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2.3. República

2.3.1. Autonomia dos índios e indigenato

No início do século XX, o estudo jurídico da questão indígena foi marcado pela publicação, em 1912, do livro Os indigenas do Brazil, seus direitos individuaes e politicos, de autoria do jurista paulista João Mendes Junior, reunindo o conteúdo de conferências proferidas dez anos antes perante a Sociedade de Etnografia e Civilização dos Índios. Dentre as teses pioneiras desenvolvidas pelo autor a mais importante é a teoria do indigenato, termo que expressa o direito originário dos índios às próprias terras, expressão que veio a ser consagrada décadas mais tarde pela Constituição de 1988.

Já na época das grandes navegações era intenso o debate nas nações européias acerca dos direitos e da própria soberania dos habitantes das Américas: os povos gentios. Decerto essas discussões não podem ser dissociadas do debate teológico subjacente, na medida em que os princípios

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O projeto de Constituição Positivista já no artigo 1° declarava que a República do Brasil consistia de duas espécies de Estados Confederados, os "Estados Ocidentais brasileiros sistematicamente confederados e que provêm da fusão do elemento europeu com o elemento africano e o americano aborígine" e os "Estados Americanos Brasileiros empiricamente confederados, constituídos pelas hordas fetichistas esparsas pelo território de toda a República", garantidos a estes últimos relações amistosas com o poder central, proteção do governo federal contra qualquer violência e inviolabilidade de território, que somente poderia ser atravessado com prévio consentimento, pacificamente solicitado e obtido (cf. PITANGA. Op. cit., p. 68). Ou seja, caso tivesse se concretizado este projeto de Constituição, os indígenas ter-se-iam tornado titulares de autonomia tão ampla quanto a garantida pela Carta de 1988. João Mendes Junior defendia, a partir de Jellinek e Brunaltti, que as nações indígenas fossem consideradas Estados da Federação (MENDES JUNIOR. Op. cit., p. 8). Sobre o tema, veja-se ainda: OLIVEIRA SOBRINHO. Op. cit., p. 115; MIRANDA; BANDEIRA. Op. cit., p. 50).

dedutíveis da legislação da época se fundam em concepções religiosas e valores morais europeus, não necessariamente em saberes científicos.

De um lado, algumas correntes canônicas sustentavam que a soberania dos povos gentios somente existira antes do nascimento de Cristo, sendo revogada a partir do momento em que o Vaticano foi investido de poderes espirituais e temporais sobre os povos pagãos.

Prevalecia, porém, tese diversa no pensamento ibérico do século XVI, inspirada nas doutrinas de Tomás de Aquino e do Papa Inocêncio IV, da plena soberania das nações indígenas sobre suas terras127.

Desde o período colonial a autonomia dos povos indígenas foi legalmente reconhecida. Neste sentido, Mendes Junior destaca os seguintes textos legais: a Provisão de 13/9/1663, garantindo aos índios o autogoverno nos assuntos temporais, a Carta Régia de 9/1/1690, impedindo os responsáveis pelas bandeiras de obrigar indígenas a as acompanharem contra a própria vontade, e a Provisão de 9/3/1718, pela qual o rei reconhecia que:

"estes homens são livres e isentos de minha jurisdicção, que os não póde obrigar a sahirem de suas terras para tomarem um modo de vida de que elles se não agradam, o que, se não é rigoroso captiveiro, em certo modo o parece pelo que offende a liberdade; comtudo, se são bravos, que andam nús, que não reconhecem rei, nem governador, não vivem com modo e fórma de republica, atropellam as leis da natureza, nestes casos podem ser obrigados por força e medo a que desçam do sertão para as aldêas, se não o quizerem fazer por vontade, por ser assim conforme a opinião dos doutores que escreveram na materia." 128

A expressão livres e isentos de minha jurisdição marca o primeiro reconhecimento do princípio da autonomia das tribos indígenas.

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CUNHA, Manuela Carneiro da. Os direitos dos índios, p. 54.

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Para Mendes Junior o texto legal originalmente mais relevante para a compreensão do indigenato é o já mencionado Alvará Régio de 1/4/1680. Instituído com o intuito de evitar a dispersão dos índios aldeados, logo em seu primeiro artigo era declarado "que os índios descidos do sertão sejam senhores de suas fazendas, como o são no sertão, sem lhes poderem ser tomadas, nem sobre elas se fazer moléstia" 129.

A despeito disto, nunca houve grande convicção no reconhecimento dessa autonomia, e, na prática, a política de descimentos e aldeamentos e a grande miscigenação importaram na gradual diluição da identidade dos índios, na sua assimilação (o que mais tarde se convencionaria denominar aculturação).Veja-se:

Não occultarei que, desde a nossa existencia nacional, a tendencia para declarar autonomia dos indios não foi assim tão explicita; mas, a razão disto é que os indios, entre nós, entraram, como vimos, mais que nos Estados Unidos da America do Norte, no cruzamento das raças. As aldeãs tornaram-se municipios; e os indios, que quizeram manter a sua autonomia completa, passaram a constituir hordas errantes ou a habitar aquillo que chamamos

terreno desconhecido.

Em summa, já não puderam ser considerados nações, porque os aldeados se amalgamaram, pelos cruzamentos, na nação brazileira, e os não aldeados foram considerados cidadãos brazileiros, desde que como taes, na forma do art. 6° da Constituição do Imperio, foram declarados 'todos os que no Brazil tiverem nascido'." (sic.) 130

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Como já se disse, anteriormente o Alvará de 26/7/1596 já havia consagrado o adágio "senhores das terras da aldeia, como o são na serra". Este texto, contudo, não é mencionado por Mendes Junior.

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Nos primeiros anos do século XX se observava uma diminuição no ritmo da miscigenação, de cuja constatação ressurgiu a tendência de considerar os índios como nações131.

Para a teoria do indigenato de Mendes Junior merece destaque a Lei de 6/6/1755, do período do marquês de Pombal. Uma das diversas normas que ao longo dos anos regularam as sesmarias no Brasil, ela transcreveu literalmente dispositivos do Alvará de 1/4/1680, garantindo o direito dos índios às suas terras no interior das concessões, por serem "primários e naturais senhores delas".

Extinto o regime de concessão de sesmarias em 1827132, a Lei de Terras de 1850133 instituiu novo regime fundiário, classificando as terras em possuídas, devolutas e reservadas. Do rol das devolutas, excetuaram-se as necessárias à fundação de povoações, abertura de estradas e colonização dos indígenas134.

Após a promulgação desta lei tornaram-se comuns demandas judiciais em que posseiros pretendiam exigir dos índios a exibição de registros de propriedade. Mendes Junior aponta que, além da exceção contida na Lei de 1850 quanto à inclusão de terras indígenas no rol de terras devolutas, não houve revogação do Alvará de 1/4/1680. Daí a conclusão de que as terras

131 Op. cit., p. 48. 132 Provisão de 22/10/1823 e Resolução de 5/2/1827. 133 Lei 601, de 18/9/1850. 134

Disposição repetida pelo Regulamento n. 1.318, de 30/1/1854, que regulamentou a lei.

Pelo art. 3° da Lei de 1850, eram devolutas as terras: "1) que não se acharem aplicadas a algum uso público nacional, provincial ou municipal; 2) que não se acharem sob o domínio particular por qualquer título legítimo, nem forem havidas por sesmarias e outras concessões do Governo geral ou provincial, não incurso em comisso, por falta das condições de medição, confirmação e cultura; 3) que não se acharem dadas por sesmaria ou outras concessões do governo, que, apesar de incursas em comisso, forem revalidadas; 4) que não se acharem ocupadas por posses que, apesar de não se fundarem em título legal, forem legitimadas".

tradicionais dos índios não podiam ser consideradas devolutas135, independendo de legitimação ou registro a titularidade as mesmas136.

Com isto, o autor chegou à conclusão de que o indigenato constitui um título congênito137, enquanto a ocupação seria um título adquirido, dependente de legitimação138. Esta teoria significou uma evolução em relação ao entendimento anterior, de que seria necessária a ocupação trintenária de determinada terra por “nação, tribo ou horda indígenas” para legitimação dessa posse, dispensando o título139.

A teoria de João Mendes Junior repercute ainda hoje na doutrina140 e foi consagrada na Constituição de 1988, que reconhece os direitos originários dos índios às terras tradicionalmente ocupadas.