• Nenhum resultado encontrado

PRECISA SER TÃO COMPLICADO?

No documento A Face Oculta Da Natureza - Anton Zeilinger (páginas 120-122)

V. O MUNDO COMO INFORMAÇÃO

1. PRECISA SER TÃO COMPLICADO?

Antes de respondermos a essa primeira questão sobre qual o princípio fundamental da física quântica, vamos examinar rapidamente o papel dos princípios fundamentais na física. No curso do desenvolvimento da física, verificou-se cada vez mais que o que importa são algumas poucas ideias fundamentais, surpreendentemente simples e racionais, sobre as quais todo um edifício de teoria física pode ser construído. Esses enunciados são tão fundamentais que têm de valer sempre e em toda parte. Sua refutação significaria, por outro lado, o colapso de um edifício inteiro de pensamentos.

Tomemos o exemplo da teoria da relatividade de Albert Einstein. A rigor há aqui duas teorias da relatividade. A Teoria da Relatividade Especial, que Einstein levantou primeiro, mais precisamente em 1905 — aliás no mesmo ano em que ele veio a público com a explicação do efeito fotoelétrico recorrendo à hipótese dos quanta. A segunda é a Teoria da Relatividade Geral, que criou cerca de dez anos mais tarde. A Teoria da Relatividade Especial leva às predições, tão peculiares como se sabe — e que de resto foram confirmadas de maneira excelente várias vezes nesse meio tempo —, segundo as quais os relógios em movimento andam mais devagar do que os relógios em repouso. E ela levou também à equação mais famosa da física, E = mc2.

A Teoria da Relatividade Especial pode ser reduzida a um único princípio fundamental, a saber, que as leis naturais em todos os sistemas não acelerados, os assim chamados sistemas inerciais, são iguais. Um exemplo simples ilustra essa relação. Todos já percebemos que dentro de um trem ou de

um avião voando, deslocando-se velozmente, não podemos constatar quão rapidamente nos movemos sem que olhemos para fora. Indiferente se o trem está parado ou andando, um objeto cai em seu interior na vertical até o chão como em nossa casa. Da mesma maneira, podemos assistir a nosso filme predileto dentro do avião da mesma maneira que em casa. Nada se altera nos processos físicos que se escondem atrás disso. Temos aqui um princípio muito inteligível e convincente, no qual Albert Einstein se baseou para criar sua Teoria da Relatividade Especial. Vamos registrar que amiúde se indica como regra fundamental suplementar que a velocidade da luz independe da velocidade da fonte da qual a luz é emitida. Ou seja, a luz que é irradiada de nosso avião para a frente é tão rápida quanto a luz que é irradiada para trás. A velocidade do avião não muda nada nisso. No entanto essa lei pode também ser vista como consequência da primeira, uma vez que a velocidade da luz é uma função de constantes simples da natureza.

Mas, ao mesmo tempo, a partir daí, Albert Einstein abandonou algo antes frequentemente suposto pelos físicos, mas sem razão para tal. Trata-se, no essencial, da suposição de um tempo universal, isto é, a suposição de que tempo no chão decorre exatamente como dentro de um jumbo que voa a uma alta velocidade. Albert Einstein viu que não há nenhuma razão absolutamente coerente para essa suposição. Em princípio, seu raciocínio era simplesmente que, se todos os decursos temporais, mesmo os dos relógios, dentro de um jumbo, por exemplo, fossem mais lentos que no chão, não se notaria isso de maneira alguma. Só a comparação direta mostraria uma diferença. Contudo não há razão lógica alguma para supor que uma tal diferença na taxa com que o tempo avança em locais diversos não possa existir.

A predição da Teoria da Relatividade Especial segundo a qual relógios em movimento, por exemplo dentro de um jumbo, andam mais devagar foi provada concretamente nesse meio tempo, mediante experimentos. A diferença é naturalmente tão pequena que só pode ser constatada com relógios atômicos de alta precisão. Não se pode dar a um piloto de avião transatlântico a esperança de que muitíssimos voos possam alongar sua vida. Os relógios também andam de maneira diferente em caso de grande força gravitacional. Mas é interessante que esse fato de os relógios em movimento andarem mais devagar encontrou hoje sua aplicação técnica. No quadro do sistema GPS, satélites enviam constantemente sinais de alta precisão que são codificados com uma informação de tempo. A partir dessa informação é possível determinar com um receptor em terra a posição exata, o lugar exato em que alguém se encontra. Se nos satélites não fossem automaticamente levados em conta os erros que se apresentam por consequência tanto da Teoria da Relatividade Especial como da Teoria da Relatividade Geral, sempre chegaríamos a determinações falsas de lugares, e o sistema não funcionaria.

No quadro da Teoria da Relatividade Especial, o princípio fundamental mencionado somente se aplica a sistemas não acelerados, por exemplo o trem, se eles andam em velocidade uniforme. Se o trem parte rumo a uma estação, se ele acelera, freia ou faz uma curva, sentimos isso de fato dentro de um trem, sem precisar olhar para fora. A Teoria da Relatividade Geral dá um passo além e inclui as acelerações. O princípio fundamental aqui é que as leis físicas em todos os sistemas acelerados precisam ser iguais. Como um exemplo simples, suponhamos que você se encontre em uma pequena cabine. Sem olhar para fora, você não pode constatar se a força que o pressiona para baixo é a gravidade, porque a cabine se encontra sobre o chão da Terra, ou se a cabine está no espaço e acaba de ser acelerada. Cada um de nós conhece a sensação da pseudogravidade adicional em um elevador que acaba de subir. Como não podemos distinguir de onde vem a força que sentimos, se é a gravidade ou se é causada pela aceleração, todos os processos físicos precisam ser iguais.

reconhecemos uma característica interessante. Em última instância importa o que pode ser enunciado por meio da observação ou — nesse caso — o que não pode ser enunciado por meio dela. Não se pode precisar, sem olhar para fora, mesmo por meio de experimentos muito engenhosos, quão veloz é o trem em que se viaja; e tampouco se pode decidir de que natureza é a aceleração a que se está exposto. A esses princípios fundamentais é comum ainda o fato de eles serem muitos simples, racionais por assim dizer. Naturalmente, o que nos parece racional pode estar sujeito, sob certas circunstâncias, também a um preconceito. Comecemos então a busca de uma ideia fundamental semelhante para a física quântica. Precisamos distingui-la, no entanto, de uma axiomatização da física quântica, como a que já existe de fato. Aqui se indica uma série de axiomas, isto é, premissas fundamentais, que amiúde são de natureza muito formal.

No caso da física quântica, há, por exemplo, o axioma segundo o qual os estados mecânico- quânticos estão definidos em um espaço muito abstrato, o assim chamado espaço de Hilbert. Também a superposição toma uma posição central, na qualidade de princípio, em uma tal axiomatização. Esses axiomas são apropriados para colocar a estrutura matemática da física quântica sobre uma base sólida. No entanto, são tudo menos intuitivamente claros e imediatamente convincentes. Mas, enfim, não é isso o que procuramos. Trata-se muito mais de um enunciado fundamental que seja simples, nos pareça racional e esteja diretamente ligado, se possível, com o que é observável.

É claro que é possível que um dia sejamos confrontados com a situação de não poder mais encontrar nenhum principio fundamental. Talvez o mundo seja complicado demais para o nosso espírito humano descobrir tal princípio em todos os casos. De todo modo, já é surpreendente que tenhamos capacidade de descobrir princípios fundamentais. Por que o mundo em geral é concebível com princípios fundamentais simples no lugar daqueles tão complicados, que a única coisa a fazer seria cruzar nossos "braços intelectuais”? Essa opinião de que o mundo seria demasiado complicado para nós foi, aliás, sempre muito difundida e ainda hoje é válida para muitas pessoas. Mas talvez o próprio desenvolvimento das religiões monoteístas possa ser entendido como o princípio da busca de princípios fundamentais simples. Talvez não seja de admirar que as ciências naturais modernas surgiram na Europa, em uma cultura em que Deus foi entendido como um Deus único, isto é, o da tradição judaico-cristã.

No documento A Face Oculta Da Natureza - Anton Zeilinger (páginas 120-122)