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ATRÁS DO VÉU — O MUNDO É POSSIBILIDADE

No documento A Face Oculta Da Natureza - Anton Zeilinger (páginas 130-133)

V. O MUNDO COMO INFORMAÇÃO

4. ATRÁS DO VÉU — O MUNDO É POSSIBILIDADE

Como nossa percepção de que a informação é o conceito fundamental do universo se relaciona com o fato de o mundo parecer “quantizado”? Essa “quantização” consistia originariamente na concepção, introduzida por Max Planck e Albert Einstein, segundo a qual a luz só ocorre como múltiplo de uma determinada quantidade de energia. Etapas intermediárias não se apresentam. O mundo parece, por assim dizer, fragmentado e resiste a quaisquer subdivisões. Por esse motivo, argumentamos que, em vez de aceitar essa quantização unicamente como fato experimentalmente confirmado, é preciso tomá-la como uma simples consequência de nossa premissa fundamental.

Ou seja, se cada sistema que observamos é somente o representante de enunciados lógicos, chegamos a uma situação muito peculiar. Se somente poucos enunciados estão à disposição, estes podem ser apenas “um enunciado”, “dois enunciados”, “três enunciados” etc., mas, nunca, por exemplo, “1,7 enunciado”. Nem sequer saberíamos o que significa fazer 1,7 enunciado a respeito de algo. Um exemplo simples: se digo “Está nevando” e ao mesmo tempo digo “Está frio”, trata-se de dois enunciados. Qualquer um poderia achar que se chega a enunciados parciais quando se quer dizer: está um pouco frio. Mas isso é também um claro enunciado de sim e não, e não simplesmente, por exemplo, 70% do enunciado “Está frio”.

Pela simples razão de só podermos colocar perguntas à natureza e receber para cada pergunta a resposta “sim” ou “não”, uma subdivisão mais fina não é possível. Não se pode colocar uma pergunta e meia à natureza! Isso significa que é preciso haver algo como uma certa granulação fina em nossa experiência do mundo. Ou seja, sistemas que portam suficientemente pouca informação recebem daí, de maneira automática, uma espécie de estrutura quântica. Essa espécie de granulação fina é inevitável por princípio. Ela não é somente inevitável, ela é um componente necessário de tudo o que pode ser dito. A física quântica seria então uma consequência do fato de que o mundo é o

representante de nossos enunciados — de que tais enunciados aparecem necessariamente “contados

com exatidão”. Portanto, se colocamos, conforme John A. Wheeler, a questão: “Why the quantum”, ou a questão: “Por que o mundo é quantizado?”, nossa resposta simples seria: “Porque a informação sobre o mundo é quantizada”. Enunciados são contáveis, é possível contá-los exatamente como se pode contar, nas concepções teóricas dos físicos quânticos, o número dos estados quânticos.

Reiteradamente se discute se outras civilizações no universo têm a mesma descrição da natureza que nós — e acho extremamente implausível que sejamos os únicos seres vivos inteligentes do universo. Só por esse motivo gostaria de oferecer argumentos para a ideia de que a descrição da natureza dessas civilizações não pode divergir significativamente, em sua essência, de nossa própria descrição da natureza. Toda vida exige sobrevida. Toda vida exige decisões constantes. Todas decisões só podem ser tomadas com base na informação que se possui. Em última instância, por sua vez, essa informação não é nada mais do que “respostas de sim e não” a perguntas. Tudo pode ser formulado em enunciados lógicos, em bits. Há uma probabilidade muito alta de isso ser uma propriedade universal de todo sistema que reúne informação e que otimiza seu comportamento com base nessa informação. Nós havíamos visto que a quantização do mundo é uma consequência da quantização da informação. A quantização da informação é, por fim, inevitável, visto que tudo precisa ser apresentado em decisões de sim e não.

Por essa razão, creio que também outras civilizações precisam ter uma espécie de descrição, de linguagem a respeito do mundo, que em sua essência é equivalente à nossa física quântica. Naturalmente essa descrição da natureza não precisa ser matematicamente idêntica à nossa. Nós mesmos possuímos diversas formulações matemáticas da física quântica. Além das formulações de Heisenberg e Schrödinger, já mencionadas, há ainda, por exemplo, uma formulação muito importante feita por Richard Feynman. No entanto, em última instância, todas essas descrições da natureza são equivalentes. Da mesma maneira, suponho que as descrições quânticas da natureza feitas por outras civilizações são equivalentes às nossas. Uma questão bem diferente é se algumas civilizações já descobriram essa descrição. Naturalmente, isso depende do estágio de seu desenvolvimento em termos tecnológicos e científicos. Em princípio, porém, é também imaginável que uma outra civilização chegue, por reflexões puramente teóricas, aos mesmos enunciados basilares da física quântica, como a “complementaridade” ou o “acaso”, caso ela descubra a tempo o primado da informação e reflita com suficiente radicalismo as respectivas consequências.

E interessante também constatar aqui que deixamos de perguntar, e isso de forma inteiramente consciente, sobre o que é, na verdade, um sistema elementar. Pelo contrário, falamos apenas sobre informação. Um sistema elementar não é nada além a que se refere nossa informação. Não é nada mais do que o representante dessa informação, um conceito que formamos com base na informação que temos à disposição.

Isso não é somente um ponto de vista puramente prático. Como só podemos enunciar algo sobre o mundo recorrendo à informação, trata-se de um princípio. Evidentemente não tem sentido perguntar sobre a natureza das coisas, pois uma tal natureza, mesmo que ela devesse existir, está sempre além de toda experiência. Seria possível considerar que, por meio de perguntas feitas ao mundo, é possível se aproximar de sua natureza, mas isso está sempre ligado ao problema da transição do que pode ser dito ao que nós imaginamos como sendo a realidade ter em si sempre algo de arbitrário, exigir sempre suposições de propriedades, grandezas, sistemas, objetos etc., que não são acessíveis diretamente à experiência. Como exemplo, poderíamos retomar o interferômetro de Mach e Zehnder. Se registrarmos a partícula em um dos dois caminhos no interior do interferômetro, dizemos que a partícula tomou o caminho respectivo. Mas isso é, a rigor, somente nossa construção; não é necessário supor isso de fato. Não seria mais simples e menos errôneo falar somente de eventos observáveis? No caso discutido, sabemos, por exemplo, que uma partícula existiu de início e que mais tarde foi registrada. Para nossa compreensão da natureza não é necessário supor também que ela trilhou de fato um caminho. Pelo contrário, sabemos que quando não instalamos nenhum detector dentro do interferômetro, tampouco podemos falar de um caminho. Nesse caso, a suposição de um caminho seria sem sentido e supérflua tanto quanto o princípio de muitas religiões naturais, que inventam uma explicação arbitrária para explicar os relâmpagos, a saber, a existência do deus do relâmpago, uma existência que tem de ser verdadeira, já que enxergamos os relâmpagos que esse deus produz.

Em nossa concepção, a informação, o saber, é a protomatéria do universo. Podemos agora colocar a questão: saber o quê? Quem precisa trazer a informação? Isso não leva a um puro solipsismo, isto é, à suposição de que só há no mundo uma única consciência, ou seja, a própria, e que tudo se desenrola no quadro desse saber, no quadro dessa consciência? Frequentemente se criticou a interpretação de Copenhague porque ela seria uma interpretação puramente subjetivista, porque nela o mundo só existiria na consciência do observador. Para argumentar contra essa posição, só é possível aduzir fundamentos racionais. Assim como muitas outras posições filosóficas, ela não se deixa refutar em termos puramente lógicos. Não se pode duvidar que todos procedemos de

maneira pragmática, como houvesse outros seres conscientes — outros seres humanos. O homem “é” com outros — ou ele não é absolutamente; ele leva uma vida “partilhada” desde sempre, nesse sentido.

Um ponto central, ou melhor dizendo, uma questão central permanece: se a informação é a protomatéria do universo, por que essa informação não é arbitrária? Por que diversos observadores não têm diversas informações? Se pensamos em um de nossos experimentos, concordaremos sobre qual detector faz “clique” e qual não. Naturalmente, por um lado, isso poderia ser assim porque há apenas uma consciência, a própria, e todas as outras são representações nessa única e própria consciência. Por outro lado, pode ser que esse acordo entre diversas observações signifique que o mundo existe. Um mundo que é constituído de tal modo que a informação que possuímos — e não possuímos mais do que isso — existe de certo modo também independentemente do observador.

Mas de que maneira ela é independente do observador? Provavelmente enxergamos isso com mais força no processo mecânico-quântico particular, onde, por exemplo, um detector registra a partícula e o outro não por puro acaso. Nesse ponto todos os observadores concordaram sobre qual detector é este. Esse caráter ininfluenciável do evento particular e a concordância de todos os observadores a respeito do evento são provavelmente o indício mais forte de que há um mundo independente de nós.

Mas o que são essas propriedades da realidade? Há em geral essas propriedades da realidade. O que podemos saber sobre essa realidade? O que significam essas questões quando já vimos que a informação desempenha um papel fundamental? Gostaria de fazer uma proposta radical a esse respeito:

“Realidade e informação são a mesma coisa.”

Ou seja, proponho considerar os dois conceitos, que até hoje descreveram aparentemente algo distinto por inteiro, como os dois lados de uma mesma medalha, no fundo de modo análogo a como aprendemos de Einstein, em sua teoria da relatividade, que espaço e tempo são dois lados da mesma medalha.

Portanto a proposta é, por causa de nosso postulado de que nenhuma lei natural e nenhuma descrição da natureza podem fazer diferença entre realidade e informação, têm de reconhecer a ambas como a mesma coisa. Por isso deveríamos agora cunhar também um novo conceito que encerre a realidade e a informação. Porque um tal conceito não só não existe ainda como também nos é custoso imaginá-lo, reconhecemos desde já como são delicados os problemas conceituais relacionados a isso. Nosso enunciado anterior de que a informação é a protomatéria do universo deve ser vista também no sentido desse conceito comum de realidade e informação.

A história das ciências naturais foi caracterizada cada vez mais pelo fato de se conseguir dissolver grandes oposições, aparentemente insuperáveis e sintetizar coisas que não têm nada a ver entre si. Um exemplo célebre é Isaac Newton, que conseguiu expor os fenômenos cósmicos e terrenos como uma e mesma coisa. Até então se considerava evidente que para os movimentos dos corpos celestes deviam valer leis diferentes do que, por exemplo, para a regra conforme a qual, na Terra, uma maçã cai ao chão. Newton conseguiu mostrar que as duas coisas podem ser descritas pela mesma lei natural.

Uma outra história de unificação dessa espécie foi a da eletricidade e do magnetismo no século XIX, por James C. Maxwell. Ele conseguiu mostrar que a eletricidade e o magnetismo não são mais do que dois lados de uma mesma medalha. Essas unificações caracterizam também as ciências

biológicas. A maior unificação na história da biologia se deu certamente quando Charles Darwin mostrou que todos os seres vivos surgiram em razão dos mesmos princípios de evolução e seleção natural, ou seja, possuíam um grande parentesco já desde o seu processo de surgimento. Essa observação foi apoiada em definitivo um século mais tarde pela descoberta do DNA, isto é, pela demonstração de que todos os seres vivos têm um código genético em comum.

Da mesma maneira, temos de superar a separação entre informação e realidade. Claramente não faz nenhum sentido falar sobre uma realidade sem a informação. E não tem sentido falar de informação sem que esta se refira a alguma coisa. Por isso nunca será possível avançar, por meio de nossas perguntas, até o cerne das coisas. Pelo contrário, levanta-se em vez disso a dúvida justificada de se existe de fato um tal cerne das coisas, que seja independente da informação. Como em princípio nunca pode ser demonstrado, será inútil por fim a suposição de sua existência.

Se o leitor dessas últimas páginas tiver por vezes a sensação de se mover em terreno incerto e não entender exatamente alguns pontos, digo, para tranquilizá-lo, que algo análogo se passa comigo, o autor. Começamos a avançar em uma região em que muitas coisas não são ainda tão claras, onde algumas perguntas realmente importantes aguardam ansiosas uma resposta. Constam entre essas questões justamente aquelas sobre a natureza dessa concepção que abarca realidade e informação, sobre a essência do saber. Por fim, por trás de tudo, encontra-se a questão sobre o nosso papel no mundo. E claro que na física quântica esse papel vai consideravelmente além do papel que nos concedemos na física clássica. Saber como ele se constitui exatamente dependerá também das perguntas há pouco discutidas. É de se esperar que aqui, certamente também por meio da filosofia, ocorram novas intuições e até mesmo revoluções.

Quando Albert Einstein examinou a dissertação de Louis de Broglie, ele falou que de Broglie havia levantado uma ponta do grande véu. Com isso ele se referia ao grande véu, que oculta a realidade real. Vimos em nossa análise que essa “realidade real” nunca será acessível, pelo menos no mundo quântico. Por isso é adequado supor simplesmente que atrás do véu de Einstein não se oculta nada senão, no máximo, “respostas de sim e não” do jogo das vinte perguntas, das milhares de perguntas ou de tantas perguntas quanto se queira, que todos colocamos em nossa vida humana individual e, em parte presumivelmente, respondemos.

Ludwig Wittgenstein começa seu célebre Tractatus Logico-Philosophicus com a frase:

“O mundo é tudo que é o caso.”

Vimos que esse ponto de vista é demasiado restrito. Na mecânica quântica, não só podemos fazer enunciados sobre o que é o caso, como também enunciados sobre o que pode ser o caso. O estado mecânico-quântico é realmente uma descrição do aparelho macroscópico e das observações feitas nesse aparelho que são necessárias para fazer predições a respeito do futuro. Porém, essas predições sobre o futuro são enunciados sobre tudo que poderia ser o caso. Evidentemente, esses enunciados são também parte do mundo.

Por isso o mundo é mais do que pensou Wittgenstein. O mundo é tudo que é o caso e também

No documento A Face Oculta Da Natureza - Anton Zeilinger (páginas 130-133)