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Atenção às necessidades e responsabilidades da vítima

3 JUSTIÇA RESTAURATIVA COMO UMA NOVA ABORDAGEM DE

3.3 PRINCÍPIOS E VALORES DA JUSTIÇA RESTAURATIVA

3.3.1 Atenção às necessidades e responsabilidades da vítima

Quanto ao foco nas vítimas, relevante pontuar o que anteriormente foi comentado sobre a relação entre as lutas por direitos, notadamente das mulheres, e o surgimento da Justiça Restaurativa, considerando terem sido os movimentos feministas os primeiros a criticar a falta de atenção dedicada às vítimas em processos criminais, notadamente em situações que envolviam abuso sexual de mulheres e crianças. (DALY; IMMARIGEON, 1998, p. 5).

A maneira como muitas vezes as vítimas são tratadas, deixadas em segundo plano na discussão de um fato em que foram uma das principais partes, ocasiona o que se chama de “vitimização secundária”, ou seja, além de já ter sido atingida pelo crime, a pessoa tem pouca participação nas decisões sobre ele, ou tem sua dor minimizada ou ignorada. (ZEHR, 2008, p. 23). Ser vítima de um ilícito penal pode ser uma experiência de perda do controle sobre a própria vida e a forma como o Estado tradicionalmente reage reforça a perda de poder, tratando-a como “nota de rodapé do processo criminal” (ZEHR, 2008, p. 31 e p. 79), sendo inclusive interessante pontuar que isso não depende da maior ou menor gravidade do crime e nem pode ser mensurado de forma objetiva, meramente pela quantidade de pena abstratamente prevista para a conduta.

104 Em contraste com a natureza agressiva dos nossos atuais sistemas de justiça, a justiça restaurativa se concentra em três grupos de clientes: vítimas de crimes, infratores e membros da comunidade. (tradução nossa).

Zaffaroni também faz essa crítica quanto à atenção dada à vítima, afirmando que o poder punitivo exerce uma “confiscacion de la vitima”105, não tendo condições

de resolver o conflito porque mantém uma das partes excluída (2013, p. 30):

A vítima foi substituída pelo senhor [Estado ou poder político]. O senhor passou a selecionar conflitos e, frente a eles, afastou a vítima afirmando a

vítima sou eu. Desse modo, o poder político passou a ser também poder

punitivo e a decidir os conflitos, sem contar em nada com a vítima, que desapareceu do cenário penal, salvo algumas aparições como extra e, no melhor dos casos, como ator convidado. (ZAFFARONI, 2012, p. 63).

Ao mencionar as necessidades das vítimas, Howard Zehr comenta sobre a “restauração no âmbito simbólico”, afirmando que “as vítimas precisam também de empoderamento. Seu sentido de autonomia pessoal lhes foi roubado e precisa ser restituído” (2008, p. 26-27), aponta algumas das necessidades sentidas pelas vítimas: - Informação: a vítima sente a necessidade de que alguém lhe responda questões como “por que aconteceu comigo?” e “o que aconteceu depois?”;

- Falar a verdade: necessidade de contar o que se passou, em especial, a quem lhe causou o dano, para que entenda as consequências de suas ações;

- Empoderamento: é comum, depois de ter se tornado vítima de um ilícito penal, que a pessoa deixe de fazer o que fazia antes do ocorrido, em razão do medo. O empoderamento diz respeito à necessidade de retornar ao estado anterior, ou seja, que o medo não prive a vítima de fazer aquilo que fazia antes;

- Restituição patrimonial: necessidade de reparação do dano, mesmo que simbolicamente (ZEHR, 2012).

A reação deve ser um esforço construtivo, em que o autor da ofensa oferece algo dele para satisfazer as necessidades da vítima (EGLASH, 1958, p. 619). Porém, sempre que essa decisão “criativa” não vier da participação dos envolvidos, ela perdeu a sua dimensão restaurativa. “Search for meaning and some measure of closure in the

wake of trauma”, justificam o interesse na participação: “To possibly help the offender, to hear why the offender did the crime, to communicate to the offender the impact of the crime, and to be sure the offender would not return to commit a repeat offense”.

(UMBREIT, 2015, p. 271).106

105 Confisco da vítima. (tradução nossa).

106 Busca de significado e alguma medida de encerramento do trauma. Possivelmente, ajudar o infrator, ouvir por que o infrator fez o crime, comunicar ao infrator o impacto do crime, e para ter certeza de que o agressor não voltaria a cometer uma ofensa reiterada. (tradução nossa).

Pesquisas têm demonstrado que uma das principais necessidades da vítima é de fato a informação tanto sobre a ofensa sofrida, como dos procedimentos para a solução do conflito, quanto das consequências futuras (CNJ, 2018c, p. 254). Assim:

Pretende-se extrair das vítimas o sentimento de ser ignoradas, negligenciadas e agredidas pelo próprio sistema de justiça, o que requer acentuado avanço no movimento de reinserção dos interesses da vítima no processo judicial, através de instrumentos capazes de assegurar o efetivo direito à sua participação. (BEZERRA, 2017, p. 154).

Há situações em que sequer a família da vítima tem a real noção do sofrimento por ela experimentado e a participação em intervenção restaurativa dá oportunidade não apenas à compreensão por parte do ofensor quanto ao mal causado, como à família ou comunidade da vítima quanto ao apoio que podem oferecer. Pontue-se que a estigmatização e os estereótipos promovidos pelo sistema atingem também a vítima, seja pelo tipo de ofensa, seja por se acreditar que todas as vítimas têm as mesmas necessidades (HULSMAN, 1993, p. 84), por exemplo, entender-se que a reparação financeira seria o principal interesse, ou que toda vítima de violência doméstica deseja a privação de liberdade do ofensor. O sistema “operando em abstrato, causa danos inclusive àqueles que diz querer proteger”. (HULSMAN, 1993, p. 84, 114).

Importante pontuar também a necessidade de segurança que deve ser garantida à vítima quando esta optar pelo encontro com o ofensor.

Optar pelo encontro, decidir sobre um acordo permitem que a vítima assuma responsabilidades perante o ilícito penal, não no sentido de verificar em que medida teria contribuído na própria vitimização e sim na possibilidade de reassumir o papel de protagonista na tomada de decisões em sua vida ao compreender o mal sofrido.

Há ainda que se pensar sobre a possível contribuição da Justiça Restaurativa à vítima nos casos em que o ofensor não é localizado ou não aceita participar.