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o ato de compartilhar

No documento Volta ao mundo em 13 escolas (páginas 94-96)

Em Ushuaia, o mate é uma bebida bastante popular – no Brasil, o co- nhecemos pelo nome de chimarrão. A tradição, típica do sul da América Latina, é uma herança de culturas indígenas. O mate é uma erva servida em uma cuia, à qual se acrescenta água quente. Em grupos de amigos, a cuia passa de mão em mão e cada um toma um pouco da bebida. O mate é um costume bastante popular em Ushuaia, tanto que bebe-se até nas reuniões de professores, que acontecem quase diariamente em todas as Escuelas Experimentales da região.

O ato de compartilhar é a essência dessa tradição e, logo que soube- mos que o compartilhamento é um dos pontos centrais das escuelitas, foi impossível não relacioná-lo com as práticas da escola. Nos dois mo- mentos diários de lanche, por exemplo, os alunos compartilham jarras de mate e pedaços de pães; além disso, os materiais para uso durante as aulas são coletivos, comprados no início do ano pela escola com uma verba que o governo entrega aos pais e eles repassam à escola.

“Aqui é preciso estar sempre desperto. Quando estamos presentes, oferecemos o melhor de nós”, disse uma ex-aluna das Escuelas Experi- mentales que hoje cursa o magistério e é estagiária da La Bahia. Ela nos disse isso enquanto varria o chão de uma das salas. Logo que as aulas acabam, os professores compartilham algumas tarefas de organização da escola – limpar os banheiros, lavar a louça etc. – e depois se encontram para um almoço coletivo. Em um desses encontros, na escola Las Gavio- tas, enquanto comíamos uma macarronada com molho de cenouras e be- rinjela, a discussão se voltou à situação de alguns alunos problemáticos. Era impressionante como a reunião se assemelhava mais a uma conversa em família do que a um momento de deliberação sobre assuntos docentes. O fato de os professores conhecerem os alunos e suas histórias faz uma diferença decisiva. Eles compartilham não só momentos e objetos, mas também o interesse uns pelos outros. Em nenhum instante apare- cem dúvidas sobre qual é o aluno sobre quem estão falando, cada um tem os nomes bem claros em mente. Falar dos estudantes não é men- cionar uma massa disforme, mas sim falar do Facundo, da Giovana, do Rocco, da Aoinkenko e de outros alunos cujas histórias pessoais são co- nhecidas por seus professores.

“A atitude de compartilhar deixa fora dos muros da escola os impul- sos egoístas ou competitivos e a tendência de se sobressair, ou a de fazer as coisas com outro intuito que não seja a simples alegria de fazê-los. Compartilhamos o dia a dia sem esses pensamentos de ‘vamos ver quem termina primeiro’ ou ‘vamos ver quem faz melhor’”, conta Emilio Urruty, educador da La Bahia.

o magistério

A aluna Aoinkenko, 10 anos, respondeu à pergunta “como os profes- sores ensinam vocês?” com uma frase breve: “Com milhões de coisas”. Quando perguntada sobre o que eram as milhões de coisas, ela disse que não dava para explicar, porque “milhões de coisas” eram muitas coisas, e o intervalo já estava acabando. Mas dá para saber mais sobre as estratégias dos educadores ao visitar um dos cursos de magistério das escuelitas, se- diado na Escuela Experimental Las Lengas, também em Ushuaia.

Como em todas as Escuelas Experimentales, inúmeros desenhos es- palhados pelo espaço colorem o ambiente. O curso de magistério segue uma dinâmica bastante semelhante a das aulas nas escuelitas: os grupos de aspirantes a professores também se sentam em rodas, mais precisamente em dois círculos de almofadas. Depois da primeira parte da aula, vem o intervalo, no qual o grupo se reúne em uma roda maior, e um lanche é ser- vido logo que se faz silêncio. Em seguida, mais uma aula e então uma roda final com música ou dança. Os alunos e professores varrem o espaço e lavam a louça, deixando a escola limpa em minutos depois da última aula. Em um dos dias que visitamos, uma aluna disse para uma amiga: “Somos mais rápidos do que os bombeiros”. E a colega respondeu de imediato: “Claro, estamos juntos”.

Para entrar no magistério, nenhum tipo de vestibular é realizado. Os alunos pagam 150 pesos (pouco mais de 60 reais), mensalmente, para a compra de materiais e alimentos. Cursar o magistério em Las Lengas é a maneira mais comum para se transformar em um professor nas Escuelas Experimentales de Ushuaia.

A aula de matemática a que assistimos ensinava aos professores uma abordagem com múltiplas possibilidades. “Se um aluno resolver uma con-

#amar

ebrinc

ar #educ

ador

es #magistério

ta de somar de uma maneira diferente da sua, não o corrija. Tente enten- der o seu raciocínio e o incentive a continuar no seu caminho”, comentou Coco, um dos professores do magistério. Ele propôs inúmeras brincadei- ras, como jogos de adivinhação e imaginação de números que, em segui- da, levavam a assuntos como a multiplicação ou o raio do círculo. Usa- mos ábacos e o globo terrestre nesta aula, que terminou a contragosto dos participantes – eles queriam mais, até porque na parte final o professor começou a contar uma história ancestral sobre números.

Em outra aula, os aspirantes a educadores aprendiam a tocar flauta. Já na aula de geografia, o professor gastou mais de uma hora apontando as convenções que hoje tomamos como absolutas, como o calendário e as palavras que usamos. Propôs, por exemplo, a leitura de um livro so- bre a batalha de Trafalgar, ocorrida na Espanha. Ele disse a seus alunos professores que, como a obra já havia caído em domínio público, pode- riam sugerir em classe que os alunos construíssem seus próprios livros. Bastaria imprimir as páginas e cada um personalizaria sua edição como quisesse. Essa sugestão do professor de geografia interliga não apenas os assuntos história, geografia e artes, mas encontra uma maneira de estimular a inventividade dos alunos.

silêncio para perceber e presença para brincar

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