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Capítulo V – Apresentação e Discussão dos Resultados

2. As reflexões das estagiárias sobre as intervenções que foram protagonizando no decurso

2.5 Auto e heteroscopias

Como foi referido, anteriormente, as duas autoscopias aconteceram em momentos diferentes, distanciados temporalmente, para dar tempo a cada estagiária de consciencializar e se apropriar das mudanças a realizar e das intenções educativas subjacentes às suas práticas.

É interessante notar como os receios e inseguranças iniciais na intervenção com as crianças se foi desvanecendo ao longo do estágio mas, também, o desconforto inicial resultante da exposição de cada uma, perante as colegas e a supervisora. Pensamos que este dispositivo causou um conjunto de constrangimentos, relacionados com a visão tácita em que a avaliação é vista como uma punição inicial ou com uma autoperceção do desempenho profissional onde o erro é como que equivalente a um pecado. Por outro lado, a presença da supervisora, vista como o juiz responsável pela avaliação de desempenho das estagiárias, também contribuiu para essa relação inicial defensiva. Daí que foi com evidente interesse que quer nas primeiras autoscopias e heteroscopias quer, sobretudo, nas segundas constatamos como as estagiárias acabaram por abordar esta temática, o que, na nossa opinião, constitui uma reflexão que não poderíamos deixar de valorizar.

É na primeira auto e heteroscopia que uma estagiária assinalou que a autoscopia, enquanto técnica que lhe permitiu a auto-observação do seu desempenho profissional a colocou perante uma realidade à qual não poderia escapar.

“Afinal durante este estágio eu sou observada todos os dias pelas crianças, pelo corpo docente e por todos aqueles que entram na sala. Assim a máquina de filmar é apenas mais uma forma de observação que, neste caso, permitiu que também eu me pudesse observar. Quando nos observamos a nós mesmos a crítica é muito mais difícil e dura” (excerto reflexão-1AH, estagiária MP, 22/01/2014).

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187 Como se depreende, este tipo de referência à autoscopia adequa-se ao primeiro momento da sua utilização como dispositivo de supervisão. É uma referência fugaz e defensiva. Daí a importância das reflexões posteriores referentes ao segundo momento da utilização das auto e heteroscopias. Reflexões estas que foram enquadradas, fruto da análise de conteúdo, em três subcategorias:

a. Autoscopia como instrumento de recolha de dados;

b. A importância da observação de momentos que escapam à observação direta;

c. O reconhecimento da autoscopia como um método a utilizar no futuro para avaliar o desempenho profissional.

As práticas reflexivas prendem-se com a capacidade dos profissionais documentarem a sua atuação, avaliarem e fazerem os reajustes que parecerem mais adequados à situação e aos contextos, sem contudo se esquecer que refletir “não é dar voltas constantemente aos mesmos assuntos utilizando os mesmos argumentos” (Zabalza, 2004, p.126). As auto e heteroscopias foram percecionadas por uma estagiária como um instrumento de recolha de dados, garante de autoavaliação e posterior reflexão sobre a ação tendo em vista a melhoria da qualidade da intervenção.

“A autoscopia caracteriza-se como um instrumento de recolha de dados. Neste sentido, esta é um recurso de vídeo-gravação de uma prática, que permite que esta seja auto-avaliada. Para além da avaliação individual, leva a uma reflexão sobre a ação. Assim, considero a autoscopia com um potencial na formação de profissionais da educação” (excerto reflexão-2AH, estagiária A, 30/04/2014).

Por outro lado, e tal como é referido por outra estagiária

“A autoscopia é um método precioso para um educador. O facto de podermos rever as atividades que dinamizamos e detetar os aspetos que falharam faz-nos crescer a nível pessoal e profissional com a autoscopia (…), podemos visualizar tudo o que acontece e melhorar esses aspetos numa próxima vez” (excerto reflexão-2AH, estagiária MB, 7/03/2014).

Como se constata, a auto e heteroscopia é vista pelas duas estagiárias, atrás referidas, como um dispositivo de formação necessário. Uma opinião que é reforçada quando se defende que poderá ser um dispositivo a utilizar no futuro exercício da atividade profissional, tendo em conta que permite rever intervenções, bem como, identificar e corrigir erros para reformular e melhorar a intervenção educativa. Assim, as auto e heteroscopias foram reconhecidas, pelas estagiárias, como dispositivos capazes de criar momentos de aprendizagem profissional, por via do processo de autoavaliação da intervenção pedagógica

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188 que suscita, o que justifica, como já o defendemos, poder constituir um recurso a mobilizar no exercício futuro da atividade profissional.

“(…) no futuro tentarei realizar a filmagem de certas atividades realizadas para ter a oportunidade de detetar aspetos positivos bem como os menos positivos” (excerto reflexão-2AH, estagiária F, 21/05/2014).

“A meu ver, este exercício foi muito produtivo pois a partir dele podemos perceber os erros cometidos e podemos corrigi-los. Sem este exercício não tínhamos muitas vezes a noção da nossa postura e interação com as crianças“ (excerto reflexão-2AH, estagiária MP, 21/05/2014).

“Considero que seria importante que as educadoras efetuassem algumas autoscopias ao longo dos anos para que possam avaliar melhor toda a sua prática e ter uma visão muito mais ampla de como as coisas correram e até mesmo aspetos que estão por de trás que são fulcrais e que nestas filmagens estão patentes” (excerto reflexão-2AH, estagiária I, 26/05/2014).

“Como futura profissional, acho que este é um método que irei utilizar várias vezes, analisando assim o meu desempenho” (excerto da reflexão-2AH, estagiária MP, 26/05/2014).

Comparando com o depoimento da primeira autoscopia, estes depoimentos, já relacionados com a segunda, mostram como a experiência foi significativa, do ponto de vista do seu impacto na formação das estagiárias.

2.5.1 Síntese

Sintetizando os dados apresentados verificamos que as estagiárias identificam várias potencialidades nas auto e heteroscopias realizadas.

As narrativas das estagiárias são reveladores de como este dispositivo supervisivo promoveu o desenvolvimento da sua capacidade reflexiva, por via da interação, partilha, entreajuda e cooperação estabelecida no seio do grupo de trabalho. Neste sentido, assumiu um papel decisivo no âmbito do processo de supervisão, através do qual se tentou criar as condições para se promover o empoderamento profissional das jovens estagiárias, utilizando-se e incentivando-se a utilização do feedback positivo na reflexão e avaliação das atividades apresentadas pelas estagiárias, o que confirma o pensamento de Tracy (2002):

“A supervisão eficaz do futuro deve centrar-se na colaboração e no desempenho do grupo, ao mesmo tempo que fornece feedback suficientemente pormenorizado para se tornar útil ao aperfeiçoamento individual dentro do grupo” (Idem, p.83).

A análise e interpretação dos dados apresentados permite ainda concluir que através das auto e heteroscopias se criaram as condições que possibilitaram o desenvolvimento do pensamento crítico, o desenvolvimento de competências pessoais,

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189 atitudes e conhecimentos de natureza pedagógica, a partilha de saberes e experiências práticas e uma interpelação dos saberes teóricos, consolidando-se assim o perfil profissional das estagiárias. O desenvolvimento pessoal e profissional acabou por ser, também, a expressão do processo de reflexão conjunta, desenvolvido entre estagiárias e a supervisora.

Em suma, os processos de reflexão crítica suscitados a partir da visualização dos vídeos das diferentes situações educativas vivenciadas pelas estagiárias promoveram a autorreflexão e, simultaneamente, a reflexão cooperada, tal como é advogado por Gomes (2005). As auto e heteroscopias colocaram em evidência a importância de projetos de formação inicial transformadores e do comprometimento dos formadores na construção de práticas democráticas que contrariem a visão do formando como reprodutor do conhecimento académico. Os dados reforçaram, igualmente, “o papel da criticidade nos processos de construção do conhecimento profissional, em três domínios de desenvolvimento: conhecer, ser e agir” (Vieira, 2014, p.15).

Reportando às questões de pesquisa formuladas, os dados acentuam que as auto e heteroscopias incentivaram o desenvolvimento de competências de avaliação geradoras do desenvolvimento pessoal e profissional das estagiárias. Concluímos, assim, que este dispositivo supervisivo possibilitou a reflexão individual entre pares e com a supervisora; a partilha e entreajuda entre estagiárias, decorrente do envolvimento em práticas similares e das conexões sociais criadas entre todos (estagiárias e supervisora). Durante a análise da atividade filmada, as alunas começaram a ver-se ao espelho através da colega, o que esteve na origem de um movimento de reflexão coletiva que, de alguma forma, aponta para a constituição de uma comunidade de aprendizagem. Chama-se a atenção, igualmente, para o modo como se foram superando os medos e os constrangimentos iniciais, sem se deixar de despoletar um processo formativo exigente tanto do ponto de vista pessoal como do ponto de vista pedagógico, tal como se pode comprovar pelos depoimentos coletados ao longo do processo de pesquisa como pela reflexão que um autor como Perrenoud propõe quando afirma que,

“(…) o interesse da análise das práticas de grupo é que todos possam contribuir interrogando um ao outro, sugerindo pistas e diversificando interpretações. (...) Os olhares recíprocos dos participantes são simultaneamente uma fonte insubstituível e um fator de risco que o mediador deve controlar, instaurando regras e intervindo quando elas não são respeitadas (...) A análise das práticas embasa as suas esperanças nas virtudes da lucidez e da auto-regulação, mais do que na do "bom exemplo" ou do pensamento normativo” (Perrenoud, 2002b, p.123).

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190 Será a partir da análise dos depoimentos e das discussões no âmbito do grupo de discussão focalizada, que prosseguiremos a reflexão, através da qual pretende-se contribuir quer para a discussão sobre os eixos estruturantes do processo de configuração de um dispositivo de supervisão, que contribua para o desenvolvimento da reflexão e das competências de reflexão dos formandos, quer para se discutir o papel do supervisor no âmbito de uma ação formadora, que se construa em função de um modelo de supervisão reflexivo quer, igualmente, para se refletir sobre as representações e crenças epistémicas dos formandos no decurso dessa ação.

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