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Capítulo V – Apresentação e Discussão dos Resultados

2. As reflexões das estagiárias sobre as intervenções que foram protagonizando no decurso

2.1 Avaliação da relação com as crianças

Tal como se havia anunciado iremos confrontar os depoimentos produzidos nas 1.ªs e nas 2.ªs auto e heteroscopias no que diz respeito à relação com as crianças. Tal como se pode perceber através da leitura do quadro 2, no primeiro momento valorizou-se, sobretudo, a necessidade de se promover o protagonismo das crianças como preocupação primeira das estagiárias, tal como se infere dos três depoimentos que passamos a transcrever:

“(…) considerar sempre a voz da criança nas atividades; entre outras(…)é necessário ter o máximo cuidado na preparação e execução das atividades planeadas, para que as aprendizagens sejam apreendidas e assimiladas por todas as crianças do grupo(…)” (excerto reflexão-1AH, estagiária MB, 11/02/2014).

“(…) no decorrer de qualquer atividade com o grupo não devemos desvalorizar qualquer comentário da criança, tentando sempre dar-lhe alguma resposta” (excerto reflexão-1AH, estagiária J, 15/01/2014).

“No filme referente ao conto, a colega não valorizou os comentários proferidos pelas crianças. Devemos deixar que a criança exponha sempre o que pensa; o que acha, esta tem o direito de se expressar, logo devemos valorizar o que diz bem como ajudá-la na construção do saber assim que necessário” (excerto reflexão-1AH, estagiária H, 19/02/2014).

Como se depreende, as crianças ocupam o centro dos discursos das estagiárias, identificando-se um dos depoimentos em que uma das participantes corrige criticamente a postura de uma colega pelo facto de esta não ter valorizado suficientemente os comentários das crianças.

É no segundo momento das auto e heteroscopias que os discursos não só se expandem como se focalizam em questões mais específicas. Neste momento, reitera-se também o protagonismo das crianças, como se comprova através dos depoimentos que se passam a transcrever.

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“Na minha autoscopia em concreto, ao visualizar a filmagens (…) fez-me ver que tenho que me colocar do lado das crianças (…).Uma vez que não valorizei esta resposta da criança poderia ter desencadeado uma desmotivação da criança para a realização da atividade” (excerto reflexão-2AH, estagiária I, 26/05/2014).

“Quanto à estagiária, esta teve uma postura positiva para com as crianças pois a criança diz “Eu sei ler” e esta dá-lhe oportunidade de o fazer favorecendo a desinibição e o à vontade da criança e ainda, o facto de deixar que a criança se envolva com o grupo na intervenção da estagiária” (excerto reflexão-2AH, estagiária J, 14/04/2014).

“É de salientar a importância da participação das crianças na atividade e articulação com outras áreas como a matemática captando a atenção das crianças” (excerto reflexão-2AH,estagiária J, 10/03/2014).

“Durante a representação da história, as crianças têm oportunidade de explorarem as diferentes formas que o corpo pode assumir, nunca sendo nenhuma imposta pela estagiária” (excerto reflexão-2AH, estagiária A, 9/04/2014).

Numa leitura imediata constata-se que os depoimentos, face ao momento anterior, adquirem uma maior corporeidade e singularidade. Neste caso, os depoimentos deixam de ser tão centrados na enunciação de princípios para passarem a centrar-se em atividades concretas relacionadas com o espaço da sala e as crianças que o percorrem. Mais uma vez, chama-se a atenção para dois depoimentos que implicam uma avaliação crítica da postura da estagiária, o que exprime a natureza da reflexão e o desenvolvimento da mesma.

Neste segundo momento, há outros depoimentos que poderão ser enquadrados noutros tipos de subcategorias, como é o caso de discursos que se referem:

a. à adequação das atividades ao desenvolvimento das crianças;

b. à atenção à disposição das crianças no espaço;

c. à qualidade das interações entre adulto-criança;

d. à importância da organização do grupo de crianças;

e. ao impacto do barulho no ambiente educativo do jardim de infância.

Este acréscimo de dimensões na categoria – Avaliação da relação com as crianças – pode espelhar, em nosso entender, quer um aumento progressivo da implicação das estagiárias no processo educativo das crianças durante a realização do estágio e, concomitantemente, um aumento da consciencialização e enfoque das dimensões que interferem na qualidade da sua intervenção junto das crianças quer a expressão do desenvolvimento das competências de reflexão das crianças. Esta é uma constatação que

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160 poderá ser comprovada pelos depoimentos recolhidos no decurso das reflexões produzidas a propósito das 2.ªs auto e heteroscopias, a começar pelos depoimentos que valorizam a necessidade das atividades se adequarem ao desenvolvimento das crianças. Neste caso, selecionamos as seguintes afirmações:

“Depois de visualizar a terceira autoscopia tenho que refletir em todas as atividades que já realizei, se estavam adequadas ou não à idade do meu público alvo, pois este é um cuidado que nós temos que ter, ou seja, quando preparamos uma atividade devemos ter sempre em conta o nível de conhecimento das crianças” (excerto reflexão-2AH, estagiária JM, 21/03/2014).

“Em relação à atividade em si, acho que era um pouco complexa para crianças daquela faixa etária” (excerto reflexão-2AH, estagiária JM,6 /03/2014).

“Não nos podemos esquecer também de adequar sempre uma atividade à faixa etária em questão” (excerto reflexão-2AH, estagiária J, 27/05/2014).

“Por último, assistimos a uma actividade que visava a formação de conjuntos (…). Ao propor este tipo de actividades é de referir a importância da correta definição de objectivos mediante o grau de desenvolvimento do público alvo, orientando a actividade por questões e problemas adequados aos conhecimentos que as crianças possuem” (excerto reflexão-2AH, estagiária S, 21/05/2014).

A eficácia da ação de um educador depende em grande parte da sua capacidade de observar para conhecer o desenvolvimento de cada criança, as suas características e competências, de modo a criar situações desafiadoras, apoiadas por adultos, em que as crianças possam desenvolver as suas competências e saberes presentes a níveis mais altos.

“o conceito de «scaffolding» significa «pôr/colocar andaimes» foi introduzido por Wood,Bruner e Ross em 1976 (Vasconcelos, 2000) para indicar situações apoiadas por adultos em que as crianças podem estender as suas competências e saberes presentes a níveis mais altos de competências e saber” (Vasconcelos, 2012, p.7).

Uma nota de campo da investigadora, num momento de formação em OT, reitera esta responsabilidade do educador de infância e seu comprometimento com o desenvolvimento global de cada criança.

“De seguida a supervisora pediu para constituírem grupos de trabalho em função da idade das crianças com que estavam a estagiar As estudantes formaram grupos por faixas etárias as estudantes juntaram-se em 3 grupos (3,4,5 anos) e partilharam experiências e dificuldades que estavam a sentir. Cada grupo apresentou aspetos comuns e diferentes das vivências de estágios que estavam a ter. Algumas já viviam projetos, outras ainda se encontravam na organização do ambiente educativo. Foi rica e diversificada a partilha. Foi interessante algumas estudantes dizerem que perceberam que tinham começar a planificar de forma diferente em função das características das suas crianças, pois, mesmo pertencendo à mesma faixa etária, apresentavam características diferenciadas. Não nos podemos orientar só pela psicologia do desenvolvimento. Cada grupo é um grupo-diziam as estagiárias” (Nota de Campo – NC1OT, 1/10/2013).

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161 Também um excerto de uma reflexão do portfólio reflexivo de uma estagiária reforça a necessidade de adequar a intervenção ao patamar de desenvolvimento da criança em que a criança se situa.

“Particularizando, a partir de um registo de observação efectuado, refleti sobre o patamar de desenvolvimento em que, neste caso, a criança U. se encontra e tende a dirigir o seu foco de atenção para que esta progrida. Percebe-se, então, qual a relevância da reflexão para uma prática docente diferenciada, direcionada e eficaz. A criança U. reconhece e demonstra o quão importante é para ela conseguir apertar os atacadores. Todavia, a própria identifica que, apesar da aprendizagem realizada, é capaz de efetuar uma progressão, conseguindo em vez de um, ser capaz de dar dois nós nos cordões para que estes não se desapertem com facilidade. Então, qual o papel do educador perante este cenário? Atuar na zona de desenvolvimento proximal que “define aquelas funções que ainda não amadureceram, mas que estão em processo de maturação, funções que amadurecerão, mas que estão presentemente em estado embrionário.” (Vygotsky, 1998:113) Ou seja, o adulto deve impulsionar e ajudar a criança a fazer algo que esta ainda não é capaz de realizar autonomamente, para que, progressivamente, consiga atinja esse objetivo, fazendo-o sozinha. Neste caso, uma vez que a criança U. já é capaz de apertar os atacadores com um nó, é necessário estimula- la e acompanha-la em atividades que a dotem dos mecanismos necessários para atar os cordões com dois nós” (excerto reflexão, estagiária S, 12/03/2014).

Concluímos que há uma inequívoca evolução do processo de reflexão das estagiárias, quer do ponto de vista da mobilização dos conceitos, quer do ponto de vista do processo de enunciação das ideias, o que exprime que estamos perante o desenvolvimento das competências de reflexão das envolvidas. Trata-se de uma afirmação que parece ser, igualmente, confirmada pelos depoimentos que têm a ver com a reflexão sobre a atenção a prestar à disposição das crianças no espaço-sala, os quais nos mostram como tais depoimentos se tornam mais focalizados nos desafios profissionais que as estagiárias viveram e se encontram a viver. Assim:

“(…) os aspetos que eu salientei foram relativamente à disposição das crianças no espaço, pois algumas crianças ficaram de costas para a estagiária durante a explicação da atividade. Num outro momento da atividade novamente considero que as crianças não estavam com uma boa disposição no espaço, e para, além disso, ficaram de pé” (excerto reflexão-2AH, estagiária JM, 6/03/2014).

“Na autoscopia da J “manta das histórias” as crianças estão sentadas em “U”, sendo esta uma boa estratégia, pois consegue ver todas as crianças” (excerto reflexão-2AH, estagiária A, 9/04/2014).

“Relativamente a esta autoscopia verifica-se que as crianças estavam muito bem sentadas de forma a que todas pudessem ver claramente. A disposição era muito boa, e estas encontravam-se em escada” (excerto reflexão-2AH, estagiária MP, 21/05/2014).

“A atividade da I foi realizada em pequeno grupo e também numa sala silenciosa, o que, como já pudemos verificar, só traz benefícios. As crianças estavam

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sentadas à volta de uma mesa, contudo não conseguiam visualizar os objetos que estavam dentro da caixa que se encontrava no centro. Considero que nesta situação, a I poderia ter arranjado uma melhor estratégia, para que as crianças conseguissem ver” (excerto reflexão-2AH, estagiária MB, 21/05/2014).

Na linha destes testemunhos surge um outro, através do qual se valoriza a qualidade das interações entre o adulto e a criança, cuja importância tem a ver com o modo como a estagiária reflete sobre o seu desempenho de forma clara e focada no trabalho, corroborando a hipótese de que, o segundo momento das auto e heteroscopias exprime uma outra capacidade dos sujeitos, deste estudo, refletirem de forma pertinente sobre o seu desempenho profissional.

“Em relação à minha autoscopia, penso que não correu tão bem como eu queria. O facto de as crianças não estarem à espera, fez com que ficassem apáticas sem saber o que dizer perante tal magia. Não consegui quebrar a apatia das crianças e fazê-las interagir mais comigo. Por um lado fiquei feliz porque elas gostaram, mas por outro fiquei frustrada pois queria que a interação fosse maior” (excerto reflexão-2AH, estagiária MP, 26/05/2014).

De igual modo, um outro testemunho sobre a importância da organização do grupo de crianças enquadra-se na mesma linha de preocupações. Como defende Oliveira-Formosinho e Andrade (2011a) a organização do grupo necessita ser refletida criticamente pela educadora de forma a incluir “uma polifonia de ritmos: o da criança individual, o dos pequenos grupos, o do grupo todo” (Idem, p.72), para que se compreendesse a importância da diversidade e do respeito pelo ritmo de todos e de cada um. O testemunho de uma estagiária confirma esta preocupação com a dimensão dos grupos de trabalho, de forma assegurar a atenção individualizada a cada criança.

“Penso que a atividade poderia também ser realizada em pequenos grupos. Desta forma, (…) poderia acompanhar o grupo de forma mais individualizada” (excerto reflexão-2AH, estagiária MB, 30/04/2014).

Na continuidade desta preocupação com a organização do ambiente de trabalho, também se reflete sobre o barulho, no âmbito da reflexão sobre as condições potenciadoras de uma gestão adequada do processo educativo. Afirmam as estagiárias:

“Um aspeto fulcral nestas visualizações é o som de fundo (…) e só com as filmagens é que nos apercebemos da dimensão do barulho. (…) Se existir barulho de fundo automaticamente vai existir um desvio na atenção das crianças e para além disso, para falarem uns com os outros têm que falar cada vez mais alto para se fazerem ouvir” (excerto reflexão-2AH, estagiária I, 26/05/2014).

“É ainda de salientar que o ambiente educativo e o barulho que se faz sentir no mesmo deve ser favorável ao desenvolvimento de cada aprendizagem” (excerto reflexão-2AH, estagiária J, 27/05/2014).

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163 2.1.1 Síntese

Entendemos que o desenvolvimento da capacidade de reflexão e o questionamento de um educador decorre dos saberes que estes possuem e dos métodos que se dominam, o que, sendo importante, não é só por si suficiente se não existir uma vontade de compreender o que acontece; se existirem forças para recusar o menos bom; se não houver coragem para enfrentar as nossas ambivalências ou se não soubermos lidar com as resistências e constrangimentos (Perrenoud, 2005).

O que a análise dos dados nos mostra é que o processo de reflexão sobre as suas práticas se modificou entre as 1.ªs e as 2.ªs auto e heteroscopias, o que tem a ver, certamente, com o próprio desenvolvimento da experiência profissional vivido pelas estagiárias mas também com a importância que a reflexão assumiu como fator capaz de conduzir à ressignificação dessa mesma experiência. Como se pode inferir através da leitura dos dados, a análise das práticas, por parte das estagiárias, foi-se tornando cada vez mais focalizada na realidade da sala de aula e mais aberta à problematização daquelas práticas. De algum modo, configura-se por esta via como a reflexão pode constituir um fator formativo quando resulta da dialética entre pensamento e ação, no âmbito do qual a estagiária seleciona e interpela os seus saberes teóricos para reinterpretar a sua prática e assim melhorar a qualidade das oportunidades de aprendizagens das crianças.

Neste sentido, importa valorizar o dispositivo que permitiu potenciar essa reflexão, as autoscopias e as heteroscopias tanto porque possibilita um confronto inevitável com a realidade como porque conduz ao estabelecimento de interações entre pares, o que constitui uma dimensão do processo de supervisão sobre o qual importa refletir.

Em suma, confirma-se que por via das auto e heteroscopias, as estagiárias foram capazes refletir sobre as suas práticas de forma a valorizar dimensões que qualificam o processo de ensino-aprendizagem das crianças para além de reiterar que a identidade reflexiva não é um exercício puramente individual mas, antes “precisa dos outros, primeiro para se confrontar com as outras análises“ (Idem, p.1).

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