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4. A Constituição e os índios

4.3. O Estatuto do Índio

4.3.2. O Estatuto do Índio e a interação

Embora fundado no evolucionismo e no paradigma integracionista, o Estatuto do Índio também contém normas de espírito bastante avançado, que denotam a intenção de respeitar e preservar a cultura indígena. Esse é um interessante paradoxo da lei, que reflete ao mesmo tempo a convicção evolucionista quanto à transitoriedade da condição de índio e também ao

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Nesse sentido, o regime tutelar deve ser entendido "como um sistema coeso e interdependente, que se articula não somente sobre o dito e o consensual, mas fundamentalmente em razão de discursos políticos divergentes e de concepções do poder radicalmente contrárias mas que, paradoxalmente, no âmbito das práticas, se associam e se sobrepõem justamente através de diferenças, ambigüidades e silêncios. Tal postura não remete a um conhecimento de tipo generalizante e abstrato, mas a um exercício singular de resgatar a tessitura das relações sociais. Ao fim dessa busca não se encontra um tecelão único ou as regras gerais do trançado, mas sim a densidade e multiplicidade dessa urdidura, as diferentes tramas e estilos que compõem a singularidade dessa peça única" (OLIVEIRA FILHO. "O nosso governo", p. 237).

imperativo moral de se garantir a dignidade e a autonomia das populações que originalmente habitavam o território brasileiro469.

Os aspectos avançados da Lei n. 6001/73 ficam mais evidentes à luz da Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho, de 1989, que vem a ser a norma de direito internacional mais importante, na atualidade, para a definição dos direitos dos povos indígenas.

A comparação entre os dois textos se revela um exercício interessante. Tome-se como ponto de partida os critérios para a definição da condição de índio. Nos termos da Convenção 169, são indígenas os descendentes de populações "que habitavam o país ou região geográfica pertencente ao país na época da conquista ou da colonização ou do estabelecimento das atuais fronteiras estatais e que, seja qual for sua situação jurídica, conservam todas as suas próprias instituições sociais, econômicas, culturais e políticas, ou parte delas" (art. 1°, item 1, b). Há, porém, um critério adicional de crucial importância: "a consciência de sua identidade indígena ou tribal deverá ser considerada como critério fundamental para determinar os grupos aos que se aplicam as disposições da presente Convenção" (art. 1°, item 2).

O critério adotado é misto, pois se exige a descendência ao mesmo tempo em que se estabelece como fundamental a chamada identidade étnica, parâmetro considerado o mais adequado pelas próprias comunidades indígenas de todo o mundo, em que pesem algumas controvérsias470.

Trata-se do mesmo critério do Estatuto do Índio, que, em uma formulação mais sintética, dispõe que "índio ou silvícola é todo indivíduo de

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Um dos princípios norteadores a ação oficial é o dever de "respeitar, no processo de integração do índio à comunhão nacional, a coesão das comunidades indígenas, os ser valores culturais, tradições, usos e costumes" (art. 2°, VI, do Estatuto do Índio).

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origem e ascendência pré-colombiana que se identifica e é identificado como pertencente a um grupo étnico cujas características culturais o distinguem da sociedade nacional" (art. 3°, I).

As semelhanças não param aí. Vários dos direitos reconhecidos pela Convenção 169, como resultado dos esforços dos movimentos de afirmação indígena de todo o planeta, encontram equivalentes no Estatuto do Índio.

O item 2 do art. 2° da Convenção descreve medidas que deverão ser adotadas pelos governos dos países signatários, com vistas a assegurar aos membros de comunidades indígenas "o gozo, em condições de igualdade, dos direitos e oportunidades que a legislação nacional outorga aos demais membros da população" e "a plena efetividade dos direitos sociais, econômicos e culturais, respeitando a sua identidade social e cultural, os seus costumes e tradições, e as suas instituições", no esforço de "eliminar as diferenças sócio- econômicas que possam existir entre os membros indígenas e os demais membros da comunidade nacional, de maneira compatível com suas aspirações e formas de vida".

O art. 1° do Estatuto, por sua vez, declara o propósito de preservar a cultura indígena471, enquanto o art. 2° estende aos índios os direitos da legislação comum e o direito à assistência do Estado, além de pormenorizar princípios para a preservação de suas peculiaridades culturais, garantindo

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Embora também declare o propósito de integrá-los "à comunhão nacional", como se fossem compatíveis os objetivos. Agostinho ainda busca conciliá-los, negando a equivalência dos termos assimilação e integração e defendendo que o segundo seja entendido em seu "uso antropológico", entendido como "um conjunto de formas de articulação entre sociedades indígenas privadas de sua autonomia e a sociedade nacional que as domina, verificadas no plano do econômico, do social e do político" (AGOSTINHO. Op. cit., p. 67-70). Nesse sentido, a integração perseguida pela lei se avaliaria por critérios jurídicos (o reconhecimento dos plenos direitos civis, sem que isso afete os usos e costumes tradicionais), e não sociológicos (a assimilação propriamente dita).

Interessantemente, na mesma coletânea, outro artigo traz críticas veementes à referida contradição entre os objetivos declarados pela lei, apontando o sentido indubitavelmente etnocêntrico da idéia de integração (SILVA, Orlando. Op. cit., p. 40-43).

inclusive sua colaboração, sempre que possível, na execução de programas e projetos em seu benefício (inciso VII).

Prosseguindo na comparação se percebe que os pontos de semelhança vão além, com ambos os instrumentos legais reconhecendo o direito das comunidades e dos indivíduos indígenas: a) à observância de seus costumes e instituições na aplicação da legislação nacional, no que forem com ela compatíveis, em assuntos de seu interesse, reconhecidas inclusive as sanções de natureza penal (arts. 8° e 9° da Convenção; art. 57 do Estatuto)472; b) à consideração das características peculiares dos indivíduos indígenas que tenham sofrido condenação penal, relativamente ao cumprimento da pena (art. 10 da Convenção; art. 56 do Estatuto); c) aos recursos naturais existentes em suas terras (art. 15 da Convenção; art. 45, § 1°, do Estatuto); d) a garantias de sanções legais contra eventuais intrusões em suas terras (art. 18 da Convenção; arts. 34 a 38 do Estatuto); e) a medidas especiais de proteção nas relações de trabalho (art. 20 da Convenção; arts. 14 a 16 do Estatuto); f) à participação na formulação de programas e medidas para sua própria formação profissional (art. 22 da Convenção; art. 2°, VII e VIII, do Estatuto); g) a medidas de incentivo da produção econômica própria de suas culturas (art. 23 da Convenção; art. 53 do Estatuto); h) à inclusão no regime geral de seguridade social (art. 24 da Convenção; art. 55 do Estatuto).

Os dispositivos legais referidos, se não possuem exatamente a mesma redação, têm sem dúvida a mesma essência.

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Desse modo, é evidentemente exagerada a afirmativa: "o Estado contemporâneo e seu Direito sempre negaram a possibilidade de convivência, num mesmo território, de sistemas jurídicos diversos, acreditando que o Direito estatal sob a cultura constitucional é único e onipresente", seguida da ilação de que os sistemas jurídicos nacionais da América Latina desprezam a complexidade das diferentes normas das culturas indígenas relativas a questões de família, propriedade, sucessão, casamento e crimes ou condutas anti-sociais (SOUZA FILHO. Op. cit., p, 71).

O breve exercício de comparação entre esses dois textos legais, tão distintos entre si quanto à época e às circunstâncias de elaboração, de fato leva a conclusões surpreendentes. Fruto da mobilização de povos indígenas de todo o mundo contra a antiga Convenção 107 da OIT, de 1957, os trabalhos de elaboração da Convenção 169 tiveram a participação de representantes desses povos e o resultado é, como se disse, a mais avançada norma de direito internacional no trato da questão na atualidade. O avanço representado por ela se reflete na demora em sua ratificação pelo Brasil, o que só veio a ocorrer em 2002473.

Esse interessante paradoxo, considerando as significativas semelhanças entre os textos legais e ao mesmo tempo o verdadeiro abismo teórico que os separa, é uma questão que deve ser entendida à luz do fenômeno de mudança de paradigmas 474. Os aspectos positivos do Estatuto do Índio refletem um conteúdo humanista que perpassa toda a história da legislação indigenista brasileira, ainda que no plano retórico ou no ideal, desde o período colonial.

O imperativo moral de preservação das peculiaridades das culturas autóctones, entretanto, sempre foi afirmado e ao mesmo tempo descumprido. Tal fato é indissociável do evolucionismo pretensamente humanista que se prolonga, com as mutações filosóficas e jurídicas trazidas pelo tempo, desde o humanismo cristão das ordens religiosas e o trabalho de conversão compulsória dos gentios, até a inserção e auto-sustentação dos silvícolas,

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Decreto Legislativo 143, de 20/06/02.

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Daí a ênfase dada à pesquisa histórica. A ruptura de paradigmas representada pelo art. 231 da Constituição de 1998 somente pode ser entendida à luz da evolução da legislação antecedente; nesse sentido "na interpretação a práxis e a ciência são freqüentemente forçadas pelos direitos fundamentais, mas também por outras prescrições constitucionais, a recorrer a percursos de história das idéias, de história evolutiva e de história do direito e da constituição no sentido mais estrito, para obter deles por meio da comprovação da continuidade ou descontinuidade material e normativa pontos de vista para a concretização" (MÜLLER. Métodos de trabalho do direito constitucional, p. 73).

perseguida segundo os pressupostos epistemológicos do positivismo do SPI e o integracionismo econômico da Funai.

A distância entre princípios e realidade, pregação e prática, deve-se ao paradigma que guiou a ação estatal desde os primeiros contatos, passando pelo período pombalino e pelo Código Civil de 1916, até o Estatuto do Índio, com foco sempre na integração. Apenas com a Constituição de 1988 criaram- se as bases para uma nova era na relação entre povos indígenas e sociedade circundante, com base, a partir de então, no paradigma da interação.