deus e comunistas que criam. Havia dualidade, ambigüidade e religião clandestina.

Discorrendo acerca dos escritos de Engels, Lênin (1909, tradução nossa), relata que o autor condena os extremistas que querem que o partido socialista seja oficialmente ateísta e declare guerra à religião. Para o Engels, ao invés de acabar de vez com a religião, o combate direto e irá reavivá-la. Engels vai além, afirmando que os religiosos que assim desejem, devem ser aceitos como partircipantes do partido socialista, a fim de que possam ser

educados na doutrina materialista. “Engels insistiu que o partido operário deve ter a capacidade de trabalhar pacientemente na tarefa de organizar e educar o proletariado, o que levaria à extinção da religião, e não lançar-se na aposta de uma guerra política na religião”.32

Isso não quer dizer que um marxista-leninista não deve combater a religião, ao contrário, como materialista, o marxista-leninista é “[...] um inimigo da religião, mas um materialista dialético [...] trata da luta contra a religião [...] de uma forma concreta, com base na luta de classes que está acontecendo na prática e está educando as massas mais e melhor do que qualquer outra coisa poderia”.33 Sendo assim, para combater a religião desde a sua raíz, é necessário “explicar a fonte da fé e da religião entre as massas de uma forma

materialista”.34 (LÊNIN, 1909, grifo do autor, tradução nossa).

A raiz mais profunda da religião, hoje, é a condição de socialmente oprimidos das massas trabalhadoras e seu desamparo, aparentemente completo, em face às forças cegas do capitalismo, que a cada dia e a cada hora inflige sobre os trabalhadores comuns o sofrimento mais terrível e o tormento mais selvagem, mil vezes mais grave do que aqueles causados por eventos extraordinários, como guerras, terremotos, etc. "O medo fez os deuses." O medo da força cega do capital – cego porque não pode ser previsto pelas massas do povo, [...] tal é a raiz da religião moderna [...].35 (LÊNIN, 1909, grifo do autor, tradução nossa).

Desta forma, percebe-se que o marxismo-leninismo acretita que a religião deve ser abolida. Alguns creem que essa abolição virá através da força, outros, da palavra. Independentemente da maneira como a religião foi combatida durante o período do domínio soviético, o fato é que a ideologia socialista é, indubitavelmente, ateísta, acreditando que a luz da ciência é suficiente e racional para explicar o mundo e inutilizar Deus, ou qualquer outro poder sobrenatural no qual se possa crer. A Figura 8, a seguir, apresenta uma das propagandas ateístas distribuídas pelos soviéticos durante a Guerra Fria.

32 […] Engels insisted that the workers’ party should have the ability to work patiently at the task of organising and educating the proletariat, which would lead to the dying out of religion, and not throw itself into the gamble of a political war on religion.

33 [...] an enemy of religion, but a dialectical materialista [...] treats the struggle against religion [...] in a concrete way, on the basis of the class struggle which is going on in practice and is educating the masses more and better than anything else could.

34 We must know how to combat religion, and in order to do so we must explain the source of faith and religion among the masses in a materialist way.

35

The deepest root of religion today is the socially downtrodden condition of the working masses and their apparently complete helplessness in face of the blind forces of capitalism, which every day and every hour inflicts upon ordinary working people the most horrible suffering and the most savage torment, a thousand times more severe than those inflicted by extra-ordinary events, such as wars, earthquakes, etc. “Fear made the gods.” Fear of the blind force of capital—blind because it cannot be foreseen by the masses of the people [...]such is the

root of modern religion [...].

Figura 9 – Propaganda Ateísta Soviética

Fonte: Byzantine, TX, 2012.

As palavras, em russo, declaram: “[...] Sem Deus não há entrada! Mas a luz brilhante da ciência tem provado que não há Deus!”. A imagem da mulher, lançando fora suas imagens religiosas, testifica da crença socialista de que o povo, através da ciência e da razão, irá se libertar dos grilhões da religião e, consequentemente, da alienação, despertanto, assim, para uma nova era de real felicidade.

A seguir, dar-se-á continuidade ao tema do ateísmo, contudo, a ênfase será dada à relação entre o ateísmo da ideologia do socialismo soviético, apresentado até este ponto, no território que compreendia a antiga República Democrática Alemã.