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Capítulo III – Buscando a síntese dos elementos

3.3 Caracterização das identidades como alunos de alemão

3.3.1 Auto-retratos

Averiguar como os próprios participantes se identificam como alunos de alemão pode contribuir para as caracterizações de suas identidades que serão discutidas adiante, além de prover mais confiabilidade às minhas interpretações.

Vicente se define como um aluno dedicado e atento, que busca conhecimento fora da sala de aula. Ele acredita que, para uma boa aprendizagem, o aluno deve se dedicar dentro e fora da sala de aula (e. 64). Essa construção de identidade de Vicente parece estar de acordo com seus regimes de verdade, pois, segundo Fabrício & Moita Lopes (2002), há uma estreita relação entre os regimes de verdade nos quais nossa prática discursiva está inserida e o processo de construção identitária.

[66]

Sou um aluno dedicado, estou sempre muito atento nas aulas e no professor. Além de buscar conhecimento fora da aula. (V, QE)

Uma nota 6 na prova escrita causou tristeza em Vicente, que afirma se cobrar muito. Ele considera essa nota ruim, porém aponta que já imaginava que sua nota não seria boa por não ter tido tempo de estudar, além de acreditar que o curso vai ficar cada vez mais difícil e, conseqüentemente, a necessidade de estudar para a prova irá aumentar. Vicente afirma que essa nota não reflete o que ele é como aluno, pois se

dedica muito em aula e, se não estivesse tão ocupado teria estudado muito. Ainda sobre o tema provas, na SRV, Vicente assistiu ao filme de sua prova oral e observou que não estava muito nervoso no início, mas depois teve dificuldades, pois o impulso para ele fazer uma pergunta englobava um conteúdo o qual Vicente afirmou não dominar bem. Ao ser questionado sobre o que achou da prova, ele respondeu ‘muito difícil’, porque não havia compreendido determinado ponto gramatical.

[67]

Eu achei [a prova oral] muito difícil... porque eu tava perdido nesse negócio de dativo, acusativo, e veio justamente wohin,11 que era a dúvida... Mas o problema é que eu não tinha entendido ainda quando se usava e como. Então não era que eu tava perdido de uma mão só, assim o quando, eu também não sabia como... então veio aqui eu falei ‘é a sentença de morte, aqui, porque’... (V, SRV)

Gostaria de esclarecer que Vicente falou essa última frase sorrindo bastante, mas, mesmo assim, afirmou ter ficado bastante inseguro nessa situação. Em aula, Vicente se descreve como atento e participativo, características que pude observar em aula (NC, aulas 7,8,10-12,14-17,20,22,23,25,27-30), porém ele afirma no excerto 67 não se dedicar tanto fora de sala. Essa postura identitária de Vicente parece relacionada com seu discurso e crenças, pois, como afirma Moita Lopes (2003), aquilo que a pessoa é se define nos e pelos discursos nos quais circula e constrói.

Nas SRV, Vicente notou que minhas NC confirmavam que era bem participativo, e concluiu que gosta de participar para ser corrigido, e que se não participar, ‘além de não falar, não vai ouvir’ (V, SRV). Porém, Vicente afirma também que, às vezes, tenta participar e não consegue falar o que deseja, o que pode gerar um sentimento de frustração por um esforço não recompensado. Ellis (1997), ressalta que a motivação do aprendiz vem da crença de que o esforço trará sucesso na aprendizagem, sensação que Vicente não tem, o que pode gerar, então, frustração.

[68]

Foi horrível minha prova... tirei seis... eu tirava nove... seis é ruim... mas é porque nesse semestre tô muito ocupado. (...) Eu cheguei na prova de alemão e não tinha estudado nada, falei ‘bom, né, vamo lá, na cara na coragem’... saiu um seis, mas eu fiquei triste, eu me cobro muito... eu sabia que ia ter uma baixa, que realmente esse semestre, como todos os próximos, vão ficando mais difíceis... eu esperava que ia dar uma baixa, mas quando eu vi que não ia estudar mesmo, não ia dar pra estudar, aí e falei ‘não, eu sei que vai baixar mesmo’... mas é ruim, né... [Essa nota não reflete o que sou como aluno de alemão] porque eu me dedico muito na aula, fora da aula eu

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não me dedico nada, faço Hausaufgabe, faço a redação, brinco lá de escutar a Deutsche Welle... mas na prova eu teria estudado muito antes, fixado o conteúdo... normalmente, um período não tão estressante que nem foi, então acho que não refletiu tanto... é, não refletiu nada... nada... Eu tento participar muito da aula, às vezes eu tento falar, mas não sai, eu fico com essa palavras na cabeça, tento fazer juntar, mas às vezes não sai, eu fico muito atento às palavras novas que a professora passa, anoto bastante, eu deixo ali meu caderninho aberto já... que mais... é, eu diria duas palavras, atento e participativo... são as palavras que me descreveria... se eu pudesse estudar um pouquinho mais fora da aula, eu estudaria... dentro da aula eu acho que eu tô fazendo tudo que eu podia. (V, EI)

Estudar alemão traz, para Vicente, realização, por levar seu sonho adiante e por despertar o orgulho e o interesse da família. Essa é uma relação fundamental para Vicente: estudar alemão é realizar um sonho. Adicionado a isso, Vicente sente uma profunda aceitação por parte da família. Fabrício & Moita Lopes (2002) afirmam que os efeitos dos sentidos criados na nossa construção identitária estão sempre submetidos ao olhar do outro. Por isso, ao que parece, despertar o orgulho e o interesse da família pela língua alemã pode proporcionar a Vicente um sentimento de felicidade. Vicente afirma ainda que gosta de estudar línguas e, mostra que, ao ensinar, acaba aprendendo, aparentemente num processo de motivação.

[69]

Eu fico bem realizado de ter levado adiante esse sonho, porque muitos sonhos você deixa lá na cabeça, só como uma coisa romântica mesmo, intocável... mas eu me sinto muito bem estudando alemão, fico até contando que eu tô estudando alemão, é muito bom, eu vejo que é um orgulho pros meus avós, pra minha mãe, quando eu falo que eu tô tentando resgatar a corrente que a gente se perdeu, a família que veio pra cá... Eu vejo um interesse, um orgulho de todos ali na família... então é até um prêmio, você tá realizando um sonho e ainda ganhar o pódio da família... isso é muito bom! Estudar línguas é muito legal... e eu acabo ensinando um pouco, eu gosto de ensinar, por exemplo, a gente vai fazer uma viagem pra Alemanha ano que vem... e aí todo dia na mesa tento ensinar um pouquinho pra eles (...) é gostoso porque acaba aprendendo mais... (V, EI)

Lúcia, apesar de se considerar uma aluna interessada e que tem vontade de aprender, define-se como uma aluna mediana, por acreditar que poderia se dedicar mais do que se dedica. Moita Lopes (2003) entende identidades sociais como um feixe de traços identitários que coexistem, às vezes de maneira contraditória. Podemos perceber dois aspectos contraditórios coexistindo na construção da identidade de Lúcia, a saber, considerar-se uma aluna interessada, porém ‘média’. Parece que há, em Lúcia, uma característica de exigência, por acreditar que poderia se aplicar mais.

[70]

Interessada em aprender sempre mais. (L, QE) [71]

[Sou uma aluna] média, porque às vezes eu até poderia me aplicar mais, porque com o tempo e o trabalho, então a gente tem mais coisa pra fazer, e é corrido o tempo, segundas e quartas de manhã, por exemplo, eu pego as manhãs pra fazer isso, pra estudar, mas não a manhã inteira também... eu podia ter mais tempo, mas às vezes eu me dedico às outras coisas que eu podia aproveitar com alemão, eu podia ser melhor... eu tô tentando fazer melhor, estudar, ter mais tempo, depois eu vou organizar a minha vida, aí depois segundas e quartas, ou pelo menos quartas-feiras, eu vou na biblioteca estudar, só ficar lá, porque na biblioteca tá todo mundo quietinho, você não se distrai com uma coisa, com outra... (...) [Sou uma aluna] que podia se dedicar mais, mas que tem vontade de aprender mais e quer aprender... é, eu me dedico, não falo que eu largo pra lá não, mas eu faço os meus deveres, tudo direitinho, todas que ela pede pra trazer eu trago sempre, mas eu podia fazer um pouco mais do que é sempre. (L, EI)

Kélia sente que tem grande potencial para dominar a língua alemã, e acredita, também, que tem uma entonação boa, tem ritmo de língua, mas pouco conteúdo, estruturas. O sentimento de ter potencial pode levar a uma segurança dentro da aprendizagem, mas a sensação de falta de conteúdo parece interferir gerando insegurança. Podemos observar que, como Moita Lopes (2003) afirma, as identidades sociais são um feixe de traços identitários que coexistem, às vezes de forma contraditória.

[72]

Eu me vejo com grande potencial para dominar a língua, mas faltam muitas peças neste quebra-cabeça. Sinto que tenho ritmo, mas pouco conteúdo. (K, QE)

Kélia considera a nota da sua prova ruim (4) e que essa nota reflete seu momento, com dificuldades gramaticais. Apesar disso, declara-se uma aluna interessada e dedicada (em sala de aula, pude observar que Kélia é atenta e participativa – NC aulas 7-10,14,15,17,21-30). No entanto, assim como Lúcia (e. 71), Kélia acredita que poderia se dedicar mais por ter disponibilidade para tal. Kélia afirma ter um nível de exigência alto e deseja falar estruturalmente certo, o que gera frustração por não conseguir. Novamente voltamos a Ellis (1997), a respeito de a motivação advir da crença de que o esforço levará ao sucesso na aprendizagem. Mesmo assim, Kélia demonstra interesse em dominar o idioma que se propôs a aprender.

Podemos observar cinco caracterizações a partir dessa fala: 1) insegurança, revelada pelas dificuldades gramaticais; 2) dedicação, pois Kélia afirma ser muito

interessada, principalmente em sala de aula; 3) exigência, por acreditar que poderia se esforçar muito mais; 4) frustração, pelo desejo de construir uma frase dentro de uma determinada estrutura e não conseguir; e 5) motivação, por cogitar a idéia de repetir o semestre para ter o domínio da língua que se propôs a aprender.

[73]

[A nota da minha prova] foi ruim... quatro... foi ruim, foi ruim, foi ruim... (...) eu acho que pegou na gramática... pegou na gramática... eu acho que [essa nota] reflete o meu momento mesmo... assim, de não conseguir absorver bem essa parte gramatical... Como aluna eu tô um pouquinho melhor... eu sou interessada, me esforço, mas eu poderia me esforçar muito mais, que eu tenho muito mais tempo, é muito pouco dentro do que eu podia, mas eu me esforço um pouquinho, mas aqui em sala de aula eu sou super interessada, eu fico às vezes me lamentando por não conseguir às vezes fazer uma frase dentro da estrutura que a professora tá pedindo... [Isso gera] um pouco de frustração... um pouco de frustração, eu acho que eu tenho um nível de exigência alto, a professora até falou ‘eu acho que não é o caso de repetir’, mas eu não sei, eu tenho um nível de exigência alto e eu não tô interessada em passar de ano, eu tô interessada em aprender, ter o domínio de uma língua que eu me propus a aprender, passar não tem importância... é o de menos. (K, EI)

Mesmo que ainda faltem algumas peças no quebra-cabeça, Kélia considera sua entonação interessante e acredita que pode montar esse quebra-cabeça (e. 37). Nas SRV, quando Kélia assistiu à apresentação que fez de um livro em aula, demonstrou satisfação por considerar ter falado adequadamente, pois tratava-se de uma fala ensaiada. Nesse momento, parece que a ‘falta de conteúdo’ (e. 72) tem um peso menor, proporcionando a Kélia, ao contrário de insegurança, motivação.

[74]

Eu acho que eu tenho uma entonação interessante, que se assemelha a uma entonação do alemão, tá ouvindo com mais freqüência, eu acho que essa mobilidade, eu acho que eu teria, ou tenho uma facilidade maior. (...) Agora o conteúdo, aí que tá, o conteúdo eu diria que as próprias palavras, você formular uma frase gramaticalmente correta, esse é o conteúdo, agora, a mobilidade, a dança da língua, eu acho que já assimilei mais ou menos, eu acho que eu assimilei... (...) [O alemão é um quebra-cabeça] gramaticalmente (...) [e isso pesa] positivamente, porque eu estou aqui pra montar... com certeza eu vou, não sei quando, mas vou. (K, EI)

Marcos, apesar de ir bem nos testes e de compreender quase tudo que é dito em aula, se considera um aluno mediano, o que pode nos remeter ao sentimento de segurança, pelo desempenho em aula, e de exigência, pelo que espera de si. Não imaginaríamos que um aluno com essa descrição se auto caracterizaria como mediano. Celani & Magalhães (2002) relacionam as representações (ou crenças, acrescento) com

expectativas do indivíduo sobre si mesmo, por isso, essa aparente incoerência talvez seja influenciada pelas expectativas de Marcos sobre si.

[75]

Eu me considero um aluno mediano. Vou bem nos testes e entendo quase tudo o que é dito na aula, muitas vezes pelo contexto, mas não sou dedicado como já fui. Eu costumava estudar as lições depois da aula no A1.112, anotar as palavras novas e seu significado, mas não tenho mais o tempo livre que eu tinha. Ainda me interesso muito pelo cinema alemão, especialmente pelo Fritz Lang. Mas só. E vejo os filmes com legenda. (M, QE)

Essa relação se mostra novamente quando Marcos se define como um aluno horrível. Segundo ele, um bom aluno é aquele que estuda e se dedica muito, que é o que ele gostaria de fazer e não pode por não ter tempo. Marcos teve, durante o semestre, alguns problemas que o impediram de ir a muitas aulas (NC, aulas 7,9,14-16,18, 21,23,24,29,31). De acordo com Marcos, um aluno maravilhoso é o aluno que estuda muito (também explicitado no e. 50).

[76]

[Sou um aluno] hoje em dia horrível... porque esse semestre eu realmente acho que fui muito mal... muita coisa me atrapalhou quando eu poderia não ter sido atrapalhado (...) Eu faltei duas semanas porque eu tava doente e outras duas porque eu tinha um trabalho pra fazer, porque eu tinha as filmagens no dia seguinte... [Eu gostaria de ser um aluno] maravilhoso, que é eu poder estudar alemão. (M, EI)

No quadro 4, apresento as características das identidades dos participantes explicitadas por eles.

Quadro 4: Auto-retratos

Participante Auto-retrato

Vicente

 atento e participativo em sala  busca conhecimento fora da aula  se cobra muito

 anota bastante

 realizado e orgulhoso por estudar alemão Lúcia

 média

 interessada em aprender  poderia se aplicar mais Kélia

 tem potencial para dominar o idioma  interessada em sala de aula

 esforçada, mas poderia se esforçar mais  tem ritmo, mas pouco conteúdo

12

 tem o nível de exigência alto

 frustra-se por não conseguir formular uma frase bem estruturada

 sente dificuldade na gramática  tem uma entonação interessante

Marcos

 mediano

 vai bem nos testes

 compreende o que é dito na aula

 horrível por não ser mais tão dedicado como já foi  gostaria de ser um aluno maravilhoso, o que significa

poder estudar muito

Podemos notar como as crenças e as identidades estão interligadas se analisarmos o quadro 4 e averiguarmos que a maioria das descrições que os participantes fazem deles mesmos são, na verdade, crenças sobre si mesmos. Muitas dessas características (ou crenças) explicitadas pelos participantes pude observar em aula (NC), porém auto-caracterizações podem ser difíceis, envolver uma vontade de dizer o que seria adequado e, talvez, uma certa humildade. Por isso, há a necessidade de se complementar essas caracterizações a partir de inferências e de observações.