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Que aspectos são definidores de ensino de nível superior? O que difere no ensino de nível superior do ensino de outros níveis? O que caracteriza a intervenção de psicólogos

4 como profissionais de nível superior? Avaliar no que implica o adjetivo “superior” na formação profissional requer que uma relação direta seja estabelecida entre ensino e pesquisa, ou pela definição da função dessas duas atividades, entre produção de aprendizagens e produção de conhecimento científico. Relacionar essa duas atividades (ensino e pesquisa) ou essas duas funções (produção de aprendizagens e de conhecimentos) é necessário para caracterizar a função social de instituições de ensino denominadas universidades.

A caracterização de objetivos de instituições universitárias como “ensino”, “pesquisa” e “extensão” denota um equívoco conceitual acerca da função social da universidade e, conseqüentemente, da pesquisa na educação de nível superior. Botomé (1996) explica que é necessário ter clareza da função social da universidade para construir condições para que efetivamente as intervenções das pessoas que compõem a universidade tenham valor para a sociedade na qual a universidade está inserida. O autor explicita que em estatutos e documentos dessas organizações de ensino geralmente as atribuições, objetivos e funções são descritas por meio do “tripé” ensino, pesquisa e extensão. No entanto, Botomé explica que esse “tripé” constitui um meio para atingir os objetivos de organizações universitárias, pois são atividades, meios para algo. Realizar pesquisa com que finalidade? Ensinar para quê? “Estender” a universidade para quê? Talvez respostas a essas questões pudessem auxiliar na identificação mais clara do que constitui a função social da universidade e, em especial, da formação científica em nível de graduação.

Botomé (1996) explicita que a função de qualquer instituição social é melhorar a qualidade de vida das pessoas que constituem a sociedade. No entanto, é necessário ter clareza da contribuição específica de cada instituição para realizar o que a sociedade necessita. Qual a função da instituição universitária? Que relações a instituição universitária tem com a sociedade? O que caracteriza a contribuição específica da universidade para a melhoria da qualidade de vida das pessoas que compõem a sociedade na qual a universidade está inserida? Botomé (1996) e Pozenatto (1995) esclarecem que a função social da universidade é produzir conhecimento e torná-lo acessível à sociedade. Nesse sentido, o ensino, a pesquisa e a extensão são atividades (meios, recursos ou instrumentos) que profissionais que constituem as instituições universitárias realizam com a finalidade de produzir conhecimento e torná-lo acessível à sociedade. Dessa forma, a formação científica tem uma função definidora dos próprios objetivos de instituições universitárias.

A falta de clareza da função social de instituições universitárias favorece uma descaracterização da identidade desse tipo de instituição e a fragilização da necessidade de

5 sua existência para a sociedade. Botomé (1996) afirma que as demandas da universidade podem ser da população, do governo, de entidades poderosas ou dos próprios componentes da instituição e que atendê-las indiscriminadamente pode destruir a instituição pela descaracterização da mesma. Para o autor, a falta de identidade institucional por parte dos componentes de uma instituição pode resultar na fragilização da administração em uma instituição. Nesse sentido, a falta de clareza por parte das pessoas que compõem a universidade de que esse tipo de instituição tem função de identificar e atender às necessidades da população, e que seu compromisso social é com a sociedade na qual está inserida, como descreve Pozenato (1995), já que há um contrato social a ser cumprido, pode tornar a universidade desnecessária para essa sociedade. Quais as possibilidades de desenvolvimento e sobrevivência de universidades que buscam atender a solicitações internas (de professores, de pesquisas, de projetos de diversas naturezas)? Ou a atenderem apenas demandas do mercado de trabalho?

A universidade (e a educação de nível superior) necessita ter assegurado o seu valor de instituição social para que a formação científica faça sentido como instrumento de desenvolvimento da sociedade. Schvarstein (2000) diferencia a noção de instituição e organização. Para o autor, instituições são compreendidas como normatizações instituídas por leis, regras, valores que determinam e expressam as relações de uma sociedade, são, portanto, instituídas e mantidas pela sociedade. Já organizações são compreendidas pelo autor como a “materialização” das instituições nas quais há um processo de mediação entre as normas e regras sociais e o comportamento das pessoas. Nesse sentido, a educação pode ser compreendida como uma instituição social e uma universidade X como a organização na qual há a “materialização” dessa instituição social. No entanto, se as características de instituição social da educação forem desconsideradas nas propostas de uma organização universitária, a organização pode passar a vigorar com valores e normas próprias. Nesse sentido, pode ocorrer uma “individualização” da organização que passa a funcionar desvinculada da sociedade na qual está inserida. A esse respeito, Chauí (1999) chama atenção para as características das proposições legais que legitimam as universidades no Brasil a partir da Reforma de Estado de 1995. A autora considera que, em decorrência da Reforma, as universidades perdem o caráter de instituições sociais, características da universidade desde seu surgimento no século XIII, na Europa, pelo qual a sociedade é o princípio e a referência normativa e valorativa da universidade e esta é fundada no reconhecimento público de sua legitimidade. Em contraposição, a autora explica que as universidades ganham o caráter de organizações sociais

6 nas quais as referências são objetivos particulares a serem obtidos por meio conjuntos de instrumentos particulares. Nesse sentido, a produção de conhecimento, que é considerada uma das características de universidades e do ensino superior, conforme definem Botomé (1996), Puc (2000), Sguissardi (2004), só se manterá como caracterizadora de ensino de nível superior se não houver rompimento da noção de organizações universitárias como “materializadoras” de instituições sociais, visto que a produção de conhecimento científico necessitar assegurar as necessidades sociais são o que orienta essa produção e não interesses particulares de organizações específicas.

A caracterização de universidades e do ensino superior como organizações particulares desvinculadas de instituições sociais aumenta o risco de transformar a universidade em um centro mercantilista que enfraquece a necessidade de produção de conhecimento capaz de fomentar transformações sociais de valor. Pazeto (2005) discute o “papel” que a universidade vem adquirindo no Brasil e explicita que a universidade vem perdendo sua “identidade” como organização de produção de conhecimento e tecnologia e visa cada vez mais atender a interesses mercantilistas com fins pragmáticos e utilitários. Esse aspecto de mercantilização do ensino o autor considera que desvia a função “político- estratégica” da universidade, também ressaltada por Botomé (1996) e Chauí (1999), de contribuir com o desenvolvimento social de maneira reflexiva, investigativa e direcionada ao futuro, com sentido público, para uma função “tático-operacional”, formando profissionais para suprir as necessidades de mercado de caráter imediato.

Em universidades com características de organizações que desconsideram a instituição social da educação, a pesquisa é caracterizada como uma atividade sem função clara de produção de conhecimento. Chauí (1999), ao discutir sobre as possibilidades da universidade brasileira como organização social (e não instituição social), explicita que as bases legais de regulamentação da universidade possibilitam o desenvolvimento de universidades consideradas pela autora como universidade operacional. A autora indica que esse tipo de universidade está voltada para si mesma como estrutura de gestão e arbitragem de contratos, referência que caracteriza uma gestão que opera e não age. Em decorrência disso, é possível ressaltar que há uma distorção da função da docência e da pesquisa. Se a universidade opera, a autora explicita que noção de pesquisa é relacionada mais a instrumentos para intervir ou controlar algo cujos interesses são relativos ao tempo de execução, aos custos e ao quanto foi produzido, pois a referência é a noção de produtividade quantitativa. Para a autora, a reflexão, a crítica, o exame dos conhecimentos produzidos e os

7 avanços possibilitados por esses conhecimentos característicos da ciência não têm “espaço” numa universidade na qual a pesquisa é compreendida como uma delimitação estratégica de um campo de intervenção e controle. Assim, Chauí (1999) conclui que não há pesquisa na universidade operacional.

Para melhor compreender as implicações de decidir o que necessita ser desenvolvido no ensino de nível superior sob controle das demandas do mercado, é necessário avaliar a própria definição de mercado de trabalho. Rebelatto e Botomé (1999) definem mercado de trabalho como as ofertas de emprego existentes. O mercado de trabalho faz parte do campo de atuação profissional, que, por sua vez, é definido pelos autores como envolvendo as necessidades e possibilidades de atuação profissional. Nesse sentido, campo de atuação profissional envolve, além das demandas sociais para as quais há remuneração (empregos), todas as necessidades e possibilidades de intervenção sobre o fenômeno de uma determinada profissão independente de haver ou não remuneração ou haver ou não demanda da sociedade para essas intervenções. Isso quer dizer que, se há objeto de estudo e intervenção de uma profissão e há necessidade de que algo seja feito em relação a esse objeto de intervenção é possível a um profissional intervir. Essas definições apresentadas por Rebelatto e Botomé (1999) possibilitam avaliar que na universidade necessitam ser asseguradas condições para que as pessoas sejam formadas para serem capazes de intervir sobre seu campo de atuação profissional. Esse tipo de formação pode evitar o que Chauí (1999) ressalta sobre um problema de formar profissionais para o mercado de trabalho: o mercado muda tão rapidamente que a realidade de ofertas de empregos quando um aluno ingressa num curso de graduação pode ser muito diferente da realidade quando conclui o curso de graduação. Nesse sentido, Chauí (1999) complementa que a formação para o mercado de trabalho pode promover a expulsão dos profissionais do mercado de trabalho em poucos anos por tornarem- se, em pouco tempo, jovens obsoletos e descartáveis.

Se a produção de conhecimento orientada por necessidades sociais não for compreendida como uma das funções definidoras do ensino de nível superior a ser desenvolvida em instituições universitárias a própria universidade perde sua identidade por ter descaracterizada sua função social. Para evitar essa descaracterização, é necessário rever os objetivos da universidade a fim de deixar claro, para os profissionais que nela atuam e para a sociedade na qual ela está inserida, qual sua função social. A confusão entre atividades-meio (ensino, pesquisa e extensão) e atividades-fim (produção de conhecimento e criação de acesso a ele) pode levar a um rompimento do contrato social da universidade e, com isso, tornar a

8 universidade uma instituição desnecessária ou mesmo nociva à sociedade. Dessa forma, é necessário que profissionais e gestores de universidades e da formação de nível superior tenham clareza da função e das características desse tipo de instituição social, para que possam produzir conhecimentos e transformar conhecimentos em comportamentos profissionais e, assim, contribuir para a melhoria da qualidade de vida da sociedade.

1.2 Formar profissionais para intervir indiretamente por meio de pesquisa requer