• Nenhum resultado encontrado

3 JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO UMA NOVA ABORDAGEM DE

3.6 JUSTIÇA RESTAURATIVA E EMPODERAMENTO

Conforme já comentado, a proximidade entre Justiça Restaurativa e Empoderamento se evidencia na literatura sobre o tema e deve ser buscada em suas práticas para que efetivamente se trate de prática restaurativa.

Essa relação entre o papel desempenhado pelos envolvidos em um conflito nos debates e adesão a compromissos sobre ele está presente desde um dos textos fundamentais nas discussões sobre a Justiça Restaurativa, o texto Conflict as

Property de Nils Christie (1977). O próprio título já traz a noção de que o conflito é

algo de que as pessoas devem se apropriar. Afirma o autor que o conflito deve trazer alguma utilidade e esta utilidade deve se dar exatamente para aqueles originariamente envolvidos no conflito. Assim também reflete Louk Hulsman (1993), afirmando que

quando um conflito chega ao sistema penal as pessoas envolvidas recebem etiquetas de “vítima” ou de “delinquente”, e os fatos por elas experimentados passam a ser narrados por outras pessoas, como um conflito abstrato entre alguém e o Estado, desta forma “o sistema penal trata de problemas que não existem” (HULSMAN, 1993, p. 83), entre "indivíduos fictícios" numa “interação "fictícia" (1993, p. 153; 2012, p. 45)132. Sugere o autor:

Seria preciso devolver às pessoas envolvidas o domínio sobre seus conflitos. A análise que elas fazem do ato indesejável e de seus verdadeiros interesses deveria ser o ponto de partida necessário para a solução a ser procurada. O encontro cara-a-cara deveria ser sempre possível, pois as explicações mútuas, a troca das experiências vividas e, eventualmente, a presença ativa de pessoas psicologicamente próximas, podem conduzir, num encontro desta natureza, a soluções realistas para o futuro. (HULSMAN, 1993, p. 103).

Retornando a Nils Christie, o texto segue afirmando sobre como a justiça não promove esta apropriação pelas partes, ao contrário, as distancia de seus próprios problemas, desde a localização dos prédios dos fóruns e tribunais, à dificuldade em, já dentro de um fórum, encontrar o local de realização de uma audiência, até o fato de que as pessoas ali estão representadas: “The key element in a criminal proceeding is

that the proceeding is converted from something between the concrete parties into a conflict between one of the parties and the state133”. (CHRISTIE, 1977, p. 3). A vítima perde sua causa para o Estado.

Recente relatório sobre mediação e conciliação no Brasil verificou como muitos fóruns mantém práticas que afastam as pessoas que buscam pelos serviços jurisdicionais:

Outra informação relevante se refere à determinação de vestimenta utilizada para acessar o local. Há fóruns (Morro Agudo, Serrana, Santa Rosa-SP) que contam com placas já na grade da rua com o código de vestimenta a ser usado no local. Em regra, se trata de evitar shorts curtos, blusas decotadas, chinelos e bonés. Em alguns fóruns, há uma mesa logo na entrada onde os bonés e chapéus devem ser deixados. Em que pese a preocupação com a formalidade do ambiente, essas determinações podem afastar o jurisdicionado e deixá-lo desconfortável ou agressivo. (CNJ, 2019a, p. 162).

Nils Christie reconhece que esse distanciamento se deu por justificativas que têm a sua validade, como a necessidade do Estado minimizar o conflito, mas que isto

132 “A justiça criminal segmenta, de modo artificial, o que vai em nossos corações”. (HULSMAN, 2012, p. 62).

133 O elemento chave em um processo penal é que o processo é convertido de algo entre as partes concretas em um conflito entre uma das partes e o Estado. (tradução nossa).

também demonstra a intenção de conservação de poder que é promovida pela profissionalização daqueles que trabalham com o conflito e afirma que “lawyers are

particularly good at stealing conflicts”. (1977, p. 4)134. Advogados roubam o conflito

das partes, trazendo a sua própria narrativa dos fatos e determinando o que as pessoas podem ou não podem relatar sobre eles. A vítima deixa de existir e o réu é transformado em um objeto135, tanto é que a palavra réu vem do latim res, coisa.136

Tanto a Criminologia que identificava as raízes do crime no próprio réu, o objetificando137 e patologizando como a Criminologia que vê o conflito como

demonstração de um conflito maior, de classes, afastam dele os seus verdadeiros donos (1977, p. 5)138. A justiça privada, mais comunitária, anterior à formação do

Estado Moderno teria maior preocupação com a reparação da vítima, enquanto a justiça pública busca apurar culpas para aplicar punições (BRITTO, 2017, p, 57).

Gabriel Ignacio Anitua descreve este mesmo processo de forma semelhante ao comentado anteriormente no item sobre a concepção de Estado e controle que permeia o funcionamento da justiça retributiva, Anitua traz a formação do Estado Moderno relacionada com a “expropriação do conflito” (2008, p. 37)139, que Vera

Malaguti Batista (2012, p. 24) descreve como o “confisco do conflito da vítima”. O autor descreve como a formação do Estado moderno significou o desmanche dos poderes locais anteriores à centralização do poder em um Estado nacional, assim, “a prática punitiva foi talvez, a mais importante para permitir a substituição dos exercícios de ‘justiças’ e ‘poderes’ locais. Em tudo isso interveio um processo de racionalização” (ANITUA, 2008, p. 38). Essa racionalização é descrita pelo autor não como um movimento de diminuição da violência na punição, mas apenas de “profissionalização

134 Advogados são particularmente bons em roubar conflitos. (tradução nossa).

135 “O procurador ‘duplica’ a vitima e o ofensor é anulado e passa a ser um objeto – ‘réu’ vem do latim

res, coisa – da investigação. [...] O acusado deixa de ser sujeito na relação e passa a ser um objeto ou

dado da mesma”. (ANITUA, 2008, p. 45).

136 “We have, in criminology, to a large extent functioned as an auxiliary science for the professionals

within the crime control system. We have focused on the offender, made her or him into an object for study, manipulation and control”. [Nós temos, em criminologia, em grande parte funcionado como uma

ciência auxiliar para os profissionais dentro do sistema de controle do crime. Nós nos concentramos no ofensor, transformamos ele ou ela em um objeto para estudo, manipulação e controle]. (tradução nossa).

137 “Objetualização dos sujeitos originais do processo”. (SANTOS, 2014, p. 33).

138 O relatório “Entre Práticas Retributivas e Restaurativas: A Lei Maria da Penha e os Avanços e Desafios do Poder Judiciário”, realizado pelo CNJ traz interessantes reflexões especificamente sobre a situação da mulher vítima de violência a quem foram reduzidas as possibilidades de optar por soluções consensuais de seus conflitos, a partir da Lei 11.340/2006 – Lei Maria da Penha. (CNJ, 2018c, p. 25).

139 Eugenio Raul Zaffaroni se refere a este mesmo tema falando sobre uma verticalização do poder punitivo, com sua “corporativização” e funções hierarquizadas. (2012, p. 42).

e burocratização dos órgãos encarregados de administrar o poder”. (2008, p. 39)140.

Esta burocracia substitui “a própria comunidade nas atividades sociais e, entre elas, nas atividades jurisdicionais”. (2008, p. 41):

Afirmou-se a investigação de ofício e vítima e comunidade viram-se despossuídas de seu papel no processo de resolução de conflitos. Mais do que usurpar a função jurisdicional, o Estado e o Direito – o rei e seus juristas especializados – apropriaram-se das relações de poder interpessoais, do próprio conflito. [...] A decisão sobre a existência do delito e necessidade do castigo seria uma ‘sentença’ emitida em nome da ‘verdade’ determinada pelo Estado e não pelos indivíduos”. (ANITUA, 2008, p. 42-43).

Neste mesmo sentido, Vera Malaguti Batista (2012, p. 25) vê a violência como fruto do excesso e não da falta de civilização.

Observa-se assim como a Justiça Restaurativa representa uma proposta de devolução do conflito aos seus verdadeiros donos, considerando o protagonismo por ela propugnado para a vítima, ofensor e também a comunidade.

Nils Christie sustenta que ao se negar às partes e à comunidade o envolvimento com a solução de seus próprios conflitos há ainda mais uma grande perda social, a perda do incentivo à participação cidadã: “conflicts represent a potential

for activity, for participation” (1977, p. 7)141, essa atividade, participação dos indivíduos

nas discussões que lhes dizem respeito, nada mais é do que empoderamento. Perde- se a oportunidade de dar verdadeiro significado à lei, de se esclarecer seu verdadeiro sentido em uma discussão contínua que poderia ter excelentes efeitos pedagógicos (1977, p. 8). À vítima, a quem não se oportuniza um verdadeiro encontro com o ofensor, restam apenas estereótipos de um criminoso e o medo de voltar a ser vitimizada. O ofensor perde a oportunidade de apresentar as razões de suas ações e de sugerir o que poderia fazer para diminuir o mal causado (1977, p. 9). Permitir o encontro entre as partes, quando for a vontade da vítima, proporciona ao autor um tipo de responsabilização que não permite a neutralização.142 (1977, p. 9).

140 Boaventura de Souza Santos também comenta sobre essa “profissionalização dos agentes e burocratização institucional”. (2014, p. 30).

141 Conflitos representam um potencial de atividade, de participação. (tradução nossa).

142 A Teoria das Técnicas de Neutralização é trabalhada pela Criminologia associada às teorias sobre Subculturas Criminais e Associações Diferenciais. Os indivíduos internalizam valores das subculturas a que pertencem, de forma que sentem-se legitimados a praticar os crimes que praticam, neutralizando sua autoconsciência mediante mecanismos denominados técnicas de neutralização, como a negação da responsabilidade, a negação do dano, a negação da vitimização, a condenação daqueles que os condenam e a apelação a alguma lealdade superior. “O encontro com as vítimas, dentro de um modelo de justiça restaurativa, tornaria muito mais difícil manter construções ficcionais deste tipo”. (ROLIM, 2006, p. 245).

Nils Christie à época da conferência que se transformou no texto aqui citado, não fez ainda referência à nomenclatura Justiça Restaurativa, mas é possível detectar em seu pensamento os princípios do que hoje assim se chama. Trata-se de modelo de solução de conflitos em que seus verdadeiros donos tomam as principais decisões, são os que efetivamente exercem poder, reduzindo a dependência em relação a profissionais ao máximo possível, permitindo que as pessoas representem a si mesmas e julguem seus problemas e que, quando juízes forem necessários, estes sejam seus iguais. (CHRISTIE, 1977, p. 11).

Empoderar as partes e a comunidade abre espaço para o reconhecimento de uma produção jurídica não necessariamente estatal, bem como uma concepção democrática do Direito, sendo que decisões tomadas a partir de modelo de mediação têm um maior potencial de adesão. (SANTOS, 2014, p. 26; 32). “Este elemento participativo e democrático é considerado a pedra de toque do modelo (restaurativo). ” (ANDRADE, 2014, p. 336). Antony Duff trata do mesmo tema afirmando que o Direito Penal deve estimular uma noção de “autogobierno143” nos cidadãos (2015, p. 16).

Empoderamento pode assim ser visto como:

Social action process that promotes participation of people, who are in positions of perceived and actual powerlessness, towards goals of increased individual and community decision-making and control, equity of resources, and improved quality of life. (WALLERSTEIN apud MAYO, 2000, p. 160).144

Essa posição de impotência pode ser exatamente a situação em que se encontram vítima e autor de um ilícito penal perante o conflito que compartilham.

Verificando a importância do diálogo na construção do empoderamento, afirma ainda Nina Wallerstein (2006, p. 18) que empoderamento tem foco na remoção de barreiras formais ou informais, e na transformação das relações de poder entre comunidades, instituições e governo, o que seria fortalecido pelo diálogo.

A partir desta noção de empoderamento das partes, de menor profissionalização dos envolvidos na solução de conflitos, de reconhecimento de que o Estado não é o primeiro ofendido perante um ilícito penal, mas que isto é uma artificialização do conflito, é possível discutir propostas como da mitigação da

143 Autogoverno (tradução nossa).

144 Processo de ação social que promove a participação de pessoas que estão em posições de impotência percebida e real em direção a metas de maior tomada de decisões e controle individual e comunitário, equidade de recursos e melhoria da qualidade de vida. (tradução nossa).

obrigatoriedade da ação penal e do papel exercido pelo Ministério Público (TIVERON, 2014, p. 388-406) e pelas partes neste contexto.

O empoderamento proporcionado pela Justiça Restaurativa vem em favor tanto da vítima como do ofensor:

Para combater a mentalidade de que os conflitos são melhor administrados por profissionais, a vítima precisa se sentir empoderada para “reassumir” o seu próprio conflito, pronunciando-se sobre como ela acha que o seu próprio caso deve ser resolvido. Por outro lado, ao invés de aceitar passivamente a sua punição, o infrator deve ser empoderado para “assumir” o seu comportamento e encarar as consequências de suas ações, reparando os danos que provocou a indivíduos e relacionamentos. (CNJ, 2018c, p. 253).

Por outro lado, não se pode negligenciar a reflexão acerca do perfil da clientela da justiça criminal brasileira e quais seriam suas efetivas possibilidades de compreender os processos de que são vítimas e autores e de se responsabilizar por suas consequências. Para além de uma nova política criminal que devolva os conflitos a seus verdadeiros donos são evidentemente necessárias outras tantas políticas públicas que possam lhes promover o que anteriormente apresentamos como agency, a capacidade de tomar decisões propositadas. Neste sentido, bastante forte a constatação de André Giamberardino ao debater sobre a possibilidade de construção de consensos dentro do contexto social dos países latino-americanos, afirmando, a partir de reflexões de Enrique Dussel, que, “para falar é preciso comer”. (2015, p. 113)145.

Retomando-se a noção acima exposta de empoderamento em dois aspectos, tanto como impulsionamento de grupos e comunidades ou como inclusão de marginalizados (GOHN, 2004, p. 23)146, o presente trabalho propõe então que a

145“While participation forms the backbone of empowering strategies, participation alone is insufficient and can be manipulative and passive, rather than active, empowering and based on community control. It can be viewed as utilitarian, i.e., to assure program efficiency, rather than empowering with goals to reduce social exclusion. Participatory methods themselves at a local level may be limited – engaging community members as no more than informants – or may obscure the need for analysis of larger institutional structures and policies which can override local determinants of well-being.” [Enquanto a

participação constitui a espinha dorsal das estratégias de empoderamento, a participação sozinha é insuficiente e pode ser manipuladora e passiva, ao invés de ativa, empoderadora e baseada no controle da comunidade. Pode ser vista como utilitária, ou seja, para assegurar a eficiência do programa, ao invés de capacitar para reduzir a exclusão social. Os próprios métodos participativos em nível local podem ser limitados - engajar os membros da comunidade como não mais do que informantes - ou podem obscurecer a necessidade de análise de estruturas institucionais e políticas maiores que possam anular os determinantes locais do bem-estar]. (WALLERSTEIN, 2006, p. 9, tradução nossa). 146 Na continuidade do artigo a autora comenta ainda sobre o papel desempenhado por OSs Organizações Sociais e as OSCIPs- Organizações da Sociedade Civil de Interesse Público, fazem parte de um novo modelo de gestão pública e, a longo prazo, a reforma do Estado prevê que toda a área

temática da Justiça Restaurativa está diretamente relacionada ao empoderamento nos dois aspectos, seja incentivando grupos e comunidades para tratar de seus conflitos para além do Estado, seja promovendo a inclusão de uma camada bastante estigmatizada em sociedade, qual seja, a dos autores de ilícitos penais. Conclui ainda a mesma autora:

Tudo isso pode ser resumido na expressão: participação cidadã, aquela que redefine laços entre o espaço institucional e as práticas da sociedade civil organizada, de forma que não haja nem a recusa à participação da sociedade civil organizada, nem a participação movida pela polaridade do antagonismo

a priori, e nem sua absorção pela máquina estatal, porque o Estado

reconhece a existência dos conflitos na sociedade e as divergências nas formas de equacionamento e resolução das questões sociais, entre os diferentes grupos, e participa da arena de negociação entre eles (GOHN, 2004, p. 29).

Assim, faz-se necessário observar se a relação teórica possível entre empoderamento e Justiça Restaurativa se demonstra empiricamente nas experiências já em andamento no Brasil sobre o tema.

social deve adotar essas nova lógica e forma de operar na administração pública propriamente dita. [...] A ampliação da esfera pública contribui para a formação de consensos alcançados argumentativamente, numa gestão social compartilhada, gestada a partir de exercícios públicos deliberativos (GOHN, 2004, p. 28). A Justiça Restaurativa poderia representar mais um desses espaços do novo modelo de participação social.

4 CARACTERIZAÇÃO DE EXPERIÊNCIAS BRASILEIRAS DE JUSTIÇA