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Na revisão de literatura foram discutidas as diferentes abordagens para o estudo da inovação. Dentre eles, as abordagens sistêmicas consideram as instituições como elementos relevantes para compreender a complexa interação entre elementos de diferentes naturezas na produção das inovações. Esta dissertação foca na perspectiva multinível de sistemas sociotécnicos esboçada por Frank Geels em 2004 e aperfeiçoada em trabalhos posteriores (2005; 2007). A decisão de utilizar essa perspectiva advém, em primeiro lugar, das características do que se pretende estudar. A ênfase na mudança que implica o processo de transição faz que a opção de múltiplos níveis seja interessante, especialmente porque ela organiza os elementos participantes do processo de inovação, dá valor central aos processos sociais e possibilita identificar as diferentes dinâmicas possíveis considerando as influências de fatores alheios ao próprio sistema. Além disso, a perspectiva já foi aplicada para explicar a transição da matriz elétrica nos Países Baixos no artigo publicado em 2007 por Verbong e Geels, The ongoing energy trancision: Lessons from a socio-technical

multi-level analysis of the Dutch electricity system (1960-2004).

Como já foi mencionado, a abordagem de Sistemas sociotécnicos é derivada do trabalho de Malerba (2002) em Sistemas Setoriais. A partir dos elementos constituintes do sistema setorial, Geels desenvolve uma nova forma de olhar o fenômeno da inovação, ainda a partir da perspectiva sistêmica, mas com a intenção

expressa de incluir elementos das esferas social e institucional na análise. Assim, o sistema Sociotécnico gira em torno da satisfação (fullfillment) das funções sociais (GEELS, 2004): os sistemas sociotécnicos formam um contexto estrutural para a ação humana em torno do desenvolvimento de uma atividade específica.

A incorporação da abordagem de Sistema Sociotécnico na pesquisa permite entender as estruturas do setor elétrico dentro de uma perspectiva que outorga sentido especifico aos atores, instituições e interações relacionadas à geração de energia elétrica. A perspectiva dos sistemas sociotécnicos de inovação envolve uma visão estrutural do processo de transição (de gestão de recursos e conhecimento em um mundo em mudança) centrado na interação de atores dentro e fora do governo, focando na coevolução entre a tecnologia e o ambiente de uso (GEELS, 2004).

Das diversas dinâmicas de interação entre os componentes do regime sociotécnico de Geels (confira acima seção 2.1, página 40), muitas delas tendem à estabilidade do regime. Porém algumas delas abrem espaços à possibilidade de mudança, como a capacidade dos atores de produzir e reproduzir regras, e a interação entre os grupos humanos e as condições materiais e técnicas. Geels outorga peso explicativo aos jogos entre os atores como o elemento central que possibilita as mudanças. Os sistemas sociotécnicos mudam por causa das atividades e interações entre os atores. As regras não são exógenas ao regime nem são inamovíveis Os regimes são dominantes e, por conta disso, a transição supõe um jogo de poder: novas regras supõem novas oportunidades e novos constrangimentos. Isto é, uma dinâmica chave de mudança tecnológica (transição) reside na interação entre atores, especialmente em relação à produção de regras. Os movimentos dos atores têm efeitos, seja na melhora das tecnologias existentes ou na incorporação de novidades. Em resposta ao surgimento de novas tecnologias, os policy makers podem desenvolver novas regras para regulá-las, e os usuários podem desenvolver novos comportamentos ao utilizá-las.

A decisão de adotar o conceito de Regime Sociotécnico, e não uma análise do processo decisório apenas do poder executivo (burocracia) relacionado ao setor elétrico, ocorreu com o intuito de integrar o processo decisório no qual interagem atores com os outputs em forma de regras formais e os outcomes em termos de mudanças na composição da matriz. A análise centra-se nos atores e nas interações entre eles no processo decisório por meio do qual são estabelecidas as regras que

vão definir incentivos e limitações para a incorporação de novas fontes de energia. Atores, regras e capacidades materiais são os componentes articuladores da proposta conceitual do modelo de análise.

Entende-se por regras todas as instituições formais e informais orientadas a modificar comportamentos. No seu artigo de 2004, Geels retoma a Scott (1995 apud GEELS, 2004), quem identifica três tipos de regras: regulamentares, cognitivas e normativas. As regras regulamentares dizem respeito às regras formais (leis, políticas e outras regulamentações estabelecidas pelos governos na forma de prêmios e castigos). As regras normativas, definidas pela sociologia clássica, supõem normas e expectativas de rol, implicando responsabilidades, direitos, deveres. As regras cognitivas constituem a natureza da realidade, as visões de mundo por meio das quais a realidade adquire um sentido específico. Nos termos propostos no artigo, essas últimas estão intimamente ligadas à noção de heurísticas, sistemas de crenças e atalhos cognitivos que complementam as limitadas capacidades humanas de processar informação, isto é, à racionalidade limitada (SIMON, 1957 apud GEELS 2004).

Diferentemente, o modelo proposto trabalha apenas distinguindo entre regras formais e informais. As regras formais são iguais às regras regulamentares do modelo de Geels. A análise do processo decisório centra-se na produção da regulamentação formal do Setor Elétrico Brasileiro, especialmente leis e programas de políticas públicas. Essa escolha foi feita em função das limitações metodológicas e de disponibilidade de dados para analisar um processo similar para regras informais, pois elas estão estreitamente ligadas às características do modelo de tomada de decisão predominante. Como será aprofundado mais adiante, diferentes modelos de tomada de decisão dão diferentes tratamentos e usos dessas regras informais, e elas viram parte das variáveis explicativas no modelo. Assim, as regras informais são consideradas como parte dos elementos definitivos das diferentes dinâmicas possíveis do processo decisório.

O foco do modelo está tanto nas regras quanto nos atores, as organizações públicas e privadas que participam ativamente do regime nas suas diferentes atividades: geração, regulação, fiscalização, controle e planejamento. Pela natureza específica do Setor Elétrico Brasileiro, foram estabelecidos três grupos de atores que desenvolvem atividades que influem na geração de energia elétrica.

O primeiro grupo é denominado como Setor Elétrico Brasileiro (SEB), que concentra tanto entidades públicas, empresas privadas de geração, produtores independentes, autoprodutores, supridores, investidores, associações representativas e entidades independentes de pesquisa. Foi necessário estabelecer a distinção de um segundo grupo dentro deste: o Setor Elétrico Governamental, constituído pelas entidades que participam ativamente de atividades relacionadas com a geração de energia elétrica mas estão ligadas ao Estado Federal. Esse grupo reúne a estrutura institucional, dentro do governo, com a função específica de produzir e gerir a política de energia elétrica, incluindo o Presidente da República, o Ministério de Minas e Energia (MME), as entidades reguladoras, as entidades de planejamento e pesquisa e as empresas estatais controladas pela holding Centrais Elétricas Brasileiras SA (Eletrobrás). Um terceiro grupo corresponde aos atores que normalmente não desempenham atividades relacionadas com a geração de energia elétrica, mas que conseguem ter influência decisiva nos outputs produzidos, as regras formais. Esse é o caso dos membros do Poder Legislativo, as entidades de controle ambiental, as entidades financeiras internacionais, os fundos de pensão e outros grandes investidores.

Vale destacar que os atores relevantes no SEB foram variando ao longo do tempo. Alguns deles, como o Banco Nacional do Desenvolvimento (BNDES) foram incluídos dentro de um nível ou outro, segundo as funções desempenhadas no setor. As empresas estaduais de energia também foram consideradas no nível de SEB, mas não como governamentais, uma vez que não dependem do governo federal.

Finalmente, o último elemento do regime a ser considerado no modelo são as

capacidades materiais, os componentes técnicos e de infraestrutura disponíveis a

cada momento. Neste elemento, são destacadas as tecnologias disponíveis em termos de tipos de usinas existentes no Brasil, projetos de pesquisa em uso de fontes específicas, canais de financiamento e recursos naturais disponíveis. Como o foco é na geração de energia elétrica, elementos como as linhas de transmissão são considerados, mas não são centrais.

Mais uma distinção relevante na análise é aquela entre inovação radical e inovação incremental. A primeira define o processo de geração de um produto, serviço ou processo completamente novo enquanto a segunda refere a incorporação de modificações, consideradas melhoras, a um produto ou processo já existente. Como

já mencionado, Geels e outros estudiosos da inovação consideram que existe uma tendência ao surgimento de dependência de trajetória estimulada por diferentes variáveis institucionais que fecham as possibilidades de gerar inovação radical (GEELS, 2004; GEELS e SCHOT, 2007; VERBONG e GEELS, 2007). Segundo essa afirmação, as invenções radicais têm poucas chances de serem incorporadas em regimes sociotécnicos estáveis e alinhados, pelo qual elas permanecem nos nichos. Quando existem tensões e defasagens (mismatches) nas atividades dos grupos sociais e nos regimes sociotécnicos, são criadas “janelas de oportunidades” para que essas invenções possam ingressar no regime, criando inovações radicais (GEELS, 2004, p. 914). Essa perspectiva supõe que mudanças radicais são possíveis apenas quando a estrutura atravessa um período de “crise”, mas não considera a possibilidade de que algumas estruturas (regras e capacidades técnicas) criem condições para a produção de inovação radical sem necessidade de situações conjunturais críticas, ideia incluída nos estudos sobre Variedades de Capitalismo (HALL e SOSKICE, 2001). Estes argumentos são retomados na última seção do capítulo, pois neles radica o germe que fundamenta as hipotéticas relações entre variáveis a serem testadas no modelo.

A última consideração está relacionada com o mencionado no parágrafo anterior. No modelo de Geels, na explicação da coevolução entre tecnologia e instituições, as ações de policy-makers ao criar novas regras são uma resposta às mudanças na tecnologia, geralmente considerada em termos de inovação de produto. No meu modelo contempla-se a possibilidade de, primeiro, as novas formas de gerir o sistema sociotécnico (mudanças substanciais nas regras) poderem ser consideradas inovações; e segundo, que às vezes são os policy-makers quem criam regras para produzir mudanças na tecnologia (no sistema sociotécnico), puxando a incorporação de invenções seguindo incentivos diferentes em busca de lucro. Isso se desprende da existência de pressões ao sistema por fora do mercado, especialmente quando os atores governamentais estão fortemente envolvidos no regime4.

4 Como será amplamente discutido nos próximos capítulos, resulta evidente no nosso estudo de caso

a combinação entre um mismatch na satisfação das funções sociais do sistema elétrico e os incentivos políticos de “ganhar eleições” entre os principais atores decisores.