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Mesmo com as atuais demarcações sociais e políticas que diferenciam homossexuais de travestis, transexuais e transgêneros, todos/as partilham dos efeitos da vulnerabilidade, violência e discriminação em razão da forma como constroem seu gênero e vivem suas sexualidades. No âmbito geral, esse processo tem sido definido como homofobia que inicialmente seria a rejeição irracional ou ódio em relação a lésbicas e gays, manifestada arbitrariamente, qualificando o/a outro/a como contrário, inferior ou anormal, situando-o/a fora do universo comum dos humanos (BORRILLO, 2009).

Apesar de o termo homofobia ter sido criado em 1971 pelo psicólogo George Weinberg, os aspectos que a definem teceram a longa construção histórica da humanidade, principalmente das sociedades ocidentais. Emergiu fundamentada na hierarquia cultural dos gêneros, responsável pela constituição e a manutenção da concepção de sujeito catalogada em sólidas e confiáveis referências à identidade masculina, branca, cristã e heterossexual (HILTON, 1992; LOURO, 2003).

Daniel Borillo (2009) definiu a relação entre sexismo e homofobia como um dos elementos essenciais para a manutenção do regime binário das sexualidades no qual a distinção homo/hetero não apenas se contrasta ou se opõe, mas opera ideologicamente para a definição excessiva do que se constitui como problema, a homossexualidade. Implicitamente tem-se como evidente e natural, a heterossexualidade – manifestação da sexualidade qualificada como modelo social. Com isso, consagra-se a tríade sexo/gênero/sexualidade.

Superando a convicção de funcionamento como processo de reprodução da espécie no sentido biológico, Borillo (2009) afirmou a divisão dos gêneros e o desejo heterossexual como poderosos processos de reprodução da ordem social. A homofobia seria uma “guardiã das fronteiras” de vivências das sexualidades (heterossexualidade/homossexualidade) e da construção do gênero (masculino/feminino).

É por essa razão que os homossexuais não são mais as únicas vítimas da violência homofóbica, que se dirige também a todos que não se aderem à ordem clássica dos gêneros: travestis, transexuais, bissexuais, mulheres heterossexuais que têm personalidade forte, homens heterossexuais delicados ou que manifestam grande sensibilidade (BORRILLO, 2009, p. 18).

Para o autor, outro aspecto destacado foi a forma como atualmente a problemática da hostilidade em relação a lésbicas e gays - matriz da homofobia - tem se alterado. O que inicialmente se concentrava nos estudos sobre o comportamento de homossexuais incidiu sobre motivos que a levaram ser interpretada como sexualidade desviante ao longo da história. Esse processo desencadeia mudanças no campo epistemológico e político.

Epistemológica porque não se trata exatamente de conhecer e compreender o funcionamento da homossexualidade, mas sim de analisar a hostilidade provocada por essa forma específica de orientação sexual. Política porque não é mais a questão homossexual, mas a homofobia que merece, a partir de agora, uma problematização particular (BORILLO, 2009, p. 16).

Ancorado nessas afirmativas, Junqueira (2009a) ressaltou uma possível dificuldade de se compreender a homofobia como fenômeno diretamente relacionado às normas de gênero, pois, no imaginário social, está sempre associada ao universo homossexual masculino. Com

isso, evidenciamos a busca por outros grupos sociais vulneráveis, tais como lésbicas, travestis, transexuais e transgêneros de expressões que se aproximassem mais de suas singularidades e demandas sociais, “lesbofobia” e “transfobia”, representando suas lutas no campo político e denunciando implicações sofridas em razão do machismo e das convenções sociais de gênero e de sexualidades.

Junqueira (2009a, p. 374) expôs que essas expressões políticas não adquirem sentido ou se realizam enquanto fenômeno social sem que estejam relacionadas a um conceito de homofobia de “largo espectro”. Isso o levou a interpretá-las como formas de expressão ou variações da homofobia, assim como é descrito no conceito de transfobia no texto-base e no relatório final produzido na I Conferência Nacional de Políticas Públicas para LGBT (2008)45.

Quando questionadas sobre como compreendiam a relação entre homofobia e transfobia, parte das professoras trans, colaboradoras da pesquisa, comungaram da argumentação de Junqueira (2009a). Elas ressaltaram a falta de compreensão no âmbito geral por parte das pessoas no que se refere à homofobia e, consequentemente, à lesbofobia e à transfobia. O relato de Marina especificou essa argumentação.

Eu não quero generalizar, mas, para mim, tudo é fobia. Se formos olhar o

sentido real da palavra, é medo. E acho que, no nosso sentido, como a gente utilizou como ódio, é da fala do ódio. São esses ódios sobre toda a

população, seja trans, seja homo, seja lésbica ou, seja, enfim, bi. (...) É a

palavra chave, eu acho. Porque a gente tem que falar sobre isso. As pessoas têm que saber o que é homofobia. As pessoas não sabem nem o que é

homofobia e vai ainda complicar dizendo o que é transfobia? (Marina,

Canoas-RS, novembro de 2012, sublinhados nossos)

Contudo, todas as professoras entrevistadas ressaltaram que o processo de vulnerabilidade vivenciado por pessoas trans assume dimensões bem mais representativas quando comparadas àquelas vivenciadas por lésbicas, gays e bissexuais. Essas docentes ressaltam a urgência de uma discussão mais efetiva sobre a categoria transfobia nas mais variadas dimensões sociais, sobretudo, no contexto escolar. Adriana Lohanna ofereceu subsídios para a compreensão dessa questão.

O que diferencia a transfobia da homofobia? O nível elevado de discriminação. Eu acho que é somente isso. O cerne da coisa, a base é a mesma, a discriminação pela pessoa ser diferente, mas ela é e se diferencia na amplitude. O homossexual vai sofrer muito menos na escola porque ele ainda consegue entrar na conformidade dos corpos, na conformidade daquela questão que temos do binário de exibição do masculino e do feminino. A

transexualidade sofrerá mais porque vai contra esse fator, essa condição

de ser masculino e feminino no sentido da aparência. É aí que se modifica a transfobia e a homofobia na escola, como também na sociedade (Adriana

Lohanna, Aquidabã-SE, abril de 2013, sublinhado nosso).

Quando questionada se o termo homofobia abarcaria a transfobia, Adriana Sales respondeu que “nunca”. Destacou como políticas públicas representadas nas portarias e editais enfatizam e garantem questões voltadas para homofobia, atribuindo pouca importância às especificidades e demandas do segmento trans.

Nós temos especificidades que as homossexualidades não dão conta. Inclusive, temos um grande grupo, dentro desse nosso grupo, que defende e discute que nós não podemos levar à frente a discussão da travestilidade e da transexualidade para as homossexualidades, porque nós estamos falando de identidade de gênero e não de orientação sexual (Adriana Sales, Cuiabá-MT, novembro de 2012).

Nessa discussão, Adriana Sales referiu-se a respeito de como as demandas do segmento trans acabam na dependência das medidas políticas voltadas para a população LGBT no sentido mais amplo, destacando o aspecto similar que comumente acontece no universo científico. Isto é, em razão da histórica associação da travestilidade e da transexualidade como uma vertente da homossexualidade, no geral, a maioria das pesquisas acabam generalizadas à população LGBT, sendo raro o enfoque específico no segmento trans. Esse panorama, contudo, se alterou com a elaboração do “Relatório de Violência Homofóbica no Brasil” realizado nos anos de 2011 e 2012 pela Secretaria de Direitos Humanos. As análises do relatório ressaltaram a urgência de atenção especial aos processos de vulnerabilidade pelos quais são expostas pessoas trans no Brasil (BRASIL, 2012), ou seja, a forma como o fenômeno da transfobia se faz pulsante em nosso país.

Duas fontes foram o foco de análise desses relatórios. Primeiro, as denúncias de violação de direitos humanos contra a população LGBT efetuadas junto ao poder público durante o ano de 2011 e 2012. Denúncias essas efetuadas por meio do Disque Direitos Humanos (Disque 100), da Central de Atendimento à Mulher (Ligue 180), da Ouvidoria do SUS e de denúncias efetuadas diretamente aos órgãos LGBT da Secretaria de Direitos Humanos da Presidência da República. A segunda fonte consistiu de levantamento de dados hemerográficos por meio de relatório elaborado sobre notícias de violação de direitos humanos da população LGBT em 2011 e 2012 publicadas nos jornais do país. Esse método foi inspirado no trabalho de levantamento de homicídios contra LGBT realizado anualmente pelo Grupo Gay da Bahia (GGB) desde 1980 (BRASIL, 2012, 2013).

Em relação à violência contra pessoas trans, as análises dessas duas fontes apontam resultados estatísticos díspares, mas que, ao mesmo tempo, se entrelaçam. Quanto às denúncias de violação de direitos humanos contra a população LGBT efetuadas junto ao poder público em 2011, foram registradas 6.809 violações envolvendo 1.713 vítimas e 2.275 suspeitos, dados extraídos a partir de 1.159 denúncias realizadas. Para o ano de 2012, esses dados alcançam valores ainda maiores. Foram registradas 9.982 violações envolvendo 4.851 vítimas e 4.784 suspeitos, extraídos a partir de 3.084 denúncias. Comparando essas duas fontes, concluiu-se que do ano de 2011 para 2012 houve um aumento de 166,09% de denúncias, 46,6% do número de violações, 183,89% de vítimas e 10.29% de suspeitos. De acordo com o relatório de 2013, esse aumento das denúncias em 2012 possivelmente está relacionado à ampliação e divulgação dos mecanismos de denúncia via Governo federal do que exatamente à hipótese de que em 2011 tenham ocorrido menos violações contra a população LGBT.

Ao nos determos na categoria identidade de gênero dos/as vítimas no ano de 2011, travestis, mulheres trans e homens trans correspondem, respectivamente, a 10,6%, 1,5% e 0,6% das vítimas. Para o ano de 2012, travestis correspondiam a 1,47% e transexuais 0,49% das vítimas. Os relatórios trabalham com a hipótese de que a falta de acesso, de informação e de compreensão sobre direitos humanos de pessoas que habitam segmentos mais vulneráveis à violência da sociedade justificaria o fato do baixo número de denúncias realizado por pessoas trans (BRASIL, 2012, 2013).

Ao analisarmos os relatórios elaborados sobre notícias de jornais a respeito de violação de direitos humanos da população LGBT, em 2011 e 2012 o panorama se alterou significativamente, destacando travestis e transexuais como segmentos mais vulneráveis à violência. De acordo com o relatório de 2011 e 2012, respectivamente, 50,5% e 40% das vítimas foram identificadas como travestis. O documento ainda adverte que o fato das expressões travesti e transexual não serem amplamente esclarecidas nos meios de comunicação de massa, a imprensa possivelmente utilizou-se do termo travesti para referir-se a ambas de forma generalizada (BRASIL, 2012, 2013). Vários dados disponibilizados por esses relatórios são problematizados em nossas análises e consolidam nossas contextualizações.

Os dados dos Relatórios e as argumentações das professoras trans confirmaram que em decorrência do ambiente hostil, no qual são obrigadas a permanecer desde que iniciam a aproximação com o universo trans, poucas dessas pessoas alcançam formas de ascensão

social e profissional que não estejam vinculadas ao universo da prostituição. A vivência e o aprendizado da cidadania torna-se um direito negado a essas pessoas, principalmente pelos obstáculos impostos pelos sistemas educacionais que ainda representa uma das únicas possibilidades de elevação cultural e social para as camadas menos favorecidas da sociedade. Resta-lhes, desse modo, na maioria das vezes, a educação das ruas (HENRIQUES et al., 2007; JUNQUEIRA, 2009a, 2009b; PERES, 2009; LIONÇO; DINIZ, 2009).

Partindo dessas argumentações, o fenômeno da transfobia pode ser definido como um processo de recusa histórica, social e cultural pela forma como travestis, transexuais e transgêneros constroem seu gênero e vivem suas sexualidades. O aspecto mais marcante seria as diversas dimensões de vulnerabilidade a que esses sujeitos são expostos em razão de se constituírem como “o/a outro/a” do gênero e das sexualidades, portanto, “o/a outro/a” na condição de direitos humanos. Para Elisabetta Ruspini (2008) constituir-se como esse/a “outro/a” desencadeia nas diversas dimensões sociais reações de medo, receio e incerteza que resultam em atitudes ou posturas discriminatórias contra essas pessoas cujo gênero não corresponde ao sexo concebido ao nascimento.