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2.2. Brasil império

2.2.1. Os primórdios da tutela

No período imperial, uma inovação de importância crucial foi trazida pela Lei de 27/10/1831, que conferiu aos juízes de órfãos a competência para tutela de indígenas libertados após período de servidão ou escravidão decorrente de guerra justa91. O novo sistema, embora fundado em uma justificada premissa de necessidade de proteção desses indivíduos em situação de inferioridade em relação ao status quo, levou a distorções, como explica Helder Girão Barreto:

Com efeito, a legislação do início do século XIX atribuía ao Juiz de Órfãos duas competências: a) tutelar o índio que se encontrasse em escravidão ou em

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Manuela Carneiro da Cunha narra episódios de ofensivas promovidas pelas Províncias de Goiás e do Ceará, imediatamente após o Ato Adicional de 1834 (CARNEIRO DA CUNHA. Política indigenista no século XIX, p. 138).

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A Lei de 27/10/1831 revogou as Cartas Régias de 1808, as quais haviam, por sua vez, autorizado guerra aos índios das províncias de São Paulo e Minas Gerais. Com isso, a Lei de 1831 aboliu a servidão dos índios e os declarou órfãos, criando ainda a referida competência jurisdicional, nos seguintes termos (art. 4°): "sendo considerados como orphams, e entregues aos respectivos Juizes, para lhes applicarem as providencias da ordenação Livro primeiro título oitenta e oito" (sic.), providências essas que vêm a ser justamente a tutela.

Em seguida, o Decreto de 3/6/1833 veio a tratar especificamente dos bens dos índios, encarregando os juízes de órfãos de sua administração provisória. Essa competência específica dos juízes de órfãos, que teria sido motivada originalmente pela carência de funcionários para preenchimento dos cargos de ouvidores de comarcas (cf. SOUZA FILHO, Carlos Marés. O despertar dos povos indígenas para o direito, p. 94), foi reafirmada pelo Regulamento 143, de 15/3/1842.

Porém não se pode concluir, como é comum na literatura jurídica, que a Lei de 27/10/1831 tenha introduzido a figura da tutela do indivíduo indígena no ordenamento jurídico brasileiro (como, por exemplo: SOUZA FILHO. Op. cit., p. 93). Na realidade, o que se alterou foi a titularidade do poder de tutela, transferido para os juízes de órfãos. Trata-se de inovação obviamente relevante, mas não se pode olvidar que a tutela há muito já existia na colônia, como decorrência das normas relativas aos aldeamentos. Afinal, os índios aldeados estavam sujeitos ao poder temporal ora dos missionários ora dos administradores nomeados pela Coroa, que nada mais era que um poder de tutela. O único breve intervalo de inexistência absoluta de tutela se deu na época de Pombal, entre junho de 1755 e maio de 1757, no bojo das medidas oficiais de emancipação dos indígenas do poder jesuíta.

O Diretório de 3/5/1757 confiou a tutela dos índios aos diretores dos aldeamentos. Esta norma viria a ser derrogada pela Carta Régia de 25/7/1798, a qual determinou que particulares que conseguissem contratar com índios não aldeados deveriam cuidar de sua educação e instrução, como se fossem órfãos. Com isto, criou a até então inexistente tutela de índios independentes (CARNEIRO DA CUNHA. Op. cit., p. 147).

servidão em decorrência de guerra e que tenha sido posteriormente posto em liberdade; b) proteger os bens de todo e qualquer índio, inclusive daqueles que sequer tivessem sido contactados (os tais “isolados”).

Havia, portanto, dois sistemas tutelares distintos: um, destinado àqueles que tinham sido aprisionados e que posteriormente foram (re)postos em liberdade; outro, dirigido à proteção dos bens de todos os índios, independente de sua condição.

(....)

Pois bem: o mal-entendido ou a má-fé confundiu esses dois regimes jurídicos em um só: o da “incapacidade”, de tal sorte que todos os índios passaram a ser tratados como “incapazes”. Mas, convém recordar: tal “incapacidade” somente persistia enquanto os índios “não se incorporassem à sociedade civilizada”.92

Embora, em princípio, a Lei de 1831 devesse ser interpretada como uma norma de proteção dos indígenas aprisionados em razão de guerras e recém libertos, na prática a tutela orfanológica foi estendida aos índios em geral93.

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BARRETO, Helder. Direitos indígenas, p. 38-39.

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Alguns autores (CARNEIRO DA CUNHA. Op. cit., p. 148; OLIVEIRA SOBRINHO. Op. cit., p. 108; SOUZA FILHO. Op. cit., p. 93-96; SOUZA FILHO. Tutela aos índios, p. 297-299; BARBOSA, Marco Antonio, Autodeterminação, p. 210), defendem que a tutela pelos juízes de órfãos, estabelecida pela Lei de 27/10/1831, somente se aplicaria ao índios de São Paulo e Minas Gerais escravizados em decorrência de guerra justa, declarada com fundamento nas Cartas Régias de 13/5, 5/11 e 2/12/1808. Por esse raciocínio, a Lei de 27/10/1831 seria uma extensão da Lei de 3/11/1830, da Província de São Paulo, que já havia tomado essa providência em âmbito local. Trata-se de interpretação que, embora correta, surgiu apenas no século XX, distinta da que prosperou à época; nesse sentido, basta mencionar o entendimento diverso professado por um dos mais engajados defensores dos direitos dos índios no início do séc. XX e criador da teoria do indigenato (MENDES JUNIOR. Op. cit., p. 54).

À época, prevaleceu a extensão da Lei de 27/10/1831 aos indígenas em geral, o que sem dúvidas atendia a interesses econômicos da sociedade dominante: "antes de mais nada, nem o Decreto de 1833, em o Regulamento confirmatório de 1842 referem-se à Lei de 1831, numa evidente demonstração de que tratavam de coisas totalmente diversas. De fato, a Lei de 1831, ao colocar os índios sob a proteção dos juízes de órfãos referia-se àqueles libertos do cativeiro e não a todos os índios, e os colocava sob a guarda destes juízes que tinham, na época, atribuição de cuidar dos órfãos e prover-lhes o mantimento, vestuário, calçado e educação, até que os órfãos pudessem trabalhar. Estas atribuições estão estabelecidas diretamente nas Ordenações, que determinam ainda que "esta criação se pagará até o tempo, que os órfãos sejam em idade, em que possam merecer alguma cousa por seu serviço" (Ordenações Filipinas, 1° Livro, Título 88, n. 10). Entendendo o ordenamento jurídico da época, fica claro que o desejo do legislador de 1831 era colocar aqueles índios saídos do cativeiro sob a proteção de uma autoridade que os encaminhasse na vida, ensinando-lhes um ofício, ou determinando que alguém o fizesse, para a sua perfeita integração na sociedade, já que não podiam imaginar que estes homens pudessem querer voltar à vida comunitária com seus parentes. Uma coisa é certa, não podiam os juízes de órfãos entregar os índios confiados à sua jurisdição a tutores ou curadores, que administrassem os seus bens, mas a empregadores ou mestres de ofício, como expressamente determina o art. 5° da Lei. De qualquer forma, o conteúdo da norma é de proteção, como de proteção era o conteúdo das Ordenações. Não há nestas leis nenhuma limitação ou restrição aos direitos das pessoas, nada autoriza o entendimento de que os índios ou índias estavam privados do pátrio poder ou qualquer outro direito

Com isso, introduziu-se no ordenamento jurídico brasileiro a concepção de incapacidade relativa dos indígenas que viria a ser consagrada pelo Código Civil de 1916.

À exceção dessa norma de natureza civilística, pode-se dizer que a legislação indigenista havia passado por um período de vácuo a partir de 1798, após a revogação do Diretório Pombalino. Uma nova política de Estado somente viria a ser estabelecida com o Regulamento das Missões de 184594, único instrumento de caráter geral acerca dos índios editado durante o Império. Bastante minucioso, o Regulamento aprofundou a política de aldeamento, expressamente considerada como um estágio intermediário até a assimilação total dos indígenas.

Não se pode olvidar que após a expulsão dos jesuítas em 1759 os índios se viram sem representação real em nenhum nível, somente podendo se manifestar "por hostilidades, rebeliões e eventuais petições ao imperador ou

individual. Todo ao contrário, a tutela das Ordenações é um privilégio, é um direito a mais que recebe o tutelado, até mesmo com garantia de sustentação financeira para viver. Outra coisa completamente diferente é a determinação da administração dos bens dos índios pelos juízes de órfãos feita pelas leis de 1833 e 42. Aqui não se trata mais de oferecer privilégios, encaminhar na vida, sustentar a pessoa do índio, mas, simplesmente, proteger os seus bens. Está claro que a legislação do início do século XIX dava duas atribuições distintas aos Juízes de órfãos: 1) cuidar da pessoa dos índios libertados do cativeiro gerado pelas guerras, porque a lei expressamente os colocou sob tutela orfanológica e 2) proteger os bens dos índios, aqui sim, de todos os índios, inclusive dos aldeados e não contatados. Esta dupla função dos juízes de órfãos em relação aos índios acabou por confundir-se na aplicação de tal forma que no advento da República era geral o entendimento de que todos os índios estavam protegidos, pessoas e bens, pela tutela orfanológica " (SOUZA FILHO. Op. cit., p. 95-96).

Por fim, destaque-se que a equiparação de indígenas a órfãos se fundava em justificativas no mínimo curiosas: “Ainda que sejam eles equiparados a menores, muito é de considerar a grande diferença que existe entre um menor criado e educado no seio da sociedade civilizada, conhecedor dos hábitos e noções correntes do meio em que vive, e um habitante das selvas que sobre desconhecer esses hábitos e noções, é ainda movido e dominado por costumes radicalmente diversos” (MIRANDA; BANDEIRA. Op. cit., p. 52. Artigo redigido originalmente em 1911).

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Decreto 426, de 24/7/1845. Embora saudado por seu avanço (conforme o ideário evolucionista), esse diploma legal, contudo, era farto em disposições que nunca foram efetivadas, relativas à assistência médica aos índios, recenseamentos periódicos, educação e cursos de ofícios, etc (MENDES JUNIOR. Op. cit., p. 54; OLIVEIRA SOBRINHO. Op. cit., p. 109-114).

processos na Justiça" 95. O vazio legislativo existente até 1845 fez com que, na prática, o Diretório Pombalino continuasse a ser oficiosamente aplicado96.

O Regulamento das Missões de 1845 consagrou a administração secular, delegando aos administradores cargos e funções públicas, incluindo graduação militar. Cada província deveria ter um Diretor Geral de Índios, e cada aldeia um diretor, assistido por um corpo de administradores, médicos e missionários. Aos últimos, ficou reservada estritamente a função de assistência religiosa e educacional.

Os diretores de índios foram legatários, de fato, dos poderes dos juizes de órfãos, exceto o poder jurisdicional97. Em compensação, a eles cabia demarcar as terras indígenas, zelar pelo sustento dos índios, administrar e remunerar seu trabalho e, por fim, representá-los legalmente. Trata-se, sem dúvida, de um primeiro e alargado poder de tutela.

Entretanto, a carência de administradores leigos fez com que em diversas colônias a administração, de fato, permanecesse a cargo de religiosos98. O impasse entre administrações laicas e missionárias, em certa medida, permanece na atualidade.

Apesar de persistir a relevância do papel desempenhado pelos religiosos99, deve-se lembrar que por expressa exigência legal sua atuação era

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CARNEIRO DA CUNHA. Op. cit., p. 133.

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A Província do Ceará chegou a adotá-lo oficialmente (CARNEIRO DA CUNHA. Op. cit., p. 139).

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Nesse particular, o Regulamento das Missões não alterou a competência jurisdicional estabelecida pelo Regulamento 143, de 1842. Isso não impediu, diga-se, que os índios sofressem com abusos e "malversações sem conta", crimes e atrocidades (OLIVEIRA SOBRINHO. Op. cit., p. 111).

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CARNEIRO DA CUNHA. Op. cit., p. 140. A autora cita diversos exemplos de colônias administradas por religiosos, em diferentes regiões do país, o que em parte se deveu a pressões motivadas pelos abusos cometidos por colonos e forasteiros, em especial nas regiões de expansão territorial (mesmo José Bonifácio chegou a defender a administração dos índios por religiosos).

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Em 1843 o governo imperial iniciou uma política oficial de recrutamento de missionários capuchinhos italianos.

estritamente subordinada aos projetos governamentais100, sem traços, portanto, da autonomia gozada no período colonial. É relevante destacar, ainda, que a partir de 1845, quando os diretores de aldeia assumiram a função de defesa dos índios, não se conhece nenhum processo concreto com esse objetivo101.

Quando por razões econômicas se fazia necessário domesticar os indígenas construíam-se presídios, na realidade praças-fortes com destacamentos militares. Esses núcleos se destinavam a aldear e catequizar índios, combater os povos resistentes e servir de embrião para futuros povoados102.

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São exemplos a Lei de 2/7/1839 para o Maranhão e a Lei 239 de 25/5/1872 para a Província do Amazonas.

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CARNEIRO DA CUNHA. Op. cit., p. 153.

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