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2.1 Democracia e participação: conceitos e percursos

2.1.1 Participação: Abordagem na democracia representativa e na democracia

Nos atuais regimes democráticos, a participação civil no processo de decisão política figura como um dos fatores imprescindíveis à ideia de democracia. A compreensão da participação como elemento fundamental do sistema democrático pode parecer uma questão evidente, mas nem sempre essas categorias encontraram-se vinculadas. Carole Pateman (1992), analisando algumas teorias democráticas, identificou que o termo, na metade do século passado, aparecia diretamente associado a práticas totalitárias.

O colapso da República de Weimar, com altas taxas de participação das massas com tendência fascista e a introdução de regimes totalitários no pós- guerra, baseados na participação das massas, ainda que uma participação forçada pela intimidação e pela coerção, realçam a tendência de se relacionar a palavra "participação" com o conceito de totalitarismo mais do que com o de democracia. (PATEMAN, 1992, p.11).

A participação como atuação da sociedade civil no sistema político é discutida na obra de Pateman, por meio da análise de autores da teoria democrática e fundamentos da “Teoria da democracia participativa”. Precursora da corrente participativa, Pateman abordou a participação enquanto modo de atuação e intervenção nos processos de decisão política, além de posicionar a sociedade como impulsionadora da democratização de forma mais ampla, extrapolando as arenas estatais.

A autora trouxe importantes considerações acerca do papel da participação na democracia contemporânea, dentre elas a ótica de Schumpeter (1943), cuja ideia de democracia surge como um "arranjo institucional para se chegar a decisões políticas, no qual os indivíduos adquirem o poder de decidir utilizando para isso uma luta competitiva pelo voto do povo” (PATEMAN, 1992, p.13), visão esta que embasou as formulações de Bobbio e que corrobora o princípio da representação. E quais são os pressupostos básicos dessa democracia representativa? As regras do jogo, o direito ao voto, a transparência e a visibilidade se apresentam como elementos-chave desse modelo.

O exercício do voto é apontado como o principal direito político do cidadão, ou seja, como ferramenta fundamental de participação política. Na abordagem de José

Murilo de Carvalho (2002), o autor expõe esse vínculo direto com o exercício dos direitos políticos, onde

Estes se referem à participação do cidadão no governo da sociedade. Seu exercício é limitado à parcela da população e consiste na capacidade de fazer demonstrações políticas, de organizar partidos, de votar, de ser votado. Em geral, quando se fala de direitos políticos, é do direito do voto que se está falando. (CARVALHO, 2002, p.9)

As teorias liberais clássicas discutiam justamente a limitação dos espaços e modos de participação civil no modelo democrático. James Mill (1992) e Jeremy Bentham (2001), representantes do liberalismo, destacavam que, para a efetivação da democracia, era necessário que houvesse publicidade e transparência por parte dos atores políticos, permitindo aos cidadãos a avaliação devida para a escolha de seus representantes, legitimando o governo representativo.

Robert Dahl (2001) também considerava a eleição de representantes, a transparência nas eleições, eleições livres e frequentes e a liberdade de expressão como pressupostos básicos da democracia. A efetivação desses requisitos já bastaria para a concretização do modelo, podendo um aumento do grau de participação representar riscos para a estabilidade do sistema democrático. Assim, “a conclusão esboçada [...] é a de que a visão clássica do homem democrático constitui uma ilusão sem fundamento e que um aumento de participação política dos atuais não participantes poderia abalar a estabilidade do sistema democrático” (PATEMAN, 1992, p. 11).

As críticas direcionadas aos autores do modelo representativo ressaltam que, embora esses elementos formais para a realização democrática sejam efetivados, há um distanciamento entre aquilo que os representados demandam e o que é atendido pelos representantes, entre o que é prioritário para o governado e o que seus representantes no governo decidem sobre essas questões. Essa representação não ocorre, na visão dos críticos, de modo a inserir atores sociais na decisão política, mas somente na decisão de quem irá representá-los. Como destaca Marques:

Em outras palavras, estes autores deixam de ressaltar valores tais como a participação dos cidadãos nos negócios públicos e a deliberação que envolve a esfera civil quando da produção da decisão política, conformando um ideário que, não obstante ser exigente em determinados aspectos, acaba sendo considerado tímido no que se refere a pontos complementares da agenda democrática. De acordo com David Held, assim, os autores de sedimentação liberal “tenderam a se preocupar, acima de tudo, com os princípios e procedimentos corretos do governo democrático” e, por conta de tal perspectiva, não foram capazes, por exemplo, de refletir, de modo integrado, acerca das “condições para a possibilidade de participação política por parte de todos os cidadãos, por um lado, e o conjunto de

instituições governamentais capazes de regular as forças que realmente moldam a vida diária, por outro”. (MARQUES, 2008, p.42)

O modelo de democracia representativa foi questionado e contraposto pela teoria democrática participativa, diante da importância que a participação representa na configuração dos governos e de suas políticas. Mesmo que nos regimes atuais não se prescinda da representação, é importante observar a existência de modelos que adotam a participação civil como algo mais abrangente que o direito de votar e eleger um representante.

Essa outra visão surge com teóricos da democracia participativa, onde o cidadão é visto como agente de forma mais ampla, com participação ilimitada de todos. Com críticas à democracia representativa, por considerá-la um instrumento de manutenção de interesses privados, Rousseau (1983) trazia em “O Contrato Social” uma visão que posicionava a participação de cada cidadão no processo político como elemento fundamental da democracia.

A participação saía de uma função de proteção dos indivíduos e dos arranjos institucionais e se efetivava na tomada de decisão, gerando efeitos psicológicos nos indivíduos. Nessa vertente, Pateman deu destaque às possibilidades de aprendizagem e transformação dos atores sociais quanto à sua atuação política, expondo a dimensão da função educativa da participação, “educativa no mais amplo sentido da palavra, tanto no aspecto psicológico quanto no de aquisição de práticas de habilidades e procedimentos democráticos” (PATEMAN, 1992, p.61).

A composição desse quadro participativo por Rousseau parece, contudo, utópica. O próprio autor reconhece que o funcionamento do sistema não permite o exercício democrático de forma plena e que a democracia é um modelo idealizado. “Se existisse um povo de deuses, governar-se-ia democraticamente. Governo tão perfeito não convém aos homens” (ROUSSEAU, 1983, p. 86).

Embora não seja consolidado o modelo ideal de democracia, pode-se observar uma mudança clara na postura e atuação da sociedade civil em meio aos novos moldes das democracias modernas. A função educativa ressaltada por Pateman se expressa nesse crescimento da inserção social nos processos políticos, embora ainda ocorra de forma parcial e pontual. A prática participativa cria repertórios de atuação, como destaca José Murilo de Carvalho:

Uma cidadania plena, que combine liberdade, participação e igualdade para todos, é um ideal desenvolvido no Ocidente e talvez inatingível. Mas ele tem

servido de parâmetro para o julgamento da qualidade da cidadania em cada país e em cada momento histórico. (CARVALHO, 2002, p.9)

Em ambas as correntes a democracia apresentava problemas. Uma democracia idealizada, pautada pelo modelo da democracia direta da Atenas clássica12, cuja base era

a soberania popular e onde os cidadãos eram totalmente envolvidos e partícipes nas decisões na esfera pública, não se adéqua mais ao sistema político moderno. As eleições compuseram a alternativa mais adequada para manter a atuação da esfera civil e atender à questão da legitimidade na elaboração de políticas públicas.

Ainda assim a representação democrática resolveu só parte dos problemas. Sob a visão liberal moderna, aqueles representantes preocupados com a "coisa pública", escolhidos por meio do voto e de forma legítima, teriam poderes políticos para buscar a resolução de problemas dos cidadãos, apresentando os resultados de sua atuação de forma transparente e realizando proposições voltadas à esfera civil. O que ocorreu nos regimes modernos foi que os representantes, sozinhos, passaram a ocupar o papel dos representados no que diz respeito ao planejamento e discussão de políticas públicas. Essa voz que representaria um grande número de outras vozes ficou restrita e enfraqueceu a vertente participativa da democracia. Marques (2008) definiu essa situação afirmando que "o regime democrático moderno se degenerou na autonomia demasiada do sistema político".

A esfera civil passou a exigir, então, novos modos de atuar e intervir nas instituições e na vida pública. E as democracias passaram, por conseguinte, a contemplar outros mecanismos de participação que davam ênfase tanto à discussão e decisão política quanto à transparência e publicidade. Novas correntes democráticas se constituíram e, dentre elas, alcançou destaque o modelo deliberativo, mais tarde contestado pela ideia da democracia radical. São os princípios básicos, limites e desafios desses outros modelos democráticos, sob o enfoque da participação, que serão tratados no próximo tópico, no intuito de se aprofundar nas estruturas participativas que se instituíram em regimes modernos.

12 O modo como se esboçava a democracia direta na Atenas Clássica, com a soberania popular

prevalecendo nas decisões de negócios públicos, não corresponde, em parte, ao que ocorreu nesse modelo, como aponta Marques (2008): "a assembleia de cidadãos era apenas mais uma das instituições políticas componentes do Estado, e que a configuração política, já àquela época, previa um forte espaço para organizações estatais representativas. Algumas destas organizações, inclusive, possuíam, mesmo, a capacidade de reverter as decisões tomadas pela assembleia soberana de cidadãos".