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As discussões sobre o tipo de formação que tem sido desenvolvida nos cursos de graduação em Psicologia promoveram algumas reflexões: que tipo de profissional está sendo formado? Com o que esse profissional é capaz de lidar? Que contribuições ele oferece para a sociedade? O que tem sido constatado é que a formação em Psicologia tem promovido uma atuação que privilegia a utilização de técnicas e a identificação de problemas considerados psicológicos, ao invés de desenvolver a capacidade dos profissionais de identificar os fenômenos psicológicos e propor intervenções que sejam socialmente significativas a partir da caracterização das necessidades apresentadas pela população.

Os docentes dos cursos de Psicologia no Brasil têm privilegiado o ensino de técnicas que são consideradas, por eles, como psicológicas, o que tem caracterizado uma formação eminentemente técnica (Bastos, 1992; Botomé, 1987; Carvalho, 1982, 1984a,

35 1984b; Dias, 2001; Guedes, 1992; Hoff, 1999; Larocca, 2000; Maluf, 1994; Witter, Witter, Yukimtsu & Gonçalves, 1992; Zanelli, 1994). A formação técnica, embora necessária, não é suficiente para habilitar o profissional em Psicologia a identificar e intervir sobre as necessidades sociais da população. É possível identificar, na literatura sobre a formação em Psicologia, uma crítica (que vem sendo realizada, pelo menos, desde a década de 1990) à formação na qual é privilegiado o ensino de instrumentos ao aluno para aplicá-los na realidade depois de formado, ao invés de desenvolver comportamentos para avaliar a realidade e, a partir dessa avaliação, propor os instrumentos necessários (Botomé, 1987; Carvalho, 1984a, 1984b; Dias, 2001; Hoff, 1999; Larocca, 2000). Carvalho (1984a, 1984b) demonstrou, por meio de entrevistas realizadas com 605 psicólogos recém-formados, que uma atuação foi caracterizada pelos participantes como psicológica quando envolvia “modelos” tradicionais aprendidos durante o curso de graduação, da utilização de certas técnicas em determinadas situações e não pela natureza dos fenômenos envolvidos nessa intervenção. Zanelli (1994), a partir de entrevistas realizadas com 13 experts na sub-área de Psicologia das Organizações e Trabalho sobre aspectos da formação profissional, constatou que a formação e a atuação nesse subcampo8 privilegiam a utilização de técnicas (principalmente em recrutamento, seleção e treinamento de pessoal). De acordo com o autor, são poucos os profissionais que atuam nas organizações em outros níveis, descritos por Zanelli e Bastos (2004) como o estratégico e o político. Larocca (2000), num ensaio que avalia o ensino de Psicologia na Educação, considera que muitos cursos mantêm uma perspectiva “racional- técnica” ao dividirem as disciplinas teóricas e práticas sem considerá-las inter-relacionadas. A autora ressalta que o que precisa ser ensinado é a capacidade do aluno em lidar com situações problemas com o auxílio de instrumentos e métodos e não o contrário (de adaptar as situações aos instrumentos aprendidos).

A formação eminentemente técnica tem dificultado a percepção do campo de atuação profissional pelo psicólogo, sua atuação tem sido caracterizada por pouca diversificação e amplitude, basicamente por intervenções clínicas e individuais. Carvalho (1982), em um estudo que abrangeu 20% dos psicólogos recém-formados da cidade de São Paulo entre 1978 e 1982, e replicando a pesquisa realizada por Melo em 1970, demonstrou que havia uma estabilidade na distribuição dos psicólogos em relação a áreas e modalidades de atuação entre a pesquisa que realizou e a realizada por Melo, pois permanecia uma procura maior pela clínica (56,4 %) em contraste com 12,5% que atuam na área de trabalho, 5,9% em

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Subcampos da Psicologia são os segmentos e/ou contextos que caracterizam a atuação do psicólogo, são partes diversificadas do campo de atuação profissional.

36 escolar, 14,7% no ensino e 10,4% em outras. Em um estudo realizado com 922 psicólogos cujo objetivo foi caracterizar a atuação profissional no Rio Grande do Sul, Piccini, Pessin, Stortz e Jotz (1989) descobriram dados semelhantes aos encontrados por Carvalho (1982). No estudo de Piccini e cols. (1989) foi revelado que, com relação à preferência pelos subcampos da Psicologia, 60% indicaram a clínica, 12% escolar, 18% organizacional e 9% a docência. Mais recentemente, Japur e Osório (1998), em um estudo realizado com 20 ex-alunos de graduação, demonstraram que, apesar de ter diminuído a proporção, a clínica continua sendo a atuação mais indicada, com 19 das 40 indicações feitas pelos participantes.

A imagem do psicólogo como psicoterapeuta clínico provavelmente está relacionada com o tipo de formação que é propiciada nos cursos de graduação, que tem desenvolvido apenas parte dos comportamentos necessários à atuação do profissional, em detrimento de uma formação que o habilite a avaliar as possibilidades de atuação em Psicologia. Weber, Rickli e Liviski (1994) demonstraram, por meio de uma pesquisa realizada com alunos de quatro turmas durante os cinco anos da graduação em Psicologia na cidade de Curitiba, que a representação que os alunos faziam quando ingressavam no curso de Psicologia (a caracterização do senso comum) do papel do psicólogo como um profissional que ajuda a resolver problemas (principalmente voltados para a clínica) foi mantida e promovida durante a formação. Carvalho (1982), num estudo sobre a caracterização da atuação de profissionais recém-formados realizado com 20% dos psicólogos recém-formados da cidade de São Paulo entre 1978 e 1982, investigou a justificativa dada pelos alunos à opção profissional no início e no final do curso de graduação. Os dados encontrados por Carvalho (1982) corroboram o que foi descoberto por Carvalho e Kavano (1982), e revelam que, no início do curso, o motivo de indicar a clínica é o desconhecimento dos demais subcampos (59%) e, no final do curso, os alunos atribuem à influência do curso (84%) na indicação do subcampo da clínica.

A relação entre o que é desenvolvido na formação e o que os alunos buscam na graduação, talvez pela representação que fazem da Psicologia, é cíclica. Magalhães, Stralitto, Keller e Gomes (2001) investigaram o motivo de escolha da Psicologia para 146 estudantes do primeiro ano do curso em duas universidades do Rio Grande do Sul. Os resultados encontrados pelos autores demonstraram que os alunos escolhem a Psicologia como profissão por quererem compreender o ser humano e os seus próprios problemas sentimentais e existenciais o que requer, segundo os participantes, capacidade de escuta, paciência, calma, observação, compreensão e interesse pelo outro. Capacidades essas que os participantes

37 relataram ter. O modelo ideal de atuação psicológica relatada pelos participantes foi o atendimento individual em consultório sendo os demais subcampos de atuação caracterizados como possibilitando intervenções menos “profundas”. Bueno, Lemos e Tomé (2004) demonstraram, por meio de uma pesquisa realizada com 120 alunos ingressantes no curso de Psicologia na cidade de São Paulo, que os alunos que ingressaram no curso de Psicologia apresentam, em comum, características de interesse por atividades sociais (de ajuda aos outros). A escolha da Psicologia como profissão ocorre provavelmente por possibilitar uma atuação clínica e individual. A identificação e escolha da profissão de psicólogo por sua atuação como psicoterapeuta clínico sugere a necessidade desse profissional ampliar suas possibilidades de atuação para além desse subcampo tradicional da Psicologia.

Os profissionais de Psicologia reconhecem a limitação de sua atuação profissional, porém não têm clareza sobre suas possibilidades de atuação. Carvalho (1984b), a partir de entrevistas realizadas com 605 psicólogos recém-formados, analisou 53 casos em que os profissionais informaram atuar em outros subcampos da Psicologia que não os tradicionais (clínica, escola, trabalho e ensino). A autora demonstrou que os psicólogos informam a necessidade de atuar em subcampos “não tradicionais” para ter maior alcance social. Porém, as atuações “não tradicionais” realizadas por esses profissionais geraram sentimentos de insegurança quanto à natureza da atuação ser tipicamente psicológica. A autora discute que, como conseqüência dessa insegurança, os profissionais se sentem insatisfeitos com o seu trabalho, levando a 50% de abandono dessas atividades consideradas “alternativas”. De acordo com Carvalho (1984b), essa situação promove conflitos quanto ao que caracteriza a atuação do psicólogo devido aos profissionais identificarem a necessidade da Psicologia ampliar suas intervenções e, ao mesmo tempo, não conseguirem superar os subcampos e intervenções tradicionais aprendidas nos cursos de graduação para atender às necessidades da população.

A insatisfação com o “modelo” de atuação profissional aprendido na graduação leva os profissionais de Psicologia a “criarem”, ainda que incipientemente, atuações que ampliam os contextos sobre os quais os psicólogos intervêm. Maluf (1994), por meio de entrevistas realizadas com profissionais que atuavam em Psicologia Escolar/Educacional, relata que a limitação dos comportamentos desenvolvidos nos cursos de graduação para atuação no subcampo levou os profissionais a reproduzirem os modelos de avaliação e atendimento clínico e individual nas escolas. A autora avalia que os participantes relataram que, com o decorrer dos anos de atuação, foi possível identificar novas possibilidades de

38 atuação e propor intervenções diferentes daquelas aprendidas na formação. Witter, Witter, Yukimitsu e Gonçalvez (1992), a partir da avaliação de periódicos sobre Psicologia Escolar, explicitam que as limitações da atuação do profissional no subcampo de escolar podem ocorrer, entre outras coisas, devido à má formação. Zanelli (1994), por meio de entrevistas com profissionais no subcampo de Psicologia Organizacional, corroborando as discussões de Bastos (1992), também revela que o movimento de ampliação das possibilidades de atuação do profissional nesse subcampo de atuação é decorrente da insatisfação em relação às atuações tradicionais aprendidas na graduação. Guedes (1992), por meio de análise de 321 publicações sobre o subcampo clínico, avaliou a necessidade de os psicólogos desse subcampo ampliarem sua atuação para além da clínica, indicando a necessidade de eles saírem dos consultórios particulares para atender à população.

A atuação técnica e clínica características da profissão de psicólogo constituem parte da formação que necessita ser desenvolvida nos cursos de graduação em Psicologia. No entanto, a atuação profissional do psicólogo não se encerra nessas características. A promoção parcial das possibilidades de atuação do psicólogo provavelmente reflete o tipo de formação que tem sido desenvolvida nos cursos de Psicologia. Apesar do reconhecimento da necessidade de ampliação do campo de atuação, a formação parcial tem gerado dificuldades ao profissional em reconhecer seu objeto de trabalho e de atuar de modo diferente ao que aprendeu como próprio da Psicologia.

1.7 Necessidade de garantir na formação o desenvolvimento de classes de