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Eu tinha percebido que era diferente, eu nunca gostei de brincar com meninos, brincava mais com as meninas, tinha aquela sensação diferente dentro de mim; [...] sempre tive uma tendência para a feminilidade. Não sei se foi pela parte histórico-cultural que o gay se liga à imagem feminina. Não! É uma coisa minha mesmo! (Sayonara, Uberlândia-MG, julho de 2007). Como destacado no relato de Sayonara, a proximidade com o universo feminino constitui-se o primeiro fator de aproximação entre os sujeitos dessa tese. Ressaltamos uma diversidade de gêneros femininos transformados, personificados, resistidos, que fazem emergir possibilidades de ampliação na compreensão dos processos culturais de construção do corpo, do gênero e da sexualidade (BENEDETTI, 2005), representados na forma singular

como essas feminilidades foram e são construídas e significadas por cada uma das docentes. Quando perguntadas sobre sua identidade de gênero, a maioria das docentes, sete, se identificou como transexual; quatro como travesti e uma/um como transgênero. A heterossexualidade foi indicada como a identidade sexual de seis delas, três se classificaram como homossexual e outras três não se interpretavam dentro de nenhuma das possibilidades de vivência da identidade sexual.

Como já detalhado no primeiro capítulo, uma diferenciação marcante entre as pessoas que habitam o universo trans, ainda recorrente no imaginário social, seria a consolidação da transexualidade pautada na realização da cirurgia de readequação sexual. Essa concepção foi reafirmada pela maioria das investigadas. Para cinco, das seis docentes que se identificaram como transexuais, a realização da cirurgia de readequação sexual contemplava seus planos para a efetivação da construção do feminino almejado. Para algumas, essa demanda assumia caráter emergencial, como no caso de Sayonara e Adriana Lohanna que estavam vinculadas a programas do Sistema Único de Saúde (SUS), tendo concluído todas as etapas que antecedem a cirurgia. Elas aguardavam apenas a liberação para sua realização. Para Sandra, Marina e Danye esse procedimento consistia de planos para o futuro. Para Adry, em razão de seu processo de baixa coagulação sanguínea, a cirurgia se tornava um risco de morte, portanto, uma possibilidade distante, mas ainda assim um desejo.

Geanne foi exceção. Posicionou-se totalmente desfavorável à realização da cirurgia, pois acreditava que apesar de ser um processo que avançou nas últimas décadas, interpretava seus resultados como questionáveis, aproximando-se mais de uma “castração”. Como especificou em seu relato, o fato de ter um órgão genital definido culturalmente como masculino não retirava de si a dimensão feminina: “Por isso que, nessas horas, falo que, mesmo não tirando meu pênis, falo sim, não tenho problema nenhum, sou mulher. Eu posso

ter pênis, sou uma mulher. Isso para mim é bem tranqüilo.” (Geanne, Embu-SP, janeiro de 2013, sublinhado nosso).

Neste sentido, o construir-se feminino para a maioria dessas docentes que se identificaram como transexuais se aproximou do que Bento (2008) definiu como a vivência de uma “experiência transexual”. Nessa experiência a oposição aos princípios pautados pela sequência sexo/gênero torna-se recorrente, em especial no que se refere à necessidade da construção de uma genitália específica para se identificarem no feminino, uma vez que se identificavam como mulher mesmo ainda não tendo realizado o processo cirúrgico. Essa contradição à sequência sexo/gênero é radicalmente levantada por Geanne. Interpretada

dentro de uma perspectiva queer ela levantou indícios de uma “nova política de gênero” ao questionar e chamar atenção para as normas que criam os sujeitos, nesse caso, o sujeito transexual que se efetivaria a partir da demanda da realização do processo de readequação sexual sob um olhar médico-legal (MISCKOLCI, 2012). Em outros casos, essa sequência sexo/gênero ainda interferia nessa identificação estabelecendo limites para essa construção do “ser mulher”.

Sayonara descreveu seu trajeto de constituição do gênero e da sexualidade como um processo evolutivo iniciado na homossexualidade, passando pela travestilidade e chegando à transexualidade. Identificou-se, no período no qual a entrevistamos, como mulher transexual. Contudo, o confronto com os valores e critérios historicamente determinados à construção do gênero feminino pareciam gerar conflitos na constituição de sua feminilidade. Esse fato emergiu quando nos contou de uma de suas conversas com a psicóloga do Programa “Em Cima do Salto”.

Até falei para [nome da psicóloga]: “Eu quero fazer cirurgia, porque o sexo hoje me incomoda. É. Mas eu nunca serei mulher. Eu serei uma pseudo-

mulher.” Ela me perguntou: “Por que será uma pseudo-mulher?” Eu: “Porque o que diferencia o homem da mulher são os órgãos reprodutivos, Não é? Eu nunca terei, eu nunca irei procriar.” Aí, ela falou: “Ah, mas eu conheço tanta mulher que é estéril... Não é? E não deixou de ser mulher.” Eu até fiquei meio assim, mas, eu acho que é uma

pseudo-mulher. Não é mulher (Sayonara, Uberlândia-MG, novembro de 2011, sublinhado nosso).

O questionamento de Sayonara remeteu-nos à descoberta e invenção do modelo de dois sexos norteado pela ciência moderna em que um dos parâmetros para a construção do corpo feminino seria a ênfase na existência dos órgãos reprodutivos (LAQUEUR, 2001; CORREA; ARÁN, 2008). Todavia, em outros momentos de seu relato esses conflitos parecem se desmantelar, por exemplo, ao comentar de seu relacionamento afetivo de dois anos no qual se situava como heterossexual, reafirmando um possível gênero feminino transformado, personificado e resistido assim como descrito por Benedetti (2005). Seguindo essa linha de pensamento contaminada pela sequência sexo/gênero, mesmo conhecendo as discussões atuais que rompem essa normatização para definição do constituir-se transexual, Edna interpretava-se travesti e homossexual.

Homossexual, por quê? Porque eu ainda tenho um sexo fisicamente masculino, por isso me considero um homossexual. Travesti porque eu

acho que no ponto de chegar a transexual, só considero chegar a ser uma transexual realmente após uma cirurgia, porque aí você mudou de sexo

Essa compreensão de Edna foi também partilhada por Sarah que se percebia como mulher, mas com uma genitália masculina, consequentemente uma travesti e homossexual. Para Bruna e Adriana Sales o referencial da feminilidade era respeitado e garantido sob uma afirmação “cultural e gramatical” (BENEDETTI, 2005) que norteava a construção de suas travestilidades. Tanto que o fato de identificarem-se como travesti em momento algum lhes isentava de se localizarem como heterossexuais. O relato de Bruna esclareceu essa questão ao nos responder sobre sua identidade sexual.

Hetero, com certeza. Não tenho dúvidas quanto a isso. Costumo dizer que

eu seria homo se eu tivesse relação com outra travesti. Se a orientação é

definida pelo gênero, então, se eu tenho atração pelo gênero masculino, não importa a prática sexual. A prática sexual é indiferente, é a forma de

obter prazer. Mas, se o gênero que me atrai é o gênero feminino, se outra travesti é do gênero feminino, eu terei uma relação afetiva com ela, aí serei homo (Bruna, Aracaju-SE, novembro de 2010, sublinhados nossos).

Como especificado por Bruna, o demarcador da heterossexualidade refere-se ao fato do/a outro/a por quem manifesta desejo afetivo e sexual pertencer ao gênero oposto. Esse princípio foi também o norteador de Adriana Sales, Adriana Lohanna, Geanne, Sandra e Danye ao se identificarem como heterossexuais.

Em outro viés, além de homossexual, Alysson se compreendia como transgênero, uma vez que não se percebia especificamente como masculino ou feminino. Pensava num processo livre que lhe permitia vaguear, passear, transitar entre gêneros. A transformação como uma experiência constante em si era a forma como se via e que também associava ao seu campo de atuação, a arte. Como expressou em sua fala, recusava a consolidação: “Não me consolidar no masculino. Eu não me consolido. Eu acho que é isso mesmo, é uma transição. Ao mesmo tempo também eu não me vejo totalmente feminina por conta do que é o corpo. Não é?” (Alysson, Ituiutaba-MG, maio de 2013).

Sayonara e Adry preferiram não pensar em denominações para sua vivência da sexualidade. Acreditavam que se relacionavam e despertavam o interesse por e em homens heterossexuais. Adry ressaltou-nos que era importante interpretar-se como mulher. Partilhando dessa percepção, Marina se embaraçou ao tentar expressar sua compreensão.

Ah, é tão difícil. Não é? Porque eu vivo a transexualidade. Agora, eu tenho certeza que nunca vou me relacionar com mulher. Como eu vivo a transexualidade, posso dizer que é uma bissexualidade. Ah. Não sei. Você

me deu um nó agora. (...) Acho assim, eu posso me relacionar com homens

bissexuais e posso me relacionar com homens heteros. Eu tenho essa tranquilidade (Marina, Canoas-RS, novembro de 2010, sublinhado nosso).

A tentativa de estabelecer limites ou fronteiras, uma linearidade para o que seria a identidade sexual, foi desmantelada por Sayonara, Adry e Marina. Isso sinalizou para uma ambiguidade, multiplicidade ou fluidez no constituírem-se como homo, hetero ou bissexual, assim como Alysson desestruturou a noção de verdade do que é ser masculino ou feminino, compreendendo-se em trânsito por entre os gêneros, bem como Geanne ao se afirmar mulher mesmo tendo um pênis. Esses posicionamentos demarcam suas vivências como expressões instáveis da condição humana propondo-nos confusões e desafios no que se refere à sua compreensão, situando-as, numa perspectiva queer, como dissidentes do gênero e das sexualidades (GAMSON, 2007). Ao mesmo tempo em que nos impõem desafios, esses sujeitos parecem contribuir de forma promissora na transformação social, assim como especificado por Miskolci (2012, p. 17).

Para que seja possível, é necessário superar o binário hetero-homo, a ideia poderosa e altamente contestável de que a sociedade se divide apenas em heterossexuais e homossexuais. É importante também ir além das meras tentativas de proteger aqueles que o movimento social chama de pessoas LGBT (Lésbicas, gays, bissexuais, travestis e transexuais), um termo que não dá conta do grande espectro de gente que não se enquadra no modelo heterossexual e que não cabe em nenhuma das letras.

Essas confusões e desafios ampliam-se para todas as dimensões das vidas dos sujeitos, o que exige todo o tempo, ressignificações em suas relações com a família, a escola e o campo profissional. Espaços nos quais ao se constituírem como dissidentes, muitas vezes acendem diversas formas de vulnerabilidade no que se refere à integridade social, emocional, física e psíquica. Essas diversas vulnerabilidades pelas quais são expostas pessoas trans podem ser definidas de forma mais pontual como o fenômeno da transfobia.