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O caráter principial do caput do art 231 da Constituição de

4. A Constituição e os índios

4.2. Os princípios constitucionais da tutela-proteção e da autonomia dos povos indígenas

4.2.1. O caráter principial do caput do art 231 da Constituição de

A Constituição de 1988 nasceu de uma importante transição histórica e representa o fruto jurídico do processo político de restabelecimento da democracia no Brasil. E, como tal, reflete as próprias contradições inerentes a esse processo. Não poderia ser diferente em se tratando do poder constituinte genuíno – ou seja, produto da ruptura com o sistema político precedente – e democrático – o que pressupõe a participação efetiva e mais ampla possível, na elaboração da Constituição, da maior parte das forças políticas e dos segmentos sociais que a ela irão se submeter.

Somente assim se pode falar verdadeiramente em pacto político, uma das dimensões clássicas do fenômeno Constituição; afinal, no atual estágio de desenvolvimento do mundo ocidental, causa repúdio que o direito seja produzido de forma não democrática, hipótese inadmissível em um Estado Democrático de Direito como o consagrado pela Constituição de 1988397.

Logo, não se trata de buscar um fundamento material (axiológico) para o direito398, mas sim uma fundamentação de natureza político-processual, na

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Em outras palavras, “o Estado é legítimo enquanto exercer o seu poder com base em uma Constituição que contém um determinado estoque nuclear (Kernbestand) de “princípios” da família constitucional” (MÜLLER. Fragmento (sobre) o poder constituinte do povo, p. 104).

Nesse sentido, "a nação é uma narrativa histórica, uma tradição fabricada, a imagem de um território, os símbolos de uma unidade imaginada. Ela também é um Estado, um contrato político, as instituições públicas, uma identidade material que confere substância aos direitos da cidadania" (MAGNOLI, Demétrio. A segunda Waterloo, p. 90).

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Interessante observar que no século XIX surgiram correntes radicais de crítica ao direito, que apontavam sua impotência diante do poder real; nessa linha, os ordenamentos jurídicos seriam meras fachadas para a dominação e o próprio direito um instrumento de violência. Embora aparentemente anti- metafísica, a crítica, dessa forma, permanece presa a uma concepção transcendental, na medida em que

medida em que mesmo a base axiológica do direito deve ser definida a partir do consenso, vale dizer, os valores fundamentais de um determinado sistema jurídico são aqueles erigidos como tais pelo corpo social através de um processo democrático399. O direito, assim, deve surgir "da livre interação dos segmentos sociais por meio da ação de seus atores" 400.

Os direitos e princípios fundamentais de uma dada Constituição surgem do processo representado pelo poder constituinte. O fenômeno do constitucionalismo traduz a matriz lógico-racional do processo democrático, a busca de uma teorização que fundamente e aprimore este processo. Como fruto do ideal iluminista, o constitucionalismo busca construir formas de governo que excluam o arbítrio, preservando a diversidade humana, incrementando a liberdade de ser e de pensar.

pressupõe que o poder deve ser limitado por um direito "fundamental" (cf. FOUCAULT, Michel. A vontade de saber, p. 85). Por outro lado, é inegável a historicidade dos direitos fundamentais e, logo, seu caráter relativo, o que de modo algum importa em um "relativismo" amoral (Cf. BOBBIO, Norberto. A era dos direitos, p. 19).

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Para ser bem sucedido o Estado constitucional deve ser uma estrutura de poder funcionalmente democrática. Daí se afirmar que "não basta a legitimação através da fixação democrática de valores básicos, é necessário igualmente que o "povo inteiro" beneficie da implementação desses valores básicos" (CANOTILHO. Op. cit., p. 82).

Este cerne processual é que torna a Constituição o espaço garantidor das relações democráticas entre direito e sociedade de que fala Streck, aquela zona relativamente segura de mediação entre legalidade e legitimação e, mais profundamente, entre legitimidade e justiça (STRECK. Op. cit., p. 244).

Nesse particular, comungamos da tese dos direitos de que fala Dworkin (uma das vertentes, analisadas pelo autor, da teoria da decisão judicial no direito norte-americano), segundo a qual a história institucional de uma determinada sociedade é capaz de revelar os direitos políticos que os cidadãos possuem, na medida em que tais direitos “são criação tanto da história, quanto da moralidade” (DWORKIN. Op. cit., p. 136).

Por fim, apontamos a importância para o pensamento de Dworkin da capacidade que o direito possui de "absorver" conteúdos “migrados” do campo moral. Esse ponto é analisado longamente por Habermas em seu tratado jurídico. O pensador alemão parte da constatação de que os três principais grupos de teorias acerca da "racionalidade da jurisprudência" – a hermenêutica filosófica, o realismo de tradição norte- americana e o positivismo jurídico – possuem vários defeitos, para em seguida apontar que a solução mais satisfatória é dada pelo construcionismo de Dworkin, capaz de satisfazer às exigências jusfilosóficas de aceitabilidade racional e de consistência nas decisões (HABERMAS, Jürgen. Direito e democracia entre facticidade e validade, tomo 1, p. 241-295).

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PASSOS, J.J. Calmon de. Direito, poder, justiça e processo, p. 107. Não se trata, é certo, de incorrer no equívoco de negar validade ao direito produzido por sistemas políticos não democráticos. Em uma ditadura, o direito não perde sua natureza porque autocraticamente produzido. Continuará sendo direito, com a ressalva de que, aponta o autor, excluída a participação político-popular do processo de produção da norma, resta acentuada sua face de pura dominação.

Diferentemente das regras, os princípios são otimizáveis, passíveis diferentes graus de concretização; daí a possibilidade de coexistência no interior da Constituição de princípios entre si conflitantes401, que co-existem sem gerar antinomia e devem ser sopesados (ponderados) face à situação concreta.

Os princípios, portanto, não são, como as regras, aplicados disjuntivamente (atribuição de validade ou invalidade, face ao fato concreto); sua dimensão é de peso ou importância, variável de acordo com a situação em exame402.

Tomando por base a classificação proposta por Canotilho403, os princípios implícitos no texto constitucional e de interesse para a presente investigação – da tutela-proteção e da autonomia – possuem natureza de princípios-garantia, pois visam garantir a integridade física e cultural dos povos indígenas brasileiros.

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CANOTILHO. Op. cit., p. 1124-1126.

Paulo Bonavides, a partir de Boulanger, Bobbio, Dworkin e Alexy e, em seguida, Larenz, Esser, Müller e Crisafulli, situa as teorias principiológico-constitucionais no chamado pós-positivismo, que rendeu frutos já consolidados: "a passagem dos princípios da especulação metafísica e abstrata para o campo concreto e positivo do Direito, com baixíssimo teor de densidade normativa; a transição crucial da ordem jusprivatista (sua antiga inserção nos Códigos) para a órbita juspublicista (seu ingresso nas Constituições); a suspensão da distinção clássica entre princípios e normas; o deslocamento dos princípios da esfera da jusfilosofia para o domínio da Ciência Jurídica; a proclamação de sua normatividade; a perda de seu caráter de normas programáticas; o reconhecimento definitivo de sua positividade e concretude por obra sobretudo das Constituições; a distinção entre regras e princípios, como espécies diversificadas do gênero norma, e, finalmente, por expressão máxima de todo esse desdobramento doutrinário, o mais significativo de seus efeitos: a total hegemonia e preeminência dos princípios" (BONAVIDES. Curso de direito constitucional, p. 294).

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Na realidade, "as cláusulas constitucionais, por seu conteúdo aberto, principiológico e extremamente dependente da realidade subjacente, não se prestam ao sentido unívoco e objetivo que uma certa tradição exegética lhes pretende dar. O relato da norma, muitas vezes, demarca apenas uma moldura dentro da qual se desenham diferentes possibilidades interpretativas. À vista dos elementos do caso concreto, dos princípios a serem preservados e dos fins a serem realizados é que será determinado o sentido da norma, com vistas à produção da solução constitucionalmente adequada para o problema a ser resolvido" (BARROSO; BARCELOS. Op. cit., p. 332). Os autores, em seguida, aprofundam a distinção entre princípios e regras nos planos do conteúdo, da estrutura normativa e das particularidades de aplicação (Op. cit., p. 340-344).

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O autor português identifica quatro espécies: princípios jurídicos fundamentais (Rechtsgrundsätze), princípios políticos constitucionalmente conformadores, princípios constitucionais impositivos e princípios-garantia (CANOTILHO. Op. cit., p. 1128-1131).

De fato, não é outra a função primordial da principiologia constitucional que proteger os direitos já conquistados, combatendo alterações pretendidas “por maiorias políticas eventuais, que, legislando na contramão da programaticidade constitucional, retiram (ou tentam retirar) conquistas da sociedade” 404.

Da norma do caput do art. 231 da Constituição de 1988 decorrem dois princípios implícitos405 fundamentais à concretização dos direitos dos índios: o princípio da tutela-proteção e o da autonomia dos povos indígenas.

Semanticamente os termos tutela e autonomia parecem exprimir idéias opostas. De fato, quanto mais autônomo, menos tutelado, e vice-versa. A incompatibilidade é apenas aparente, pois nenhum dos princípios pode ser excluído: ambos devem se equilibrar, calibrando um a aplicação do outro.