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O lugar devido dos conteúdos na aula universitária

No documento ENSINAR E APRENDER NA UNIVERSIDADE (páginas 97-102)

PARTE 3 - A AULA UNIVERSITÁRIA E SUA

5.4 O lugar devido dos conteúdos na aula universitária

É muito comum dar-se atenção demasiada aos conteúdos quando se pensa em aula. Diz-se do professor: “ele tem muito conteúdo”, como se professores fossem receptáculos de conteúdos, uns mais cheios, outros menos cheios. O professor assim também concebe a si mesmo quando afirma com veemência: “o conteúdo já foi todo dado”, como se o objetivo dos processos de formação fosse compartilhar conteúdos. Você pode talvez estar pensando: “mas não é?” Não. Não é.

Já vimos anteriormente que a educação bancária é o contexto em que predomina a aula dada, a palavra dita exclusivamente pelo professor atuante, que é, na aula conservadora, o único sujeito ativo no processo. Poderíamos dizer até que na

educação bancária predomina o tipo de aula em que o conteúdo é supervalorizado, talvez o centro do processo educativo.

Algo como uma “tirania dos conteúdos” parece ganhar um lugar indevido na prática docente, como se a relação do educador fosse com os conteúdos e não com os alunos.

Ao manter-se nesse lugar central, o conteúdo tende a se equacionar nas aulas nos moldes de um encadeamento necessário, configurando-se à maneira de uma grade curricular fechada, manualizando-se, como se os saberes estivessem naturalmente organizados de uma forma ordenada e encadeada:

A imagem do encadeamento, da ordem necessária para a

apresentação dos conteúdos permanece amplamente

hegemônica. Predomina a ideia da existência de caminhos

necessários, de uma ordenação padronizada, da

superestimação da pressuposição da existência de temas que devem ser ensinados/aprendidos na série adequada, em determinada idade. Os currículos e os livros didáticos, de modo geral, reforçam tal perspectiva, cristalizando percursos e alimentando a impressão da necessidade de uma ordem igual para todos os contextos (MACHADO, 2008, p. 28).

Numa configuração da aula em que se dá primazia aos conteúdos é possível até mesmo que se falhe considerando-se as finalidades primordiais para as quais o processo foi gestado: ensinar e aprender. Os questionamentos de Anastasiou (2005, p. 13) vão nessa direção:

Se eu expliquei um conteúdo, mas o aluno desse não se apropriou, posso dizer que ensinei, ou apenas cumpri uma parte do processo? Mesmo tendo uma sincera intenção de ensinar, se a meta (a apreensão, a apropriação do conteúdo por parte do aluno) não se efetivou plenamente, como seria necessário, ou esperado, para prosseguir o caminho escolar do aluno, posso dizer que ensinei? Terei cumprido as duas dimensões pretendidas na ação de ensinar?

Numa primeira análise pode-se pensar assim: se o professor “deu o conteúdo” de um semestre, a “bola”, então, estaria com o aluno. Não parece comum pensar assim? Anastasiou sugere que não. Esse lugar dado ao conteúdo retira o foco de

aprendizagem se efetiva é que se pode dizer que o processo educativo cumpre seu papel fundamental.

A Profa. Maria Isabel da Cunha (2008, p. 20, grifo nosso), por sua vez, após muitos anos de docência e pesquisa em contextos docentes universitários, aponta num estudo mais recente que “os impasses que os professores enfrentam cada vez menos dizem respeito ao domínio do conteúdo de suas matérias de ensino, ainda que reconheçam nele uma condição fundamental de seu trabalho”.

Coloquemos, então, o conteúdo em seu devido lugar. Para isso retomamos a imagem do conhecimento como rede ou teia de significados. Veja que essa imagem mantém o conhecimento como algo a ser construído, tecido. Para, então, pensar a relação dos conteúdos com a aula universitária, entendo ser fundamental levar em conta o acentrismo, que é um dos traços do conhecimento como redes de significação, conforme Machado (2008, p. 28):

A teia de significados que representa o conhecimento não tem centro. Ou o centro pode estar em toda parte, o que equivale a afirmar a inexistência de um centro absoluto. Como o universo da cultura, o do conhecimento tem apenas centros de interesse. Nossa atenção é que elege centros, diretamente associados às circunstâncias que nos regulam, às relações que vivenciamos. Para tratar dos mais diversos conteúdos, dentro de cada disciplina ou em temas transdisciplinares, não existe algo como um ponto de partida necessário, nem um único caminho a ser seguido. Múltiplas são as portas de entrada na rede de significações e partilhá-las é o que importa: a porta por onde se adentrou a rede perde-se na memória. Múltiplos são os percursos possíveis, na estruturação, no planejamento dos trabalhos de uma disciplina ou de um curso.

Os centros, portanto, podem até existir, mas serão sempre relativos, pessoais, transitórios, provisórios, subjetivos. Terão essas características, próprias da dinâmica do mundo social e intersubjetivo, já que dependem sempre das vivências, experiências e expectativas dos sujeitos ativos do processo de conhecer.

Desta feita, à luz dessas considerações, podemos afirmar que os conteúdos têm, portanto, um caráter instrumental. São um dos ingredientes, e não a finalidade

do processo. Veja como Libâneo (2001, p. 2) os localiza na atividade cotidiana do professor:

O professor, na sala de aula, utiliza-se dos conteúdos da matéria para ajudar os alunos a desenvolverem competências e habilidades de observar a realidade, perceber as propriedades e características do objeto de estudo, estabelecer relações entre um conhecimento e outro, adquirir métodos de raciocínio, capacidade de pensar por si próprios, fazer comparações entre fatos e acontecimentos, formar conceitos para lidar com eles no dia-a-dia de modo que sejam instrumentos mentais para aplicá-los em situações da vida prática.

É necessário, portanto, que os conteúdos façam sentido para o aluno, e que veiculem as aprendizagens pretendidas. Veja abaixo, na figura 11, a conversa entre Mafalda e Susanita. Elas parecem entusiasmadas com o tema da conversa? Além disso, você consegue imaginar como esse tema chegou a ser objeto da discussão? Trata-se de algum tema sobre o que falamos em nossas vivências diárias?

Figura 11 – Mafalda e a crítica os conteúdos escolares

Fonte:

http://4.bp.blogspot.com/-eztWom5spI0/UAi8b9clduI/AAAAAAAAMQ8/bzufhMKKom0/s1600/mafalda+minha+mae+amassa.jpg

Mafalda e Susanita reproduzem um conteúdo, provavelmente o conteúdo do livro didático adotado na escola. Mafalda menciona inclusive as conversas literárias que pode ter por causa da escola. Você acha que esse conteúdo, aparentemente sem sentido para as personagens da tirinha, é algo que acomete apenas as pessoas da

Utilizando-me de algumas das considerações que faz Veiga (2008, p. 10) acerca da organização didática da aula, entendo que os conteúdos farão sentido se “não representarem um fim em si mesmo”, se forem vistos “como veículos para o desenvolvimento das capacidades”.

Para que efetivamente façam sentido, a aula deve ser conduzida de maneira que o próprio aluno contribua para a construção dos saberes relativos aos conteúdos em questão. Devem, então, ser apresentados sempre como “saberes abertos, incompletos, imperfeitos, possíveis de revisão e recriação” (BIXIO, 2005, p. 97 apud VEIGA, 2008, p. 11). Esse cuidado, mais do que qualquer outro, garante que a aprendizagem seja significativa.

O professor, nesse quadro de discussão dos conteúdos, ao interrogar seus próprios saberes na condução colaborativa da aula universitária, precisa estar atento aos sentidos específicos que os alunos atribuem aos saberes que trazem e àqueles construídos coletivamente. Isso fornecerá elementos para uma melhor compreensão das maneiras segundo as quais a ensinagem pode ser conduzida de forma mais eficiente.

Tendo como base outra consideração de Veiga (2008, p. 10), os conteúdos farão sentido se forem “adequados às características cognitivas, afetivas, psicomotoras e sociais dos alunos, assim como a suas necessidades sociais”. Uma das decorrências disso, por exemplo, é que nem sempre o autor clássico lido pelo professor em sua formação de pós-graduação é adequado para os seus alunos de graduação, levando em conta os objetivos de uma disciplina e, dentro dela, os objetivos de uma aula em particular. Não se deve esquecer que os objetivos estão relacionados sempre com a aprendizagem do aluno e que os conteúdos, por sua vez, são uma concretização que se equaciona na busca desses objetivos (VEIGA, 2008, p. 11).

No documento ENSINAR E APRENDER NA UNIVERSIDADE (páginas 97-102)