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4.2 Da Rouanet ao Procultura: Espaços e vozes envolvidos no debate

4.2.1 A atuação do Ministério da Cultura

A presente subseção se desenvolve no intuito de apresentar os avanços e desafios do Procultura, partindo da abordagem sobre o papel do Ministério da Cultura na elaboração desse mecanismo. O processo de construção do projeto de lei que trata do Procultura se deu em diversas instâncias: a primeira fase foi caracterizada pelos debates realizados nas conferências de cultura, fóruns e seminários, onde a insatisfação com o atual formato da Lei Rouanet era sensível e manifestada por grande parte daqueles que atuavam nas discussões. Foi nessa primeira etapa que alguns problemas dessa ferramenta de financiamento foram elencados.

Uma discussão que antecede esse mapeamento e reestruturação da Lei diz respeito aos desafios iniciais enfrentados pelo Ministério na estruturação de políticas culturais, de modo mais geral, e ao desenho da instituição estabelecido a partir da gestão do ex-ministro Gilberto Gil (2003 a 2008). Considerando a instabilidade do órgão, resultante de um longo processo histórico de descontinuidade e dissolução da pasta, aliada à ampla relação estabelecida entre o MinC e a renúncia fiscal como sua principal política, o primeiro desafio encontrado por Gil ao assumir o Ministério em 2003 foi justamente estabelecer novas diretrizes que conseguissem resgatar o papel do órgão como formulador, executor e articulador de políticas de cultura, como reflexo de algumas mudanças de direcionamento da gestão:

Gilberto Gil e Juca Ferreira, vale destacar: 1) o alargamento do conceito de cultura e a inclusão do direito à cultura, como um dos princípios basilares da cidadania; sendo assim, 2) o público alvo das ações governamentais é deslocado do artista para a população em geral; e 3) o Estado, então, retoma o seu lugar como agente principal na execução das políticas culturais; ressaltando a importância 4) da participação da sociedade na elaboração dessas políticas; e 5) da divisão de responsabilidades entre os diferentes níveis de governo, as organizações sociais e a sociedade, para a gestão das ações. (SOTO et al, 2010, p.30)

A preocupação com essas questões já se apresentavam na campanha eleitoral do ex- presidente Lula em 2002, expressando-se no documento denominado “A Imaginação a serviço do Brasil: Programa de Políticas Públicas de Cultura”, que esboçava as principais diretrizes nessa área: a cultura como Política de Estado, a Economia da Cultura, Gestão Democrática, Direito à Memória, Cultura e Comunicação e Transversalidade das políticas públicas de Cultura. (PT, 2002)

A agenda proposta afirmava a necessidade de formular políticas mais duradouras e de abordar a cultura como política de Estado, como se expressou no primeiro tema de campanha. O documento ressaltava a cultura como direito básico do cidadão e a importância da afirmação de identidades regionais e étnico-culturais. No âmbito da Economia da Cultura, era o entendimento da cultura na sua relação com o desenvolvimento socioeconômico, bem como a discussão em torno das leis de incentivo, que se destacava como fator fundamental. Os elementos de participação e a disponibilidade para o diálogo se expressavam na proposta de gestão democrática a partir do fortalecimento de conselhos e de mecanismos participativos. A salvaguarda de acervos e de patrimônio, além de uma política de museus e arquivos, compuseram a diretriz do “Direito à Memória”. No âmbito da comunicação, o documento expôs a preocupação de governo com a relação às grandes cadeias de entretenimento, estabelecendo novos critérios para as articulações com o Estado, além do funcionamento do Conselho Nacional de Comunicação social.

Uma breve menção a esse documento é fundamental, tendo em vista que ele buscou direcionar as principais políticas da cultura ao longo do governo Lula. Considerando a transversalidade da cultura e as dimensões social, democrática e nacional como eixos estruturantes, algumas políticas, como o Sistema Nacional de Cultura por exemplo, já eram ressaltadas pelo então candidato a presidente durante a campanha, fator que resultou na incorporação desses instrumentos como metas prioritárias para a cultura.

Considerando o direcionamento de campanha, era fundamental, nesse contexto, que o Ministério criasse uma identidade para o órgão e que conseguisse não apenas ultrapassar o limite da renúncia enquanto política preponderante do governo – considerando a dimensão

assumida pela Lei Rouanet dentro das políticas do Ministério, como destacado em capítulos anteriores deste trabalho–, mas também intervir nos graves problemas enfrentados pela instituição, como apontado no pronunciamento realizado por Gilberto Gil na abertura do Seminário Internacional de Políticas Públicas de Cultura, na Universidade Estadual do Rio de Janeiro (UERJ) em 2005: "É preciso encarar os reflexos de zigue-zagues do passado: há mais servidores aposentados do que na ativa; o orçamento é o menor da Esplanada; instituições, instrumentos e vontades estão desarticulados; os balcões atendem os ‘escolhidos’. Como superar este quadro?" (GIL, 2005)

Iniciada a gestão, além do PNC e do SNC, os debates se concentraram nas distorções e problemas da Rouanet e no planejamento para iniciar a estruturação de uma nova lei. Foram seis anos de intensas discussões (de 2003 a 2009), cerca de 14 mil agentes envolvidos nos espaços participativos e mais de 2 mil contribuições identificadas, considerando os debates iniciados no Seminário Nacional "Cultura para todos" (entre 2003 e 2004), passando pelos "Diálogos culturais" iniciados em 2008 e coroados com o Fórum Nacional de Financiamento da Cultura, realizado em dezembro de 2009.

A disponibilização desses espaços de participação marcou uma das etapas mais relevantes para a construção do documento do Procultura. Foi nesse momento que as demandas passaram a ser sistematizadas, acarretando na elaboração de documentos e no levantamento de informações necessárias à estruturação do primeiro texto do projeto.

A ação dos "Diálogos culturais", ocorrida na gestão do ex-ministro Juca Ferreira (2008 a 2010), em setembro de 2008, marcou a construção dessa nova lei a partir de discussões junto aos diversos segmentos culturais, o que foi apontado, pelo governo, como uma experiência de transposição da estruturação de políticas para fora dos gabinetes oficiais. Nos Diálogos culturais, Juca Ferreira apresentava informações relativas ao número de projetos apoiados, principais patrocinadores, concentração de recursos por região, por segmentos culturais, além de outros dados que embasavam a argumentação do Ministério no sentido de promover a reforma na lei. O ministro acompanhou pessoalmente esses debates, que percorreram 19 estados.

Alinhadas com essa política, outras iniciativas confluíam no estabelecimento do diálogo e na disponibilização de espaços para atuação civil: as câmaras setoriais, instaladas em 200441, que envolviam diretamente os artistas na definição das metas para cada segmento

(Dança, Música, Teatro, Circo, Artes Visuais e Livro e Leitura); a realização das conferências

41 As câmaras setoriais, vinculadas inicialmente à Funarte, foram paralisadas em 2006 e retomadas em 2007,

nacionais; a instalação da ouvidoria do MinC, com o objetivo de dar mais transparência ao órgão.

Em 2009, as oportunidades de participação foram ampliadas e a modificação no modelo de financiamento à cultura era apontada como prioritária para o Governo, o que resultou na composição de um Blog para consulta pública acerca da reforma da Lei Rouanet, além dos debates presenciais. Em notícia publicada no site do MinC, destacou-se que

Desde 2003, o Ministério da Cultura manifesta sua intenção de realizar modificações na lei para alterar critérios de aprovação e financiamento de projetos culturais que usem recursos públicos. A minuta do projeto já teve várias regras debatidas publicamente, mas esta é a primeira vez em que um anteprojeto será submetido à avaliação formal. (MINISTÉRIO DA CULTURA, 2009)

Foi nesse ano que ocorreu uma consolidação das informações em torno das políticas culturais, reunindo-se em um documento do Ministério as propostas e contribuições discutidas anteriormente. Ainda através do Ministério da Cultura, e em posse da apresentação dos problemas principais da lei, foram realizados alguns seminários para elaboração do anteprojeto de lei, que seria apresentado à sociedade na consulta pública online antes de ser submetido ao Congresso Nacional.

Nesses seminários, as cinco regiões do país foram visitadas pelos então ministros Gilberto Gil e Juca Ferreira ou por representantes do Ministério, em debates realizados antes da consulta pública. Os seminários objetivavam a orientação dos usuários, produtores e gestores culturais, para uso da plataforma desenvolvida para a consulta, bem como apresentavam os principais desafios da Lei Rouanet e os motivos que levaram à reforma.

O documento de apresentação do Procultura elaborado pelo Ministério da Cultura apresenta alguns problemas do modelo atual, citando que: não traduz mais o que a cultura brasileira representa (desvios de conceito), não garante o acesso de brasileiros à cultura, não estimula o investimento privado direto no segmento cultural, promove a concentração de recursos no sudeste do Brasil, avalia proponentes que nem sempre têm as mesmas condições de aceitação no mercado de forma igual, exclui agentes culturais que não têm acesso aos patrocinadores, vicia o mercado em recursos incentivados, além de manter fracos os demais mecanismos (FNC e Ficart).

Neste documento também foram apontados alguns objetivos da proposta de reforma na lei: ampliação do acesso aos recursos; financiamento de todos os segmentos, todas as áreas da cultura, em todas as dimensões da vida cultural do Brasil; o fortalecimento das pequenas empresas culturais; e fortalecimento da dimensão simbólica, das artes, incorporando

nessas dimensões a diversidade cultural (povos indígenas, etc.). Eram essas as primeiras emergências destacadas na apresentação do MinC e em seus discursos nos espaços de debate.

Na análise do papel do Ministério nessas esferas, algumas questões podem ser destacadas: a ideia de modificar a Lei Rouanet englobou polêmicas porque, de um lado estavam segmentos culturais prejudicados por uma política delineada pelo mercado e, do outro, grupos privilegiados pelo mecanismo de renúncia que não desejavam abdicar dos benefícios obtidos através dessa ferramenta, associados a empresas que não tinham interesse em investir recursos diretos nos projetos culturais, como proposto nas novas faixas de renúncia fiscal anunciadas no Procultura. Essa contextualização é fundamental para perceber a presença destes elementos nos discursos da Câmara, como apontado na análise que segue.