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G LOBO : DISCURSOS FORA DA TELA

3.3 A AUTONOMIA TELEVISIVA

NO CONTEXTO MODERNO de autonomização, gerador de novos sistemas sociais, percebe-

se, no interior do sistema midiático, a televisão constituindo-se um sistema com lógicas próprias, e de formas muito particulares de operacionalização dos discursos sociais. Heterorreferencial por sobrevivência e auto-referencial por excelência, ela nos oferta 24 horas por dia construções de mundo. A televisão trata, desde seu lugar, de operar gramáticas discursivas que reduzam a complexidade do mundo de modo a retornar aos indivíduos sua leitura da realidade, a sua construção.

Essa prática de construção de realidades não se dá sem conflitos. Principalmente porque o conceito de “imagem”, matéria-prima da TV, gera controvérsias. Se contemporaneamente, o contato do homem com o mundo se dá tantas vezes através das imagens (fato que ocorre especialmente através da mídia), ao mesmo tempo é justamente a instância da imagem que será, no âmbito do senso comum, sinônimo de superficialidade e falseamento do real.

Por outro lado, a constituição tecnológica da TV tende a provocar sensações de proximidade, tornando a mediação que exerce praticamente imperceptível. Isso vai alimentar para o telespectador a noção de que trata-se ali da fiel reprodução da realidade. É um aporte midiático capaz de instaurar um sofisticado processo de construção da realidade, pois tem os recursos da imagem e do som simultaneamente, sendo essa imagem em movimento. Tudo isso alimenta a idéia de que reproduz o real de modo fidedigno, isto é, encobre seu papel de observadora. Mesmo nos programas ficcionais esse processo ocorre, garantido por uma espécie de suspensão da descrença, fenômeno estudado desde o cinema, como fez Metz:

(...) uma reprodução bastante convincente desencadeia no espectador fenômenos de participação – participação ao mesmo tempo afetiva e perceptiva – que contribuem para conferir realidade à cópia. Nesta perspectiva, devemos nos perguntar por que a impressão de realidade é tão mais forte diante de um filme do que diante de uma fotografia. Há

uma resposta que se impõe de imediato: é o movimento que dá uma forte impressão de realidade. (METZ, 1977, p. 19).

Assim como o cinema, detentora desse recurso tecnológico da imagem que se movimenta, a TV tem um forte potencial de mobilizar emocionalmente os indivíduos. A nosso ver, ocorre, antes de tudo, a mobilização de afetos. Segundo Metz, o espectador é “desligado” do mundo real, transferindo-se para uma outra realidade, o que implica “uma

atividade afetiva, perceptiva e intelectiva, cujo impulso inicial só pode ser dado por um espetáculo parecido com o do seu mundo real” (METZ, 1977, p. 25). Emocionalmente envolvido, o telespectador tende a distinguir com menos clareza que a TV é observadora de segunda, e não de primeira ordem.

Essa confusão de percepções reproduz-se em diversos estudos sobre a televisão, prejudicando o próprio conceito sobre essa mídia nas sociedades. Machado (2003) classifica os dois modos comuns de se analisar a TV: “modelo Adorno” – baseado na situação de dependência político-econômica; e “modelo McLuhan” – TV é boa em essência, pois “o meio é a mensagem”. De fato, há um conflito entre uma visão que percebe a TV exclusivamente de fora (questões políticas e econômico-mercadológicas) e outra excessivamente de dentro (conteúdos independentes do contexto). Segundo Machado (2000, p. 19), falta às duas visões perceber a “ocorrência da diversidade e da contradição” na TV.

O real embasado na interioridade de cada sistema (tendo por referência a teoria construcionista), substituindo a idéia de um real único e irrefutável, fundamenta nossa perspectiva sobre o televisivo. No papel de mediador social que exerce, captura do que lhe é externo (entorno) aquilo que pode ajudar no seu fortalecimento, por meio de operações de acoplamento estrutural. Em seguida, realiza uma ressignificação sobre o que foi acoplado para, na seqüência, retornar sua leitura de mundo à sociedade. Nesse sentido, temos, em lugar da TV que mente e manipula, a TV mediadora de realidades, codificadora e redutora de complexidades, determinante e determinada pelo seu contexto

social. Nem boa, nem má, mas complexa, fundamente complexa, de tal sorte que demanda um olhar capaz de perceber seus modos de produção de sentido, as operações que realiza para chegar a determinadas semioses.

Não é possível trabalhar, como diria Luhmann (2005), na perspectiva de reduzir a realidade percebida a um esquema de poder e vítima. Outras perspectivas são possíveis, sem que para isso se abra mão de um olhar crítico. Lipovetsky (2004, p. 87) combate o que chama de “satanização” da televisão, e a vê “sobretudo enquanto instrumento da vida política e democrática de massa, e não uma barbárie”. Para Wolton (1996), a televisão reconstitui uma forma de laço social na medida em que cada indivíduo sabe que aquilo que está assistindo também está sendo assistido por várias outras pessoas.

Em linha semelhante de pensamento, Machado (2000) afirma que os discursos sobre TV soam conformistas, negligenciam o potencial transformador que essa mídia possui. De fato, negam, inclusive, que através da TV tem-se arte, que a televisão pode funcionar como um meio de expressão artística do mesmo modo que o cinema, a dança, o teatro etc. Segundo Kilpp (2005, p. 6), a relação dos indivíduos com a TV “é perpassada de subjetividades, como se espera que seja a fruição artística e, no entanto, não é como arte que tendemos a nos relacionar com a televisão.” Em nossa opinião, negações desse tipo só dificultam que vejamos a TV como importante constituinte da cultura no mundo moderno, um canal de produção de sentidos sociais por excelência.

A postura preconceituosa mostra-se, de modo exemplar, através do tratamento que o jornalismo impresso dá ao tema. Os segundos cadernos dos jornais em geral abordam a televisão como um meio de expressão menor, cabendo-lhe uma cobertura que foca a vida pessoal dos artistas/celebridades e a informação simplificada sobre a programação do dia ou da semana. Nesse sentido, a abordagem é essencialmente informativa e superficial e muito pouco reflexiva e/ou analítica.

Quando a análise ocorre, na maior parte das vezes a TV é “o alvo”, o problema, vem dela considerável parte dos males do mundo desenvolvidos pela cultura de massa. A

TV é então o lado “menor” da expressão artístico-cultural, e quem vende essa idéia é o interlocutor representado pelo grupo de jornalistas e/ou críticos de TV que sobre esse meio jogam um olhar “do alto”. Há sem dúvida um obscurantismo intelectual que age com visão de extremo preconceito ao ver na televisão um meio de expressão essencialmente negativo e até nocivo às pessoas.

Defensor de uma postura mais flexível sobre a TV, capaz de enxergar sua contribuição à sociedade, Machado (2000, p. 12) afirma: “A televisão é e será aquilo que nós fizermos dela”. Essa afirmação nos inspira a concordar que, mesmo à distância, fazemos parte daquilo que a TV representa para a sociedade, numa relação de co- responsabilidade. Explicamos. A aderência ou a negação aos seus produtos vai incidir diretamente nas suas simbólicas coletivas, nos papéis que ela representa dentro da engrenagem social. Segundo Silverstone (2002), a principal pergunta dos pesquisadores da mídia, em vez de ser “O que a mídia faz para nós”, deve ser “O que fazemos com a nossa mídia?”. Para o autor, também são relevantes nossas respostas ao que vemos, ouvimos e àquilo com que interagimos no contexto midiático.

Por outro lado, não se pode perder de vista que a realização da TV está subordinada aos seus donos, grandes empresários (na maioria das vezes, famílias que representam verdadeiros conglomerados empresariais), que embora utilizem uma concessão pública, não mantêm uma relação democrática junto aos seus telespectadores acerca de seus conteúdos. Estamos sujeitos a um modelo de programação essencialmente verticalizado, decidido por poucos, o que acaba por reforçar nossa tese da TV como sistema social singular e auto-referencial.

De fato, não há canais institucionalizados que permitam interferência mais direta nas programações televisivas. Mas não deixamos de ser co-participantes do processo televisivo (que vai além do momento da produção dos conteúdos), e um fato que comprova isso é que as próprias emissoras perceberam essa questão e trataram de colocar a funcionar grupos de pesquisa qualitativa que continuamente sinalizam a opinião dos telespectadores sobre diversos programas. Os resultados dessas pesquisas (junto, é

claro, das investigações quantitativas de audiência, do tipo Ibope) são capazes de modificar tramas de novelas, trocar jornalistas das bancadas de apresentação de telejornais e até tirar um programa do ar.

As pesquisas qualitativas representam um modo mais direto da influência dos indivíduos no processo televisivo, mas não o único. Nossa co-responsabilidade está nas mais diversas influências que permitimos que o conteúdo televisivo tenha ou não sobre nossas vidas e sobre as noções de real que ele propõe e que acolhemos. Tudo isso é captado pelo sistema televisivo num movimento de acoplamento estrutural e se constitui numa operação fundamental para a sua sobrevivência. Sua auto-referência só se dará com sucesso na medida em que realizar operações profícuas de acoplamento com o entorno.

Ao se instituir parceira de diversas entidades do terceiro setor e dizer-se realizadora de responsabilidade social, a Globo concretiza um processo de acoplamento junto a determinados segmentos da sociedade. Ela capta de seu entorno que temáticas sociais relacionadas ao trabalho do terceiro setor são uma realidade relevante no contexto atual e passa a investir nisso. Ela adere, em verdade, a toda uma simbólica que acompanha conceitos como cidadania, responsabilidade social, solidariedade, voluntariado, entre outros.

Essa adesão, como foi possível perceber no segundo capítulo, ocorre fora de sua programação através de alguns projetos específicos, mas principalmente naquilo que a emissora coloca no ar, organizada dentro de um formato próprio de grade de programação. Por dentro dela, encontra-se um trânsito de acontecimentos televisuais mais ou menos organizado em torno de classificação de gêneros e dos valores qualitativos emprestados a eles segundo as regras propostas pela própria Globo. É a partir da observação sobre essa engenharia auto-referencial que podemos ver a TV como sistema social singular. Vejamos a seguir como esse processo se desdobra no que tange aos gêneros e à grade de programação.