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O primeiro campo disciplinar a se interessar pelo estudo das possibilidades de transgressões do gênero com a tentativa de desvinculá-lo do viés biomédico foi a Antropologia. Vários estudos sobre tribos primitivas, em diversas localidades do mundo, identificaram pessoas que contrariavam a lógica binária sexo/gênero historicamente determinante das possibilidades de construção da condição humana. Esses estudos, que tiveram início na primeira metade do século XX, encontraram em tribos da América do Norte os/as berdaches. Esses/as homens e mulheres se identificavam com as atividades cotidianas, vestimentas e práticas sexuais do gênero oposto, denominados/as nestes locais como homens- mulher ou mulheres-homem. Em outras comunidades essas vivências de papéis sociais receberam nomes variados: as muhu no Taiti, as xanith de Omã, as fa’afafine de Samoa e as panema entre os guaiaqui do Paraguai (BENEDETTI, 2005, FRY; MACRAE, 1985).

Benedetti (2005) descreve os/as berdaches como o caso clássico tanto para a Antropologia, cujos trabalhos enfatizavam a relação indivíduo e sociedade e a formação cultural da personalidade, quanto nos estudos de gênero. No entanto, a maioria desses estudos “[...] restringe-se à descrição do exótico, identificando as diferentes personificações das transformações de gênero diretamente com a homossexualidade ocidental, pouco avançando no debate sobre a construção cultural do corpo e do gênero.” (BENEDETTI, 2005, p. 23). Para o autor, uma das possíveis hipóteses para justificar este fato seria a inexistência de um conceito de gênero que pudesse auxiliar os/as antropólogos/as em suas reflexões.

Joshua Gamson (2007) sinalizou a afirmativa de Benedetti (2005) ao enfocar as sexualidades e a teoria queer no campo de investigação qualitativa9. Destacou as primeiras décadas do século XX como o marco inicial das pesquisas sociais no campo das homossexualidades que, a princípio, enfrentaram dificuldades de acesso a esses sujeitos em razão do estigma social. Meio século depois, esse panorama se alterou, em parte, devido às lutas e conquistas do movimento social pelo reconhecimento de direitos e libertação de lésbicas e gays. Isso desencadeou, concomitantemente, maior flexibilidade na visibilidade desse segmento social, assim como com a iniciativa de lésbicas e gays de se constituírem

9 Compreendemos a pesquisa qualitativa como uma atividade situada, composta por práticas teóricas, materiais e interpretativas que localiza o/a observador/a no mundo, assim como oferece visibilidade a esse mundo. Investiga-se a vida social tentando entender e interpretar os significados que as pessoas atribuem aos fenômenos sociais (DENZIN; LINCOLN, 2007).

como pesquisadores/as investigando seus universos sociais. Este fato causou desconforto e desconfiança aos/às pesquisadores/as tradicionais, ancorados/as em princípios de neutralidade cientifica, dentre eles, a necessidade de distanciamento pesquisador/a e objeto. Esses pesquisadores/as desacreditavam na viabilidade de estudos nos quais comunidades específicas eram investigadas por seus/suas próprios/as integrantes.

Historicamente, os estudos nos campos das sexualidades partilham de elementos comuns aos estudos de mulheres, raciais, étnicos e demais minorias, destacando o entrelaçamento com as políticas dos movimentos sociais organizados que:

[...] mantém cautela quanto às formas pelas quais a “ciência” tem sido empregada contra os marginalizados, e se mostra particularmente confortável com as estratégias das pesquisas qualitativas – as quais, ao menos, parecem objetivar menos seus sujeitos, preocupar-se mais com a criação de significado cultural e político e com dar mais espaço às vozes e experiências que foram suprimidas (GAMSON, 2007, p. 346).

No entanto, esse caráter menos objetivo das pesquisas no campo das sexualidades é recente, uma vez que, mesmo dentro de uma abordagem qualitativa, os primeiros estudos sustentavam-se nos princípios positivistas. Gamson (2007) comenta esses primeiros estudos nos quais os/as pesquisadores/as, mesmo anunciando uma postura liberal, não conseguiram desvincular as homossexualidades do patológico e da criminalidade, limitando-se, praticamente, ao resgate da sexualidade como foco investigativo das garras da religião. O fato de somente em 1973 a homossexualidade ter sido excluída do Manual diagnóstico e estatístico de transtornos mentais da American Psychitriic Association (APA) confirma o consistente elo político entre ciência da homossexualidade e patologia.

Se até a primeira metade do século XX a ciência encontrou dificuldades em compreender a complexidade que envolvia a construção social e cultural das sexualidades, sobretudo pela insistente crença na irredutibilidade do binarismo macho/fêmea; na segunda metade deste século o binarismo homem/mulher foi também colocado em suspensão, demarcando a construção do gênero como outro campo repleto de conflitos e contradições. Até os anos 1960, sexo e gênero eram considerados categorias equivalentes nos paradigmas científicos da humanidade, sendo alterado, numa perspectiva social e cultural10, após a força reivindicatória do movimento feminista.

10Assim como o século XIX demarca as fronteiras possíveis e legítimas da sexualidade humana, foi no século XX, sobretudo na segunda metade, que o gênero enquanto expressão distintiva entre masculino/feminino, homem/mulher, assume legitimidade. Utilizado pela primeira vez em 1955 pelo psicólogo estadunidense John Money, o termo gênero surgiu como possibilidade de identificar os aspectos sociais do sexo, assim como

O feminismo é definido como um dos mais representativos marcos da modernidade tardia que, diferente de outros grupos, ultrapassou a perspectiva dos movimentos sociais constituindo-se como um dos importantes movimentos teóricos responsáveis pelo dêscentramento dos estatutos do iluminismo que definiam a condição humana como fixa e estável. Estabeleceu-se, a partir daí, uma política de identidade colocando em pauta uma concepção aberta, contraditória, inacabada e fragmentada de identidade do sujeito pós- moderno (HALL, 2005).

Neste sentido, os estudos e avanços teóricos desencadeados por lésbicas e gays provocaram representativas alterações no campo das investigações qualitativas voltados à ênfase para a criação de significados e experiências cotidianas da vida. Esses aspectos se relacionavam diretamente com os anseios de visibilidade política e crítica em relação à estruturação social de identidades e de categorias sexuais e de gênero. Questões interpretativas sobre a realidade social passaram a ser foco desse campo investigativo (GAMSON, 2007).

Descrevendo de forma objetiva o movimento homossexual no contexto brasileiro, identificamos suas primeiras manifestações nos anos de 1960, sob uma perspectiva de socialização de homossexuais masculinos. No final dos anos de 1970 o movimento assumiu uma dimensão política, descrito como Movimento Homossexual Brasileiro (MHB). No trajeto até 1995, fatos importantes como o contato com o movimento internacional, a adesão de mulheres lésbicas ao movimento e a luta contra a epidemia da Aids levaram à consolidação do Movimento de Gays e Lésbicas (MGL). Na primeira metade dos anos 1990, o movimento assumiu a sigla GLS (Gays, Lésbicas e Simpatizantes) fortemente influenciado pelo movimento midiático e comercial que transformou essas expressões identitárias em produto de consumo, porém, rejeitado pelo movimento organizado politicamente (TREVISAN, 2004; FACHINI, 2005).

Em 1995 aderiram ao movimento social travestis e transexuais que já se organizavam para discussões sobre suas demandas específicas desde 1993 com a realização do primeiro ENTLAIDS. O Encontro Nacional de Travestis e Transexuais na Luta contra a Aids é um evento financiado pelo Departamento de DST, Aids e Hepatites Virais da Secretaria de Vigilância em Saúde do Ministério da Saúde. Sua primeira edição foi realizada em 1993, na cidade do Rio de Janeiro, sendo inicialmente intitulado Encontro Nacional de Travestis e distinguir as categorias sexo e gênero. O termo sexo refere-se exatamente aos aspectos biológicos da sexualidade humana e o termo gênero aos aspectos sociais construídos nesse processo de identificação (SILVA, 2007).

Liberados (ENTL) financiado pelo Instituto Superior de Estudos da Religião (ISER). O termo ‘liberados’ referia-se a pessoas que participavam e defendiam causas das travestis. Em seu terceiro encontro em 1994, nova reconfiguração aconteceu tornando-se o Encontro Nacional de Travestis e Liberados que trabalham com Aids, quando passou a ser financiado pelo Ministério da Saúde. Sob a influência do movimento internacional, em 2004 o ENTLAIDS se tornou ENTRAIDS, Encontro Nacional de Transgêneros na Luta contra a Aids. Em 2007, a nomenclatura ENTLAIDS foi retomada, passando de 2008 até os dias atuais a representar o Encontro Nacional de Travestis e Transexuais na Luta contra a Aids. Essa nova reconfiguração aderiu a expressão ‘transexuais’ e o ‘L’, anteriormente referindo-se a ‘liberados’ que passou a representar ‘luta’ (BABY, 2012).

Foi em 1998 que o segmento de travestis e transexuais aquiesceu à sigla do movimento social, porém representadas sob a expressão ‘transgêneros’. Nesse período inseriu também a categoria bissexuais. Movimento de Gays, Lésbicas, Bissexuais e Transgêneros (GLBT) foi a nova designação adotada. Em 2008, nova estruturação ocorreu. A expressão ‘lésbicas’ tomou o primeiro lugar na descrição do movimento como forma de reconhecimento do processo de invisibilidade histórica a que esses sujeitos foram expostos. A letra ‘T’ da sigla passou a representar a categorias travestis e transexuais, com isso o Movimento LGBT definiu-se mantendo essa formatação até a atualidade11 (TREVISAN, 2004; FACHINI, 2005; PERES, 2009; CAETANO, 2011).

A estruturação da sigla LGBT dentro do movimento social organizado assumiu e assume o discurso de luta pelos direitos humanos de todas essas categorias sociais sem distinção. A ampliação desse movimento ao longo da segunda metade do século XX e início de século XXI, contudo, delineia diferentes formas de valorização social das pessoas que o compõem.

Ao longo da história, as homossexualidades foram vítimas do desprezo e desvalorização social por serem vinculadas às dimensões do pecado, da criminalidade e/ou da patologia, pautados também nos marcadores de classe social e raça que norteavam o pensamento científico desde o século XIX. Esse aspecto, de certa forma, foi amenizado em razão de processos de resistência e reflexão acadêmicas que foram associados ao movimento social enfocando aspectos históricos, sociais e culturais determinantes dessas exclusões,

mobilizado, principalmente, por homossexuais que se mobilizaram política e intelectualmente na luta por suas demandas sociais (TREVISAN, 2004, FACHINI, 2005).

Por outro lado, travestis, transexuais e transgêneros não foram integradas/os nesse processo de resistência e reflexão, pois, neste período, não tiveram suas expressões identitárias reconhecidas de forma específica pelo movimento social. Essas expressões eram interpretadas como variações da homossexualidade. Com isso, passaram a ocupar uma subcategoria dentro do próprio movimento, permanecendo, desde muito cedo, privadas e excluídas dos processos sociais de construção da condição humana. Pagaram duplamente o preço por sua ‘desobediência’: primeiro, por contrariarem as normas culturais definidoras da sexualidade compreendida como ‘normal’ e, segundo, por desafiarem as normas de gênero, permanecendo ou atravessando a fronteira que delimita a construção do masculino e do feminino.

Esse duplo preço pago socialmente por pessoas trans foi contextualizado por Richard Miskolci (2009) ao problematizar a experiência da abjeção. Abjeção é um conceito originário da Psicanálise que foi repensado à luz dos estudos queer principalmente na perspectiva butleriana. Refere-se a um sentimento de repulsa ou horror manifestado em relação a um fenômeno, sujeito ou grupo interpretado como “poluidor ou impuro”, “contaminador e nauseante”, portanto, temido, sendo alvo de injúria, “objeto de medo”, geralmente interpretado pela coletividade como ameaça ao bom funcionamento social e político.

A experiência da abjeção deriva do julgamento negativo do desejo homoerótico, mas sobretudo quando ele leva ao rompimento de padrões normativos como a demanda social de que gays e lésbicas sejam “discretos”, leia-se, não pareçam ser gays ou lésbicas, ou, ainda, de que não se desloque os gêneros ou se modifique os corpos, o que, frequentemente, torna meninos femininos, meninas masculinas e, sobretudo, travestis e transexuais vítimas de violência. Esses exemplos que mostram como a sociedade reage mais violentamente com relação ao rompimento das normas ou convenções de gênero do que com relação à orientação sexual. Por isso, homens gays que adotam uma estética masculina e um estilo de vida hegemônico sofrem menos violência e, de certa maneira, até mesmo contribuem para corroborar a heteronormatividade (MISKOLCI, 2009, p. 44).

Essa perspectiva foi bastante recorrente na constituição do movimento homossexual brasileiro. Nesse processo, aqueles/as que não se enquadram às normas sociais, nomeadamente às imposições de construção do gênero, sofrem da insignificância atribuída aos seus direitos à condição humana, em que a materialidade de suas vidas é tida como pouco importante, levados/as a se situarem em zonas invivíveis e inabitáveis da dimensão social. Imerso nessas zonas, o sujeito se compõe através da força da exclusão e da abjeção

definidoras de um “universo exterior constitutivo do sujeito” que passa a ser interiorizado por esses/as transgressores/as como repudio fundacional próprio (BUTLER, 2008).

Uma terceira dimensão que desencadeia prejuízos a esse segmento social seria formas de hierarquizações entre travestis e transexuais, generalizando as primeiras ao universo da marginalidade e as segundas ao campo da patologia. Tais aspectos estão presentes tanto nos discursos de senso comum, quanto em reuniões científicas e amplamente contextualizada nas discussões do movimento social organizado. Entretanto, por mais que travestis e transexuais em variadas vertentes busquem argumentos que os/as caracterizem, partilham de bases comuns, como constatou Jorge Leite Junior (2008, p. 131). Este autor observou que: “Desta mescla de teorias e conceitos, a ideia de ‘transexualismo’ começa a se formar a partir do ‘travestismo’, no início como ramificação de uma variedade deste, depois, adquirindo uma nosografia e caracterização próprias.” Da mesma forma, a travestilidade foi inicialmente definida como variação ou ramificação da homossexualidade. Falamos, portanto, de sujeitos que ultrapassam ou permanecem nas fronteiras do gênero e das sexualidades.