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Lojas de artefatos indígenas funcionaram dentro das missões religiosas, durante todo o período em que elas foram a principal interface entre os povos nativos da Austrália e a sociedade nacional, ou seja, desde a metade do século XIX até 1967. Em 1948, por exemplo, missionários metodistas abriram um centro de artes em Ernabella, com a finalidade de introduzir a economia de mercado nessa missão. Na década de 1960, algumas missões abriram lojas em Sydney e Melbourne. Mas, até esse momento, tratava-se de um negócio controlado por brancos e não relacionado ao sistema de artes euroamericano.

A arte aborígine “moderna” só tomou forma, na Austrália, nos anos 1970, devido a uma confluência de fatores (ALTMAN, 2003). Em primeiro lugar, conforme foi exposto nas páginas anteriores, a linha mestra do discurso do governo federal passou a ser a autodeterminação dos povos indígenas – ao invés da assimilação. Em segundo lugar, ocorreram as primeiras concessões

de terra para povos nativos, iniciando um movimento de migração dos aborígines de retorno a suas terras80 e de revitalização de tradições. Não se pode esquecer, também, de que o mercado internacional de arte “primitiva” estava em alta nesse período, conforme foi mencionado no Capítulo 1. As exposições “Magiciens de la Terre” e “Primitivism in XXth Century Art”, nos anos 1980, ajudaram a alavancar seu valor. Esse pode ter sido um fator adicional que levou o governo australiano e as organizações indígenas a apostarem na comercialização de artes indígenas.

Assim, foram criados dois novos órgãos públicos específicos para o fomento das artes indígenas. O Aboriginal Arts and Crafts, órgão estatal que funcionou de 1971 a 1991, era uma espécie de agência de promoção da arte aborígine, que, juntamente com o Aboriginal Arts Board, fundado em 1973 e hoje integrante do Australia Council for the Arts, empenhou-se em organizar exposições itinerantes dentro e fora da Austrália, a fim de formar públicos e mercados. Localmente, as duas entidades passaram a apoiar a criação de cooperativas para a comercialização de arte indígena, inspiradas nas lojas e centros culturais das missões, procurando, contudo, superar seu caráter paternalista e autoritário81.

Surgiu, então, um modelo que persiste até os dias de hoje, baseado numa rede de centros de arte espalhados pelo país, tendo como pilares o financiamento público da infra-estrutura e a autogestão das cooperativas de artistas indígenas. Os centros de arte foram peças-chave na

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Quando a primeira frota chegou à Austrália, em janeiro de 1788, os britânicos, não compreendendo o sistema de propriedade ali existente, e ávidos por anunciar a “descoberta” de um novo continente, declaram haver chegado a uma ‘terra nullius’, pertencente a ninguém. Essa era uma prática internacional, que permitia às nações colonialistas se apropriarem de regiões supostamente desocupadas, para uso produtivo. A única tentativa de negociação com os povos aborígines foi levada a cabo por John Batman, em 1834, que ofereceu dinheiro e objetos em troca de 200.000 hectares. No entanto, a Coroa logo anulou a transação, alegando que a Austrália pertencia à Rainha. Rapidamente, as terras foram ocupadas por fazendas. Alguns aborígines se tornaram peões e outros foram levados para reservas fechadas. Protestos de ativistas começaram a se fazer ouvir nos anos 1950 e 1960. Finalmente, em 1976, o

Aboriginal Land Rights Act devolveu 50% do Northern Territory a comunidades aborígines. Informações obtidas em

um sítio do governo australiano que tem um nome sugestivo: “Reconciliação”:

http://reconciliaction.org.au/nsw/education-kit/land-rights/. Acesso em 17/01/2011.

81 As lojas das missões se multiplicaram a partir da década de 1930, estimulando os nativos a produzirem objetos de cestaria, flechas etc. para o público externo. Não encontrei estudos comparativos entre tais lojas e os atuais centros de arte. Em linhas gerais, uma primeira diferença é a distribuição do lucro: no caso das missões, o dinheiro raramente chegava às mãos dos aborígines, ao passo que, nos centros de arte, cerca de metade da receita é repassada aos artistas. Uma segunda diferença é que, nas missões, não havia preocupação com o registro das histórias míticas relacionadas aos objetos produzidos, enquanto, nos centros de arte atuais, o registro em foto, vídeo e textos é uma atividade rotineira. A tomada de decisões, nas lojas de artesanato das missões, era feita exclusivamente por brancos. Hoje, nos centros de arte, existem conselhos diretores compostos por aborígines da comunidade, a quem o coordenador branco, em princípio, está submetido. Na prática, no entanto, pode acontecer de um coordenador de centro de artes ter atitudes paternalistas ou autoritárias, com vistas a sanar conflitos entre os artistas ou garantir sua adequação ao mercado.

criação de interesse pela arte indígena por parte do público australiano e no estabelecimento de condições logísticas adequadas, próximas aos locais de residência dos artistas82.

Se em 1980 existiam apenas 16 art centres, em 2002 o número chegou a 100 – mais concentrados em regiões remotas, como o Território do Norte e o Deserto Central, conforme se nota no Mapa 5, logo abaixo. A maior densidade de centros de artes em regiões tropicais e desérticas, distantes dos grandes centros, relaciona-se, de alguma maneira, à ideia de autenticidade da arte indígena – que, no senso-comum, seria tão mais “autêntica”, quanto mais isolados e “puros” forem os artistas e respectivas sociedades83.

A multiplicação dos art centres está ligada a uma decisão estratégica do governo australiano: utilizar a arte como ferramenta de desenvolvimento local e de integração. A decisão foi tomada em 1989, após a elaboração de um relatório, encomendado a um antropólogo da Australian National University, sobre os grandes potenciais do setor (ALTMAN, 2002).

Mapa 5. Rede de centro de artes no ano de 2001. Fonte: Aboriginal and Torres Strait Islander Commission 2001, ATSIC Annual Report 2000-2001.

82 O Capítulo 4 será inteiramente dedicado a tais centros de arte, um modelo bastante inovador, que talvez possa inspirar outros países.

Para representar, orientar e capacitar artistas e centros de artes indígenas, criaram-se duas associações. A Associação de Artistas Aborígines do Norte da Austrália Central – ANCAAA – foi fundada em 1987, por dezesseis centros de artes e cooperativas aborígines. Em 1992, sua sigla mudou para ANKAAA, com a entrada de organizações da região de Kimberley. Sediada em Darwin, essa associação agrega 5.000 artistas individuais das regiões de Tiwi Islands, Darwin/Katherine, Kimberley e Arnhem Land. Consta no estatuto da ANKAAA que seus objetivos são fortalecer as culturas indígenas; apoiar o desenvolvimento da cadeia produtiva das artes; fomentar novos talentos; e treinar jovens profissionais para atuar no segmento.

A Association of Central Australian Aboriginal Art and Craft Centres – Desart, por sua vez, surgiu em 1990 para dar assistência a centros de arte do Deserto Central. Sediada em Alice Springs, atende 43 cooperativas. Sua finalidade é fomentar iniciativas que atestem a proveniência das obras de arte, repassem a maior parte da receita aos aborígines, promovam a profissionalização do setor e a ética nas relações comerciais. Para atingir tais objetivos – que, como se nota, mesclam interesses da sociedade envolvente com os das comunidades aborígines –, as estratégias empregadas pela Desart são variadas: de organizações de feiras de arte a capacitações em gestão, passando pela construção de uma rede nacional e pela criação de canais de comunicação.

Tive contato com membros das duas entidades, que revelaram detalhes de seu funcionamento. Christina Davidson, diretora executiva (office manager) da ANKAAA, contou- me que suas atividades são totalmente custeadas por verbas públicas, mas que sua fundação foi fruto do desejo e da criatividade dos coletivos indígenas. O corpo diretor da ANKAAA é composto por 12 aborígines de diferentes comunidades, eleitos a cada 2 anos, que se reúnem trimestralmente para definir prioridades. A entidade edita uma revista chamada Backbone, com notícias sobre e para artistas aborígines, entre duas e três vezes por ano; redige releases para a imprensa sobre novas exposições; e representa os interesses dos artistas junto ao governo. Conseguiu, por exemplo, que se aprovasse em Camberra a publicação de um código de conduta para a comercialização de artes indígenas. A estrutura da ANKAAA se revelou mais modesta do que eu havia imaginado: conta com apenas 5 funcionários (brancos) que passam grande parte do tempo cuidando de questões burocráticas como prestações de contas e inscrições em editais84.

84 Adicionalmente, a ANKAAA criou o site www.aboriginalart.org, oferecendo um mapa interativo no qual estão marcadas as cidades em que há galerias ou centros culturais aborígines. Quando se passa o mouse em cima da cidade, aparecem os nomes dos centros e os seus contatos. Trata-se de uma iniciativa financiada com recursos públicos, dentro do Programa Networking the Nation, desenvolvido pelo Departamento de Comunicação, Informação,

A coordenadora-executiva da ANKAAA teceu considerações interessantes sobre os motivos da valorização da arte indígena na Austrália:

Um dos motivos é que os artistas aborígines têm o que dizer, seu trabalho é consistente, tem conteúdo, o que nem sempre acontece na arte contemporânea Ocidental. Além disso, a Austrália se apoiou na arte indígena para questionar a narrativa linear e excludente da história da arte convencional, baseada nas vanguardas européias, ao perceber que estava excluída dessa narrativa. Desde os anos 1980, a Austrália se empenhou em combater o provincianismo interno e em procurar incluir a Ásia e a Oceania no debate artístico internacional. Os movimentos artísticos aborígines foram fundamentais nesse processo85.

Christina Davidson explicou, ainda, que o perfil dos art centres é variado. Podem atuar como escolas de arte, desempenhar o papel de museus regionais, sediar associações de mulheres e até de presidiários. “O sucesso de um centro depende do preparo de seu coordenador86, e esse é um ponto delicado, porque poucas pessoas qualificadas aceitam se mudar para comunidades remotas, e o coordenador sofre tamanha pressão, que é grande o índice de burnout nessa função” (DAVIDSON, comunicação pessoal, 2010).

A Desart, sediada em Alice Springs e dirigida por um conselho diretor formado por 10 aborígines, tem estrutura tão reduzida como a ANKAAA: 4 colaboradores fixos e dois consultores externos, que prestam diversos serviços aos centros de arte, como a seleção e contratação de funcionários; assistência em tecnologia da informação; capacitações em planejamento e gestão; e realização de eventos como feiras e seminários87. O orçamento anual da Desart varia entre U$ 700.000,00 e U$ 1.400.000,0088 e sua equipe viaja uma média de 45.000 quilômetros por ano, em visitas aos art centres.

Tecnologia e Arte do Governo Australiano. Mais informações podem ser obtidas no endereço

http://www.ankaaa.org.au/. Acesso em 27/07/2009.

85 Entrevista realizada pessoalmente em Darwin, no dia 08/04/2010. Tradução minha. 86

Os coordenadores de centros de artes costumam ser formados em artes visuais, administração, direito, marketing ou educação, com experiência em gestão de instituições culturais ou no mercado de arte. O mais importante em seu perfil, segundo os depoimentos que colhi, é que tenha habilidades de diplomacia, abertura e paciência. O recrutamento é feito pelo website da Desart e o salário varia entre de U$5.000,00 e U$ 6.000,00 por mês, além de moradia na comunidade e veículo com tração nas quatro rodas à disposição.

87 A página da Desart na Internet disponibiliza uma brochura com todos os núcleos de artistas aborígines na Austrália: http://www.desart.com.au/. Acesso em 27/07/2009.

88 As cifras que aparecem ao longo da tese, precedidas de U$, referem-se ao dólar norte-americano. Optei por essa moeda, por ser mais comum no mercado de arte internacional do que o dólar australiano, permitindo comparações. A sigla do dólar da Austrália é AUD, e seu valor, em média, entre 5% e 10% inferior ao do dólar dos Estados Unidos.

Christine Godden, coordenadora de desenvolvimento da Desart, pontuou que a principal diferença entre a ANKAA e a Desart é que os membros da ANKAA são artistas individuais, ao passo que os associados da Desart são os centros de arte. Além disso, a ANKAA cobre o norte, e a Desart, o centro da Austrália. Mas as duas estão alinhadas. Desenvolveram, juntas, um banco com exemplos de práticas de gestão que deram certo nos centros de arte, chamado “Go Hunting”. Se por um lado essa sinergia entre a ANKAA e a Desart potencializa suas ações, por outro lado revela se tratar, em grande medida, de um projeto oficial do governo federal. O banco de boas práticas de gestão, por exemplo, com seus exemplos de ações bem-sucedidas a serem seguidas, pode acabar levando a uma padronização do funcionamento dos centros de arte, que desconsidere a diversidade local das comunidades e das práticas artísticas.

Não obstante, como sua colega da ANKAAA, Chistine Godden, da Desart, também enfatizou que os movimentos artísticos indígenas começaram sem qualquer apoio do governo e que esse apoio externo só veio, quando ficou claro que valia a pena investir em arte indígena. Mas ela teme pelo futuro da arte aborígine “de qualidade”.

Em Yuendumu, antes havia dez grandes artistas. Nove já morreram, agora só resta Shorty Jangala Robertson. Passaram, então, a explorar camadas inferiores do mercado, trabalhos mais voltados ao mercado turístico do que à fine art. O problema da venda para turistas, de uma maneira geral, é que as lojas demandam pinturas meramente decorativas e, assim, a arte aborígine arrisca deixar de ter conexões com o contexto cultural em que emergiu e de onde retira sua força89.

Christine ajudou-me a compreender a situação dos aborígines que vi em Alice Springs, vendendo pequenas pinturas nas calçadas. Eles vão do deserto para a capital se tratar e ficam em um dos 18 alojamentos nos arredores da cidade. Muitos não falam inglês e chegam famintos; sua única moeda de troca é a arte. “Um vem se tratar e a família toda acompanha – podem chegar a 30 pessoas. Precisam de dinheiro e começam a produzir quick paintings, que vendem nas ruas, para compradores pouco exigentes, pelo valor de uma refeição”. Mesmo assim, Christine Godden mostrou-se convencida de que focar as políticas públicas na produção de arte indígena é um bom caminho, pois “a arte dá um senso de orgulho e auto-estima”. Paralelamente, seria preciso melhorar as condições de saúde, educação e empregabilidade dos aborígines: “sem resolvê-las,

não adianta muito publicar um código de conduta ética para as galerias de arte comerciais” (GODDEN, comunicação pessoal, 2010).

De qualquer forma, o fôlego da produção de arte aborígine para o mercado resulta da confluência entre iniciativas indígenas, de um lado, e um suporte estatal relativamente eficiente, do outro lado, baseado nas diretrizes elaboradas pelo Aboriginal and Torres Strait Islander Arts Board, nos serviços prestados pela ANKAA e pela Desart e no repasse direto de subsídios federais aos centros de arte. As galerias particulares e os marchands têm papel igualmente importante nesse cenário, ao revenderem – garantindo uma boa margem de lucro – os trabalhos dos artistas aborígines nas grandes cidades da Austrália e no exterior. Esse é um campo atravessado por interesses diversos, e, em várias situações, pela desigualdade de poder. A legislação de propriedade intelectual, por exemplo, feita por brancos, não é adequada para a arte indígena; o fato de as cooperativas de artistas receberem subsídios públicos deixa-as numa situação de dependência; as preferências dos consumidores brancos influenciam diretamente aquilo que é produzido ou não nos centros de arte. Ainda assim, os artistas indígenas encontram brechas e desenvolvem suas formas de agência no processo.