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Atitudes oficiais da Austrália branca em relação aos povos indígenas

Desde o início da ocupação inglesa na Austrália, encorajou-se que crianças de origem indígena, principalmente as mestiças (half cast), consideradas mais capazes de se assimilar, fossem removidas de suas famílias. Acreditava-se que teriam mais chances de se desenvolver intelectualmente em reformatórios ou quando adotadas por famílias brancas. Uma lei determinando a transferência compulsória de crianças aborígines para “centros educacionais”, em que deveriam ser “civilizadas”, vigorou entre 1910 e 1960. As meninas eram treinadas para trabalhar como serviçais domésticas e os meninos, nas fazendas de gado. Embora tal prática tenha sido recorrente até meados da década de 1970, não era de amplo conhecimento da população australiana até recentemente75.

Foi apenas em 1995, sob pressão de entidades indígenas, que se realizou a primeira pesquisa nacional sobre o assunto, intitulada The National Inquiry into the Separation of Aboriginal and Torres Strait Islander Children from their Families. O relatório produzido a partir dessa pesquisa, em 1997, ficou conhecido como Bringing them home e contém informações estarrecedoras: estima-se que, até os anos 1970, entre 20 e 30% das crianças indígenas na Austrália tenham sido arrancadas à força de suas famílias; grande parte dessas crianças teve de realizar trabalhos forçados na juventude ou sofreu abuso sexual; na idade adulta, muitas delas se tornaram alcoólatras ou criminosos. São as chamadas stolen generations, cujos membros têm, hoje, entre 40 e 90 anos.

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As crianças aborígines eram levadas por oficiais, normalmente, quando tinham entre 2 e 4 anos de idade. Os pais biológicos, muitas vezes, assinavam papéis que não compreendiam bem, cedendo a guarda involuntariamente. Em seguida, as famílias brancas adotivas e os educadores dos orfanatos eram informados de que aquelas crianças não possuíam famílias ou de que seus pais biológicos não tinham condições de criá-los. Dessa forma, havia brancos pensando que estavam fazendo uma boa ação ao aceitarem receber crianças aborígines e mestiças, assim como havia crianças que realmente pensavam que eram órfãs.

Os depoimentos incluídos no documento Bringing them home76 são terríveis: há relatos de meninas estupradas e depois obrigadas a abortar; de pessoas que erraram de prisão em prisão a vida toda; e um caso que parece ficção, de um menino tirado aos 3 meses de idade dos braços de sua mãe, que nunca se adaptou a família ou instituição nenhuma e que só se sentiu bem uma vez na vida, em um trem, ao lado de uma mulher de pele escura em cujo colo deitou. Muitos anos depois, descobriu que aquela mulher do trem – que nunca mais reviu – era sua mãe.

O recorte de jornal a seguir, publicado em Darwin, nos anos 1930, mostra crianças mestiças à espera de adoção. Uma anotação feita à mão, embaixo do anúncio, comenta: “gosto mais da pequena do meio, mas, se ela já tiver sido levada por alguém, qualquer uma serve, contanto que seja forte”.

Figura 29. Crianças mestiças em orfanato, à espera de adoção. Anúncio publicado em jornal de Darwin, na década de 1930.

Em 2002, Valerie Linow77, filha de aborígines e residente em New South Wales, conseguiu a primeira indenização da história da Austrália, no valor de 35 mil dólares78, por ter sido raptada aos 16 anos e submetida a violências de várias naturezas. Desde então, processos similares vêm sendo movidos por membros das “gerações roubadas”. Também existem hoje, em todos os estados australianos, organizações chamadas Link-up, que ajudam a reunir membros de uma mesma família separados pela violência da colonização; desenham árvores genealógicas e registram depoimentos orais.

A artista aborígine Julie Dowling [1969] centra sua produção pictórica na temática dessa separação familiar imposta a seus antepassados. A tela “Ícone para uma criança roubada: fetiche” cruza tradições artísticas para falar do encontro trágico entre brancos e indígenas.

Figura 30. Julie Dowling. “Icon for a stolen child: Fetish”. 1988.

Acrílico e pigmento natural sobre tela 40,5 X 27,5 cm. Coleção particular. Publicado em:

http://www.emsah.uq.edu.au/awsr/new_site/awbr_archive/144/uncanny.htm

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Os nomes Valerie Linow e Julie Dowling não soam indígenas e isso ocorrerá outras vezes. Na Austrália, muitos aborígines têm nomes ingleses, pois foram batizados por missionários e/ou adotados por brancos.

78 O valor não é grande. Em 2009, por exemplo, a australiana branca Malgorzata Poniatowska recebeu U$ 450.000,00 por ter sido assediada sexualmente por dois colegas de trabalho (ABC NEWS, 2009).

Em alguma medida, a construção da tela reproduzida na Figura 30 lembra um ícone bizantino, com a auréola dourada em torno da cabeça e as asas angelicais. Nas faixas brancas que preenchem o fundo, a oração “Pai Nosso” está escrita em inglês. No entanto, o rosto da criança é negro e seu corpo é preenchido por pontos, no estilo característico da pintura do Deserto Ocidental. Além disso, o título remete diretamente à “geração roubada”. Trata-se claramente de uma crítica à atuação de alguns dos missionários religiosos, que contribuíam com o governo federal no sentido de desmantelar etnias e reprimir as práticas culturais nativas.

O direito ao voto foi concedido aos indígenas, na Austrália, em 1962. Em 1972, a bandeira da “autodeterminação” passou a predominar, no lugar da “assimilação”, modificando o perfil de todas as políticas públicas. “Audoterminação” significa que as decisões devem ser tomadas, sempre que possível, pelas próprias comunidades indígenas, e que sua perspectiva deve ser levada em consideração em todas as esferas. Emblemático nesse sentido é o programa Circle Sentencing. Inspirando-se na experiência canadense, a Austrália adotou um procedimento por meio do qual os réus indígenas passaram a ser julgados por um grupo formado por líderes de sua comunidade, representantes da justiça, um mediador e, às vezes, também a vítima. Procura-se chegar a uma pena alternativa, que faça sentido culturalmente e que evite a longa permanência em prisões, já que a taxa de mortalidade de prisioneiros indígenas é bastante alta.

No que concerne ao direito à terra, o ano de 1982 foi um grande marco, porque o primeiro processo desse tipo foi ganho por uma comunidade indígena, no Estreito de Torres. O processo abriu precedente e, onze anos depois, foi publicado o Native Title Act, prevendo que grupos indígenas possam reivindicar a posse de terras pertencentes à União ou a particulares, junto a um tribunal específico, contanto que demonstrem ligações ancestrais com aquele local, e forneçam provas da continuidade de práticas e valores tradicionais, mesmo que em “versões modificadas”. Um fundo criado em 1995 pelo governo federal destina até 50 milhões por ano à compra de terras indígenas ganhas por meio desse processo (ARTHUR e MORPHY, 2005).

Mapa 4. Proporção de terras indígenas por estado. Fonte: ARTHUR e MORPHY (2005).

O ápice da tentativa de reconciliação simbólica dos brancos com os indígenas foi o pedido público de desculpas do Primeiro-Ministro Kevin Rudd, em fevereiro de 2008: "Pedimos desculpas pelas leis e políticas de sucessivos governos que infligiram profundo sofrimento aos australianos (…). Às mães, pais, irmãos e irmãs, pela erosão de suas famílias e comunidades, pedimos perdão” 79.

No entanto, ventos de retrocesso voltaram a soprar no Parlamento Australiano, preocupando antropólogos e ativistas, principalmente por causa de uma intervenção federal no Território do Norte, estabelecida em 2007, sob o rótulo Northern Territorry Emergency Response. Trata-se de um conjunto de medidas que visam a diminuir o gap estatístico entre as condições de vida de australianos brancos e indígenas, tomando a modernidade euroamericana como padrão a ser seguido.

79 No original: "We apologize for the laws and policies of successive Parliaments and governments that have inflicted profound grief, suffering and loss on these our fellow Australians (…) To the mothers and the fathers, the brothers and the sisters, for the breaking up of families and communities, we say sorry". Fonte: Jornal The Washington Post, 13/02/2008. Disponível em: http://www.washingtonpost.com/wp- dyn/content/article/2008/02/12/AR2008021202351.html. Acesso em 19/07/2010.

Foi proibido, em primeiro lugar, o consumo de álcool. Vetou-se a circulação de material pornográfico, em razão de denúncias – não comprovadas – de abuso sexual infantil em algumas comunidades. Outra medida obriga a população indígena a se submeter a exames médicos periódicos – sobretudo as crianças, para checar se foram abusadas. Desativaram-se as escolas que ficavam em pequenos povoados e acampamentos familiares remotos (outstations), para obrigar as famílias a se mudar para vilarejos e povoados maiores.

Com o mesmo objetivo de levar a uma maior concentração populacional, mas também para desencorajar a alta mobilidade desses povos – que mudam duas ou três vezes de casa durante o ano – interrompeu-se um antigo programa de subsídios à construção nas áreas remotas. Residências continuarão a ser subsidiadas apenas nos povoados e cidades, tendo como exigência um número de cômodos reduzido, para encorajar a organização em famílias nucleares pequenas – ignorando as extensas redes de parentesco tradicionais e a poligamia.

Por fim, o Programa de Empregos para o Desenvolvimento Comunitário (CDEP), que criava e financiava, com bastante êxito, empregos em atividades ligadas à vida da comunidade – guarda florestal ou marinha, apoio aos centros de arte, auxílio nos centros de saúde, manutenção de estradas e coleta de lixo, por exemplo –, foi reformulado para priorizar a capacitação em áreas profissionais que garantam melhor inserção no mercado de trabalho capitalista e competitivo.

O casal de antropólogos Howard e Frances Morphy lamentou, numa comunicação proferida em 2007, que se busque padronizar a vida dos cidadãos australianos com base em um único modelo de modernidade e bem-estar, desconsiderando diferenças culturais, e desprezando as diversas formas de adaptação e negociação que os povos indígenas empreenderam durante 200 anos de contato, sem precisar abandonar suas terras nem suas tradições:

There is a number of areas in which the economic focus of the Yolngu region has broadened in recent decades. The Indigenous arts and crafts industry is a generator of significant income (…). Land management programs have developed rapidly in recent years (…). There is also an embryonic tourist industry based on fishing and eco-cultural tourism. The continuing hunter-gather economy of Yolngu people living on homelands also needs to be taken into account as a component of the regional economy (…) and health status. From a Yolngu perspective their future community development requires the creation of economic opportunities and provision of education, infrastructure and housing where they live (MORPHY e MORPHY, 2007: 27-30).

Em suma, nas três últimas décadas do século XX, leis e políticas públicas voltadas às populações indígenas da Austrália, baseadas no pluralismo e na ideia de autodeterminação,

somadas à agência e à resiliência das próprias comunidades indígenas, que souberam encontrar compromissos e acomodações possíveis, constituíram um cenário que ajuda a explicar o florescimento de uma produção artística capaz de dialogar, simultaneamente, com a tradição ancestral e com as expectativas da Austrália branca.

No últimos cinco anos, porém, tem pairado no ar ameaças de que o princípio da autodeterminação – por retórico que seja, o menos nefasto na história das relações entre colonizadores europeus e populações indígenas da Austrália – dê, aos poucos, lugar à ideologia da igualdade estatística, que tentará, a qualquer preço, equiparar taxas de natalidade, mortalidade, urbanização, alfabetização e empregabilidade entre a população branca e os povos indígenas. É como se a ideologia assimilacionista nunca tivesse desaparecido por completo e voltasse, agora, com novas roupagens.

Não obstante, é praticamente consensual, entre funcionários do governo, acadêmicos e lideranças indígenas a visão de que o estímulo à criação artística tem tido efeitos positivos em termos de fortalecimento cultural e geração de renda – e essa também foi minha constatação durante a pesquisa de campo. Por isso, até o momento, as ações públicas de fomento à produção, exposição e comercialização de artes indígenas continuam operantes e relativamente bem- sucedidas. Convém, então, detalhá-las.