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A aula universitária conservadora

No documento ENSINAR E APRENDER NA UNIVERSIDADE (páginas 74-78)

PARTE 3 - A AULA UNIVERSITÁRIA E SUA

4.2 A aula universitária conservadora

Nos capítulos anteriores referimo-nos ao conceito de educação bancária de Paulo Freire (2002). É decorrente desse modelo de educação uma maneira específica de conduzir a aula universitária, a qual chamaremos aqui de aula conservadora.

Num contexto de ensino superior a aula conservadora tende a ser eminentemente expositiva, sendo dita pelo professor. É muito pouco interativa e, por vezes, em consequência disso, pouco significativa. Outra característica da aula

que define de modo autoritário os modos de proceder: o que e quando fazer, o que e quando falar, o que e como avaliar.

Sendo resistente à atualização, à reinvenção e à contemporaneização, a aula conservadora fecha os espaços que possibilitam “dizer a própria palavra”, tornando-se “um eterno dizer a palavra do outro de outros tempos” (BASTOS, 2008, p. 145). Em grande medida, essa interdição a que se diga a “própria palavra” é a mesma interdição que impede a produção da aprendizagem significativa.

Vou agora ilustrar uma das marcas da aula universitária conservadora. É muito comum encontrarmos professores que executam os mesmos planos (roteiros) de aula durante um longo tempo. Lembro-me de um professor que, já no novo milênio (anos 2000), ainda mantinha consigo roteiros de aula mimeografados, os quais vinha usando há mais ou menos quinze anos. Esses roteiros eram distribuídos aos alunos, os quais deviam, ao longo das aulas, preencher os espaços em branco com os conceitos que o professor definia no decorrer de sua exposição. Para se ter uma idéia do quanto esses roteiros sobreviveram ao tempo, imutáveis, basta levar em conta que os atuais alunos de graduação mal sabem é o que um mimeógrafo.

Se estiver muito curioso e desejar ver o mimeógrafo em ação, veja o vídeo neste link: http://youtu.be/DaS77oYru4U.

Continuemos na caracterização da aula universitária conservadora. A descrição que faço abaixo representa uma imagem um tanto caricata desse tipo de configuração da aula (e da sala de aula) universitária.

Imagine a seguinte imagem: numa sala de aula universitária um professor, de costas para os alunos enfileirados, com o seu jaleco branco já amarelado em razão do tempo de uso, durante 50 minutos fala ininterruptamente, “atacando” o quadro negro com o giz, e termina a aula proferindo suas últimas palavras enquanto se encaminha para os fundos da sala, em direção à porta de saída: “para a prova de amanhã estudem as equações resolvidas nas últimas aulas, os três últimos textos indicados para a leitura, além dos capítulos sete e oito do livro de Stewart”. Em seguida, abandona a sala de aula energicamente, provavelmente em direção ao seu

laboratório, onde poderá dar andamento às suas pesquisas. Os alunos, por sua vez, atordoados, perguntam-se uns aos outros sobre as equações e os textos a serem estudados, visivelmente preocupados com a prova do dia seguinte, já que existe a notícia muito bem conhecida por todos de que a média de aprovação naquela disciplina é de 50%. Pelo menos essa foi a informação que passou orgulhosamente o professor na primeira aula, ao apresentar o plano de ensino da disciplina. Isso quer dizer que metade dos alunos reprovarão. Vem sendo assim nos últimos 30 anos, desde que o professor assumiu a disciplina.

Você já esteve numa aula parecida com essa? Muito embora a ilustração exagere alguns traços do cotidiano da aula universitária conservadora, não é raro encontrarmos uma conjugação semelhante. É pouco provável que o professor daquela turma conheça necessidades específicas de seus alunos. Estes, por sua vez, não se sentem a vontade para expressar sua insatisfação. Parece também não haver lugar para a interação. A maneira como se posiciona o professor em relação aos alunos – de costas para eles – indica que tampouco há uma intencionalidade com vistas ao diálogo.

Nessa configuração não há, por assim dizer, uma relação pedagógica em que os educandos possam “dizer a sua palavra”. No lugar disso impera a “cultura do silêncio”, em que somente um dos atores – o educador – assume o papel de sujeito ativo.

A Profa. Maria Isabel da Cunha (1989, p. 135-136), na pesquisa que fez com professores e alunos universitários em sala de aula, descreve aqueles e outros traços da aula universitária conservadora:

A exposição oral foi a técnica a que mais assisti. [...] O ritual escolar está basicamente organizado em cima da fala do professor. Não há aqui nenhuma rotulação prévia da aula expositiva. Há, sim, a constatação de que é o professor a maior fonte da informação sistematizada. Este dado reforça a ideia que obtivemos através da entrevista: a grande inspiração dos docentes é a sua própria prática escolar e eles tendem a repetir

classe, com professores que contestassem a ideologia existente, que tentassem construir o conhecimento de forma coletiva. Tenho a impressão até de que os professores criam um certo sentimento de culpa se não são eles que estão “em ação”, isto é, ocupando espaço com a palavra na sala de aula. Tudo indica que foi assim que aprenderam a ensinar.

Da parte dos professores, portanto, há um tipo de ação institucionalizada a que nos referimos no capítulo anterior. Trata-se da reprodução de um modelo de ensinar que “engessa” a maneira de conduzir a aula. Se o professor não age assim, preenchendo todo o tempo com sua fala, é como se estivesse falhando no cumprimento de seu papel, o qual é dar a aula, numa conjugação de fatores na qual o sujeito de toda a ação educativa é, exclusivamente, o professor.

Se tal modo de conduzir a aula persistiu, à maneira mesma de operar própria de uma instituição social, aquela conjugação de fatores se impõe também aos alunos. Assim é porque toda instituição social tende a propiciar modelos de ação (papéis) a todos os atores sociais envolvidos na composição social em questão. Os papéis sociais aparecem aos indivíduos como realidades objetivas que não podem ser ignoradas. Os indivíduos, por sua vez, ao comporem as situações sociais que se lhes impõem como realidades objetivas, internalizam os papéis que desempenham (BERGER; LUCKMANN, 1976).

Portanto, a condição de receptores da aula, em que se encontram os alunos, também está submetida a uma padronização da ação que é, por sua vez, corolário da institucionalização da aula conservadora. Por outro lado, no contexto de qualquer composição social institucionalizada, cada ator social, a sua maneira, alimenta determinadas expectativas acerca do cumprimento adequado do papel do outro ator. Por conseguinte, quando algo diferente da aula conservadora aparece, tudo faz crer que o professor não está dando aula e, assim, falha no cumprimento de seu papel.

Naquela mesma pesquisa descrita acima Maria Isabel da Cunha (1989, p. 136) fez as seguintes considerações acerca dos alunos presentes nos contextos de aula observados:

Os estudantes, de acordo com os estudos feitos, estão condicionados a ter um tipo de expectativa em relação ao professor. Em geral, ela se encaminha para que o professor fale, “dê aula”, enquanto ele, aluno, escuta e intervém quando acha necessário. O fato de se achar na condição de ouvinte é confortável ao aluno, especialmente se o professor possui habilidades de ensino que fazem com que a aula não se torne maçante. Este comportamento ratifica a tendência de que o ritual escolar se dê em cima da aula expositiva.

É provável que professores e alunos assim se comportem por falta de vivência em outro tipo de abordagem metodológica.

É exatamente um outro tipo de abordagem metodológica da aula universitária que a reflexão em didática permite e exige que se construa. Na medida em que a aula como construção coletiva aparece no cotidiano universitário, novos processos de institucionalização podem surgir, possibilitando a transformação da prática didático-pedagógica no ensino superior. Isso já vem acontecendo em grande medida. Encontramos evidências disso em depoimentos de alunos que, aos poucos, têm internalizado um papel mais ativo nas atividades acadêmicas de que fazem parte. O advento desse papel mais ativo, por sua vez, talvez seja devido às mudanças que aos poucos e de forma generalizada se pode perceber no modo de conduzir a aula universitária.

4.3 Traços da aula universitária conservadora nos cursos de

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