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2.2. Brasil império

2.2.2. A questão das terras

Como já foi destacado, o direito dos índios à própria terra era reconhecido deste os primórdios da colonização. De modo geral, o direito sobre as terras era reconhecido aos índios que se submetessem ao jugo estatal103.

Interessante observar, porém, que a Carta Régia editada por D. João VI em 2/12/1808 declarou devolutas as terras conquistadas de povos contra os quais houvesse sido decretada guerra justa. Logo, infere-se que os índios eram titulares de direitos reais anteriores, passíveis de derrogação apenas em situações específicas previstas em lei. Além disso, duas Provisões de 8/7/1819 declaravam que as terras dos índios eram inalienáveis, tampouco podendo ser declaradas devolutas.

Com a importância central que o tema das terras assumiu no século XIX, a ação estatal passou a depender de motivações juridicamente legítimas que justificassem sua expropriação. Fatores de ordem econômica e militar levavam à expansão da presença do Estado e dos colonos mais e mais no interior dos sertões; nesse processo, a espoliação de terras indígenas se tornou freqüente.

Justificativas e subterfúgios para a burla dos direitos dos índios eram vários e relacionados entre si: o nomadismo dos nativos, sua conseqüente falta de apego à terra e a inexistência do conceito europeu de propriedade em suas culturas. Contudo, o próprio comportamento de diversos povos já demonstrava memória e apego ao território, inclusive em episódios de resistência ao esbulho.

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O já mencionado Alvará Régio de 26/7/1596 garantia aos índios aldeados direito às terras onde eram fixados. No mesmo sentido o Alvará Régio de 1/4/1680. As Leis de 26/3 e 8/7/1819 reconheceram o direito dos índios às terras em que estejam arranchados. Houve ainda decisões de poderes públicos locais conferindo aos índios o direito de opinar sobre os locais de fixação de seus aldeamentos.

O argumento da guerra justa, justificadora do esbulho nos termos da Carta Régia de D. João VI de 1808, foi largamente manejado, inclusive para justificar a escravização de índios livres, abolida pelo Diretório Pombalino. As terras normalmente eram dadas em sesmaria a colonos, milicianos, fazendeiros e moradores pobres, pressupondo eufemisticamente que os mesmos promoveriam a instrução dos índios em ofícios e sua catequização104.

Destarte, a retórica oficial foi secularizada, substituindo-se a catequização pela civilização dos indígenas como objetivo central do Estado. Submeter os nativos ao jugo da lei e do trabalho passou a ser mais importante que salvar suas almas. É certo, contudo, que as tentativas de amansamento de indígenas redundaram em diversas resistências e fugas.

É interessante observar que a escravidão dos índios foi abolida e reinstituída algumas vezes, em especial nos séculos XVII e XVIII. Contudo, perdurou, na prática, até meados do século XIX105.

Apesar de um certo desuso do termo aldeamentos, a política que os justificava foi, na realidade, aprofundada. Os efeitos da ação indigenista no período imperial são semelhantes àqueles decorrentes do antigo processo de aldeamentos e descimentos: diminuição das extensões de terra sob domínio dos índios, concentração de povos distintos no mesmo espaço, definição dos locais de fixação das populações com base em conveniências econômicas e militares, garantia de reservas de força de trabalho nativa.

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CARNEIRO DA CUNHA. Op. cit., p. 142. Neste processo consolidou-se a expropriação de territórios indígenas nas áreas de colonização mais antiga e iniciou-se o povoamento ao longo do Rio Arinos, na rota entre Pará e Mato Grosso.

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Houve casos de textos legais autorizando a venda de crianças (Aviso de 2/9/1845) e a escravização de adultos (Aviso de 2/9/1845). O Regulamento das Missões de 1845 previa o trabalho remunerado dos índios, para particulares, vedado o trabalho forçado. Contudo, até mesmo na Corte se encontravam escravos índios, já na década de 1850 (CARNEIRO DA CUNHA. Op. cit., p. 146).

O Aviso de 5/1/1854 para o Maranhão permitia o recrutamento compulsório por três anos, com pagamento apenas ao final do período. Em 1852, a primeira lei indigenista para a recém-criada Província do Amazonas autorizou a negociação de índios diretamente com os chefes das "nações selvagens".

Os critérios nem sempre eram de relevância para a governança nacional ou regional, às vezes se baseando em conveniências puramente locais dos moradores não índios. Ao longo do século XIX, os diversos episódios de aldeamento em todo o Brasil demonstram a tendência de diminuição gradativa dos territórios reconhecidos aos indígenas106.

Houve casos de autorização de arrendamento e aforamento de terras de aldeamentos para percepção de recursos supostamente destinados à sobrevivência107 e à educação108 dos índios. Com isto, abriu-se a possibilidade de arrendatários e foreiros reivindicarem e obterem cartas de sesmaria (os primeiros casos de deferimento são de 1812), o que fez com que, como reação, os direitos inalienáveis dos índios sobre as terras das aldeias fossem reafirmados109.

Entretanto, após o caso pioneiro de transferência da população indígena de uma aldeia e subseqüente venda em hasta pública das terras110, episódios como esse se tornam comuns, em especial (mas não apenas) na região Nordeste111. O Regulamento das Missões de 1845112 viria a aprofundar o processo, pois continha previsão de hipóteses de reunião de aldeias e de concessão de aforamentos e arrendamentos.

Cinco anos após o Regulamento das Missões, a Lei das Terras de 1850113 reafirmou a necessidade de assentamento das hordas selvagens. Os aldeamentos deveriam ser implantados em terras devolutas, garantida a inalienabilidade das terras e seu usufruto pelos indígenas. A depender do

106

CARNEIRO DA CUNHA. Op. cit., p. 144.

107

Lei de 5/12/1812, por exemplo.

108 Lei de 18/10/1833. 109 Lei de 26/3/1819. 110 Lei de 6/7/1832. 111

CARNEIRO DA CUNHA. Op. cit., p. 145.

112

Decreto 426, de 24/7/1845.

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estado de civilização dessas populações, o governo imperial poderia lhes ceder o pleno gozo das terras114.

A partir da Lei das Terras, o Estado expandiu significativamente a política de aldeamento. Freqüentemente, as terras das aldeias eram subtraídas dos índios com base em um duplo critério, qual seja, a presença de significativa população não índia naquele território, combinada com a constatação de que a população indígena tenha sofrido assimilação. Trata-se de um primeiro esboço do critério de identidade étnica, que viria a ser desenvolvido e valorizado no século XX115.

As terras de aldeias extintas deveriam ter sido dadas aos índios116; contudo, a disputa por elas se arrastou por trinta anos117, travada entre os entes políticos do Império (municípios, províncias e poder central), excluídos os próprios indígenas da discussão.

A tendência inicial foi pelo entendimento que as terras de aldeias extintas se tornavam devolutas, de titularidade do Império118. Em seguida, porém, o poder local ganhou terreno, até que as Câmaras Municipais receberam o poder de utilizar essas terras para edificações e urbanização, ou,

114

Art. 75 do Decreto 1318, de 30/1/1854, que regulamentou a Lei das Terras.

115

CARNEIRO DA CUNHA. Op. cit., p. 145. A autora menciona que as primeiras extinções de aldeias se deram no Ceará, em Pernambuco e na Paraíba, imediatamente após a promulgação da Lei das Terras. Não lhe escapa a ironia desse fenômeno, posto que a presença de numerosa população não índia nas aldeias representava uma conseqüência da própria política oficial levada a cabo até então.

Houve casos de extinção de aldeamentos (Aviso de 19/5/1862), de autorização de aforamento e venda de terrenos pertencentes a aldeias “abandonadas” (Lei Orçamentária n. 1.114, de 27/9/1860, Lei 2.672, de 20/10/1875), e de incorporação de terras indígenas a municípios e às províncias (Lei Orçamentária n. 3.348, de 20/10/1887).

Anos depois, ironicamente, já na República, foi justamente na Lei de Terras que João Mendes Junior fundamentou sua teoria do indigenato, o direito originário dos índios às próprias terras, demonstrando que elas não poderiam ser consideradas devolutas. Voltaremos ao tema adiante.

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Manuela Carneiro da Cunha cita alguns casos de reconhecimento do direito originário de indígenas, inclusive de descendentes dos moradores originais, às terras de aldeias extintas, ocorridos na década de 1850. Tratam-se, contudo, de episódios isolados (CARNEIRO DA CUNHA. Op. cit., p. 145).

117

Idem.

118

a seu critério, vendê-las a foreiros119. Dois anos mais tarde, as terras das aldeias extintas passaram para o domínio das províncias, retendo as Câmaras Municipais o poder de aforá-las120.

Com a proclamação da República em 1889, o sistema instituído doze anos antes pela Lei 3348 se perpetuou, na medida em que a Constituição de 1891 atribuiu aos Estados as terras anteriormente pertencentes às Províncias.

Por fim, conclui-se que a importância assumida pela questão das terras durante o período imperial fez com que as técnicas de governo dos índios servissem, de modo geral, à apropriação de seus territórios, com objetivos econômicos e estratégicos. Neste sentido:

O processo de espoliação torna-se, quando visto na diacronia, transparente: começa-se por concentrar em aldeamentos as chamadas "hordas selvagens", liberando-se vastas áreas, sobre as quais seus títulos eram incontestes, e trocando-as por limitadas terras de aldeias; ao mesmo tempo, encoraja-se o estabelecimento de estranhos em sua vizinhança; concedem-se terras inalienáveis às aldeias, mas aforam-se áreas dentro delas para seu sustento; deportam-se aldeias e concentram-se grupos distintos; a seguir, extinguem-se aldeias a pretexto de que os índios se acham "confundidos com a massa da população"; ignora-se o dispositivo de lei que atribui aos índios a propriedade da terra das aldeias extintas e concedem-se-lhes apenas lotes dentro delas; revertem-se as áreas restantes ao Império e depois às províncias, que as repassam aos municípios para que as vendam aos foreiros ou as utilizem para a criação de novos centros de população. Cada passou é uma pequena burla, e o produto final, resultante desses passos mesquinhos, é uma expropriação total.121 119 Decreto 2672, de 20/10/1875. 120 Lei 3348, de 20/10/1877. 121