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Atenção às necessidades e responsabilidades da comunidade

3 JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO UMA NOVA ABORDAGEM DE

3.3 PRINCÍPIOS E VALORES DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

3.3.2 Atenção às necessidades e responsabilidades da comunidade

Mencionando a mudança de paradigma representada pela Justiça Restaurativa, Rubens Casara e André Trednnick (2017, p. 21) afirmam que com ela “a comunidade volta a interessar à Justiça e, ao mesmo tempo, a Justiça torna-se interessante à comunidade”.

Entre os conceitos de Justiça Restaurativa apresentados, ainda que existam algumas divergências, observou-se que a importância da dimensão comunitária de seus procedimentos é elemento essencial. Primar pela participação da comunidade nas discussões sobre um ilícito penal e permitir inclusive uma co-responsabilização é forma de devolver o conflito a seus verdadeiros donos, talvez aqueles que mais se sentiram ameaçados pelos fatos e que melhores condições terão de acompanhar o cumprimento de acordos celebrados. Trata-se do que Nils Christie chama de “model

of neighbourhood courts.”107 De acordo com o autor, primeiramente deve ser

considerado o que o ofensor poderia fazer para suprir necessidades da vítima, depois o que a comunidade poderia fazer e apenas por último o que caberia ao Estado. (1977, p. 10).

O funcionamento da justiça retributiva não desperta esse senso comunitário, ao contrário, quando exerce alguma influência na comunidade talvez seja mais no sentido de promoção de um sentimento de vingança ou catarse coletiva diante do sofrimento do outro ao cumprir uma pena, o que, se ocorrer também na Justiça Restaurativa pode causar mais danos do que ganhos. Estela Libardi de Souza (2009, p. 121), apresentando estudos sobre o funcionamento de sistemas jurídicos indígenas, na Bolívia, até a atualidade, comenta que, apesar da adaptação aos costumes europeus, desde os tempos da colonização, ainda há casos em que os mecanismos tribais são utilizados, mesmo que clandestinamente, para retomar aquilo que tenha lógica para a comunidade:

Em alguns casos, a comunidade rejeita a solução dada ao conflito pela justiça estatal e se considera plenamente competente para realizar novo julgamento, segundo o que prescreve o Direito Mbya, a despeito da pena aplicada pelos “brancos”, pois a pena imposta por estes não satisfaz a comunidade indígena e não reestabelece a paz do grupo.

Este anseio por uma maior participação cidadã está também nas raízes da Justiça Restaurativa, desde 1970, com a criação de conselhos comunitários de justiça e centros de justiça comunitária. (DALY; IMMARIGEON, 1998, p. 7).

Antony Duff fala de um Direito Penal como uma prática de prestação de contas entre cidadãos, que deve ser uma instituição que pertence à comunidade (2015, p. 17):

La idea central aquí es que las personas que cometen delitos deben ser llamadas a rendir cuentas como ciudadanas, deben adoptar un rol activo que implica ciertos deberes, y el castigo debe incluir siempre una promesa de recuperación dele status pleno de cidadania (resultan, por lo tanto especialmente problemáticas las llamadas ‘consecuencias colaterales’ del castigo penal)108. A su vez, los demás ciudadanos y ciudadanas tienen el deber de tratar al delincuente como membro de la comunidad politica en todas las etapas de este proceso y tambien una vez finalizado109.

A transformação de processos legais em processos comunitários seria um aspecto verdadeiramente revolucionário da Justiça Restaurativa, em expressão utilizada por Howard Zehr. O autor descreve que uma primeira revolução jurídica teria ocorrido entre o modelo medieval e sua pluralidade de centros de poder e consequentemente heterogeneidade jurídica, não havendo uma unificação na produção legislativa, passando ao modelo que se impõe a partir do século XVIII e XIX, a partir de quando surge a figura de procuradores dos reis e as indenizações já não são mais direcionadas às vítimas e sim aos cofres públicos (2008, p. 104), conforme mencionado em outros trechos do presente trabalho.110 Este protagonismo do grupo

social na solução dos conflitos era o que ocorria antes do Estado verticalizar o poder punitivo e hoje ainda remanesce apenas no âmbito do direito privado:

O poder punitivo não existiu sempre, nem em todas as sociedades, como pretendem alguns penalistas. Em qualquer sociedade, e desde muito antes do Estado, quando alguém ofendia um outro, exercia-se um poder social para obrigar-lhe a reparar a ofensa (poder reparador ou restitutivo, que hoje regula o direito privado, o direito civil). (ZAFFARONI, 2012, p. 41).

Boaventura de Souza Santos (2014, p. 71) indica esse potencial transformador que a solução comunitária dos litígios pode proporcionar:

É sabido que a individualização dos conflitos é de importância fundamental para a caracterização da dominação jurídico-política numa sociedade de classes. O fato de o cidadão isolado ser o único sujeito reconhecido dos

108 Como por exemplo as consequências no que se refere ao exercício dos direitos políticos conforme o art. 15, III da Constituição Federal Brasileira.

109 A ideia central aqui é que as pessoas que cometem crimes devem ser chamadas a prestar contas como cidadãos, devem assumir um papel ativo que envolve certos deveres, e a punição deve sempre incluir uma promessa de recuperação do status completo de cidadania (resultado, então especialmente das chamadas "consequências colaterais" da punição penal). Por sua vez, outros cidadãos têm o dever de tratar o infrator como membro da comunidade política em todas as etapas desse processo e também depois de concluído. (tradução nossa).

110 “A coroa passou a impor sua pretensão de guardiã da paz. Bastou mais um pequeno passo para alegar que, quando a paz fosse violada, o Estado era a vítima. Não é de surpreender que o papel e as pretensões das vítimas tenham se perdido nesse processo”. (ZEHR, 2008, p. 105).

conflitos juridicamente relevantes coloca fora da prática oficial as relações de classe – não só aquelas que eventualmente contribuíram para a criação do litígio, como também as que intercedem na resolução deste.

O envolvimento comunitário pode variar de acordo com a prática adotada, por exemplo na chamada VOM (Mediação Vítima Ofensor), não há obrigatoriamente a participação da comunidade, mas apenas das partes e de um mediador, enquanto nos círculos há uma abertura bastante maior para a participação comunitária, incluindo vizinhos, colegas de trabalho ou de escola, profissionais de redes de proteção, etc.

No que se refere à participação e responsabilização da comunidade, nova problemática surge no que se refere ao que se entende por comunidade e se nos dias de hoje ainda existiria comunidade. Nils Christie aponta essa questão como um dos obstáculos para a transformação do sistema de justiça ocidental, verificando o impacto exercido na vida social pelo modo de produção capitalista, pela segmentação das pessoas em grupos, promovendo a morte da vizinhança ou da comunidade local. Por outro lado, o autor acredita que um modelo de justiça que entenda que o conflito não é privado mas pertence à própria comunidade pode ter o potencial de a revitalizar (CHRISTIE, 1977, p. 12).

Práticas restaurativas proporcionam inclusive que comunidades com características culturais específicas, possam lidar com seus conflitos de forma a preservar a cultura.

Entretanto, Lola Aniyar de Castro, ao comentar sobre o que chama de “justiça participativa”, alerta sobre o fato de que esta poderia reproduzir as mesmas lógicas de busca de castigo, seja para ensinar uma lição, curar, ou controlar o criminoso, conforme já faz a justiça retributiva. Isso poderia configurar apenas um “teatro” de participação comunitária, remanescendo apenas como mais uma forma de controle social, principalmente em sociedades de cultura punitivista (CASTRO, 2005, p. 139). A autora alerta ainda para a promoção de um estado de vigilância permanente entre as pessoas (CASTRO, 2005, p. 144), e que não se deve depositar demasiada fé na racionalidade dos indivíduos (p. 146). Neste contexto, prescindir totalmente do sistema penal poderia ser extremamente traumático, ao que é necessário se dar atenção, no que se refere à Justiça Restaurativa111.

111 Esta problemática não é o objeto principal do presente trabalho, mas de fato a reflexão sobre a comunidade na Justiça Restaurativa é relevante, considerando-se a possibilidade da comunidade ser mais repressiva do que o sistema tradicional de justiça, como se vê, por exemplo, em notícias sobre