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SE CONSIDERARMOS QUE terceiro setor e mídia representam sistemas sociais constituídos

na contemporaneidade, vale buscar outros setores relevantes ao contexto desta pesquisa. É o caso do sistema empresarial, pois ações sociais capitaneadas por empresas privadas representam um fenômeno bastante comum nesses primeiros anos do século XXI. Esse tipo de iniciativa está em alta no mundo dos negócios e representa muito mais do que uma simples moda, na acepção de “passageira” que essa palavra pode ter. Concretamente, na hora de fazer as contas acerca da imagem de uma empresa nos dias de hoje, o que ela faz ou deixa de fazer na área social passa a ter um grande peso. A essas ações, modo geral, dá-se o nome de “responsabilidade social”.

As condições históricas iniciais que geraram esse conceito já foram analisadas na parte anterior desse capítulo e dizem respeito às transformações sociais e políticas nas décadas de 80 e 90 e conseqüente esvaziamento do poder do Estado. Foi próximo ao desenvolvimento do terceiro setor como um todo que as empresas brasileiras passaram a realizar ações na área social de modo sistematizado, dando inclusive nome a isso.

Assim como no caso geral do terceiro setor, a ascensão de práticas de responsabilidade social também acontece influenciada por um tempo histórico de declínio da dimensão do político. Nesse momento, outro setor da sociedade não tem sua imagem abalada pelos recentes acontecimentos históricos: o empresariado. Assim como alertam os críticos do terceiro setor sobre a ascendência das ONGs, o movimento de responsabilidade social no Brasil parece aproximar-se dos ideais neoliberais, que prevêem justamente uma sociedade de Estado fraco e iniciativa privada forte e atuante.

Até aí, tudo poderia ir bem (pelo menos do ponto de vista do empresariado), caso os problemas sociais brasileiros não tivessem passado, na virada dos anos 80 para os 90, para uma situação ainda mais dramática. É nesse contexto que se intensifica a necessidade de novas intervenções sociais. Sendo assim, a década de 90 surge pródiga em garantir terreno para a criação dessas novas manifestações, que são diversas e se

encontram diretamente relacionadas ao universo do terceiro setor. No caso específico do empresariado, eclodem manifestações de preocupação com a questão social brasileira. O conjunto de ações que pretendem contribuir com a redução e/ou resolução dessa situação é chamado, como já dissemos, de responsabilidade social.

Vale destacar também a visão sobre a pobreza observada nesse mesmo contexto. Segundo Beghin (2005), na década de 80 a pobreza era vista como fenômeno político, que poderia ser resolvido com o crescimento econômico e uma política social que pretendesse extinguir a concentração de renda. Nos anos 90, segundo a autora, o combate à pobreza assume outros contornos, baseados não na eliminação da pobreza, mas na gestão dela através de sua amenização.

Essa transição na perspectiva sobre a pobreza indica sem dúvida uma espécie de flexibilização na visão sobre o social e suas prováveis soluções. Junto com o esvaziamento do campo político, esvaem-se também perspectivas mais profundas de transformação da sociedade, como a implantação do regime socialista – visão levada à frente com muito mais força pela esquerda brasileira até os anos 80. Todo o quadro até aqui desenhado vai mostrar um Brasil onde a preocupação com as questões sociais passa a ser um item fundamental para a legitimação de qualquer instância da sociedade, em especial no nível simbólico. Não estar preocupado com a fome e a miséria que abate considerável parcela da população significa estar “fora da realidade” ou, ainda pior, ser “egoísta” e, quem sabe pior ainda, “não ter caráter”10. Estar preocupado com o próximo desfavorecido passa a ser

uma característica fundamental de valorização para o cidadão moderno.

Eis, portanto, um bom motivo para que a área empresarial passe a atuar concretamente em ações que visem minorar o problema da exclusão social. Mas este pode não ser o único ingrediente motivador. Autores como Paoli (2002), Beghin (2005), Demo (2002) e Montaño (2002) estabelecem uma relação entre o ativismo social de empresários com a política neoliberal. Para eles, a miséria na intensidade como se

10 Vale frisar, do ponto de vista histórico, que a Campanha Contra a Fome, organizada por Betinho,

apresenta no Brasil é um obstáculo para o avanço do neoliberalismo no país. Além disso, atuar na resolução dos problemas sociais é também uma estratégia de esvaziamento do Estado, retirando dele suas funções de realizar e/ou regular políticas sociais.

Diante disso, do que efetivamente trata a responsabilidade social? Este é o termo utilizado com mais freqüência para o que alguns autores chamam de “filantropia empresarial” ou “empresa-cidadã”. Segundo Garcia (2004), seus integrantes a consideram uma das organizações do terceiro setor, localização que não se dá sem problemas, diante principalmente da desconfiança que o setor empresarial sempre suscitou na sociedade brasileira. Entretanto, a defesa para essa classificação apóia-se no fato de que as instituições mantidas por empresas não são Estado nem mercado e, além disso, não têm fins lucrativos.

Observa-se na lista de requisitos acima bons motivos para o debate acerca do caráter e das feições de ações sociais capitaneadas por empresas. Que elas não são Estado, não há dúvida. Mas que elas não sejam mercado e nem visem lucro já são pontos que instigam várias discussões. E elas começam cobertas pelo guarda-chuva no qual as empresas que atuam com responsabilidade social escolheram para se abrigar, que é o terceiro setor. Isso ocorre porque diversas organizações não-governamentais questionam o papel dessas empresas e desconfiam da gratuita boa vontade com que elas se apresentam. Além disso, muitas vezes, a própria natureza do negócio vai contra as bandeiras de luta de várias ONGs11.

As desconfianças giram principalmente em torno do ganho que essas empresas têm quando dão publicidade à realização de um projeto social. Fórmulas oficiais de medição do valor da marca de uma empresa no Brasil levam em conta os projetos sociais realizados12. Além disso, não se pode negar a histórica postura de desconfiança que a

11 Este é o caso, por exemplo, de empresas que exploram o meio ambiente de modo nocivo. Em outros

casos, instituições bancárias são vistas como verdadeiros representantes desse sistema econômico que o país vive, baseado na concentração de renda.

população em geral costuma ter sobre a área empresarial, tantas vezes identificada pela simbólica do “lucro a qualquer custo”, contextualizado numa sociedade capitalista.

Dezalay exemplifica o entrelaçamento entre empresas e terceiro setor de defesa do meio ambiente, que se baseia na estratégia que o autor denomina de “win-win”, por meio da qual as empresas têm tudo a ganhar participando ativamente desse tipo de luta (ecológica). “A dinâmica competitiva e a lógica do benefício se converteram assim em incentivos para a ação militante” (Dezalay, 2003, p. 357 – tradução da autora). O autor explica que esse fato acaba por se mostrar também um caminho para que se inicie a substituição do Estado de forma progressiva.

De acordo com Garcia (2004, p. 30), muitos dos que suspeitam da filantropia empresarial “não vêem nela mais do que um recurso de propaganda ideológica para atenuar a visão do mercado como o mundo do auto-interesse, ao pretender reconfigurar as funções que as empresas deveriam exercer além da busca do lucro”. Entretanto, tantas desconfianças não intimidam o empresariado de colocar a frente os mais diversos projetos sociais. Concretamente, fica difícil abrir mão de associar marca e ação social do “lucro” que essa estratégia tem rendido, manifesto na influência sobre a escolha e a fidelidade de um produto.

Igualmente difícil é generalizar e crer que todas as manifestações de responsabilidade social baseiam-se na busca pelo sucesso de marketing que vai levar ao êxito da adesão a produtos, antes de tudo, porque a própria efetivação dessas ações têm perfis diversos, como ressaltam Mendonça e Schommer:

Há várias formas de atuação das empresas no social, que podem ou não envolver a imagem da empresa. Os esforços vão da doação de recursos a uma entidade à atuação direta em projetos voltados para a comunidade. Passa também para questões ambientais e trabalhistas e pelo cumprimento das leis, que envolvem a atuação responsável em toda a cadeia produtiva. (MENDONÇA; SCHOMMER, 2000, p. 3).

benefícios e ações sociais dirigidas aos empregados, investidores, analistas de mercado, acionistas e à comunidade.” (site www.balancosocial.org.br).

Segundo o Instituto Ethos, instituição respeitada mesmo pelos autores que são críticos à relação entre campo empresarial e ações sociais, responsabilidade social é:

Responsabilidade Social é uma forma de conduzir os negócios da empresa de tal maneira que a torna parceira e co-responsável pelo desenvolvimento social. A empresa socialmente responsável é aquela que possui a capacidade de ouvir os interesses das diferentes partes (acionistas, funcionários, prestadores de serviço, fornecedores, consumidores, comunidade, governo e meio ambiente) e conseguir incorporá-los no planejamento de suas atividades, buscando atender às demandas de todos e não apenas dos acionistas ou proprietários. (Site do Instituto Ethos, 2004).

Do ponto de vista do espírito sugerido, o quadro a seguir é elucidativo sobre a proposta da responsabilidade social quando contraposto ao conceito de filantropia: QUADRO

QUADRO QUADRO

QUADRO 1 1 1 1 –––– FILANTROPIA X COMPROFILANTROPIA X COMPROFILANTROPIA X COMPROFILANTROPIA X COMPROMISSO SOCIALMISSO SOCIALMISSO SOCIALMISSO SOCIAL13131313

Na filantropia Na filantropiaNa filantropia

Na filantropia No compromisso socialNo compromisso socialNo compromisso socialNo compromisso social As motivações são humanitárias

As motivações são humanitáriasAs motivações são humanitárias As motivações são humanitárias

A participação é reativa e as ações, A participação é reativa e as ações, A participação é reativa e as ações, A participação é reativa e as ações, isoladas

isoladasisoladas isoladas

A relação com o público A relação com o públicoA relação com o público

A relação com o público----alvo é de alvo é de alvo é de alvo é de demandant

demandantdemandant

demandante/doadore/doadore/doadore/doador

A ação social decorre de uma opção pessoal A ação social decorre de uma opção pessoal A ação social decorre de uma opção pessoal A ação social decorre de uma opção pessoal dos dirigentes

dos dirigentesdos dirigentes dos dirigentes

Os resultados resumem Os resultados resumemOs resultados resumem

Os resultados resumem----se à gratificação se à gratificação se à gratificação se à gratificação pessoal de poder ajudar

pessoal de poder ajudar pessoal de poder ajudar pessoal de poder ajudar

Não há preocupação em associar a imagem da Não há preocupação em associar a imagem da Não há preocupação em associar a imagem da Não há preocupação em associar a imagem da empresa à ação social

empresa à ação socialempresa à ação social empresa à ação social

Não há preocupação em relacionar Não há preocupação em relacionarNão há preocupação em relacionar

Não há preocupação em relacionar----se com o se com o se com o se com o Estado

EstadoEstado Estado

O sentimento é de responsabilidade A participação é pró-ativa e as ações, mais integradas

A relação com o público-alvo é de parceria

Ação social incorporada à cultura da empresa envolvendo todos os colaboradores

Resultados pré-estabelecidos e preocupação com o cumprimento dos objetivos propostos Busca-se dar transparência à atuação e multiplicar as iniciativas sociais

Busca-se complementar a ação do Estado, numa relação de parceria e controle

As missões propostas são bastante amplas e na prática concretizam-se de variadas maneiras. Do ponto de vista interno da empresa, pagar salários dignos, respeitar os direitos garantidos em acordo trabalhista e oferecer creche às funcionárias que são mães, podem ser considerados exemplos de responsabilidade social. Outra iniciativa, ainda ligada ao ambiente interno da empresa, mas que promove uma espécie de ponte entre o público interno e questões externas à instituição empresarial, é o incentivo à mudança de postura em relação ao tabagismo ou à doação de armas. Saúde, meio ambiente e violência seriam as temáticas focadas nesses últimos exemplos.

O que se observa é que o âmbito da responsabilidade social encontra-se estreitamente relacionado a uma visão mais sistêmica, e por isso, mais solidária sobre a sociedade. Fica explícita a idéia de que a sociedade é um todo sobre o qual devemos ter um olhar e uma postura de responsabilidade em lugar de um pontual sentimento de piedade. Além disso, recolocam-se as posições hierárquicas dessas relações: na filantropia, há uma relação de poder entre aquele que faz e aquele que recebe; na responsabilidade social, o trabalho entre as partes é marcado pela parceria.

Uma forma bastante usual de responsabilidade social está no financiamento de projetos encaminhados por entidades parceiras. Segundo Garcia, este é um modelo de atuação baseado na tradição norte-americana e simboliza uma forma particular de envolvimento à distância com os programas sociais. “As empresas escolhem suas instituições parceiras, agregam ao seu nome um conjunto de atributos relacionados aos projetos, ao público envolvido e, em alguns casos, à instituição operadora” (Garcia, 2004, p. 43).

Vale ressaltar ainda que o campo de atuação na área tornou-se um mercado de trabalho com franca expansão, com a presença de profissionais de administração, jornalismo e marketing. Essa característica diferencia-se de outros campos de intervenção social do passado (principalmente da década de 80 para trás), encabeçados em geral por profissionais das áreas de humanas, tais como sociólogos, pedagogos e historiadores.

Esse perfil profissional específico evidencia a dimensão que os aspectos comunicacionais possuem nas ações sociais do empresariado. E faz-nos lembrar, mais uma vez, da desconfiança de diversos autores sobre o interesse das empresas no que tange ao potencial de divulgação da imagem que a responsabilidade social pode desenvolver. Para Garcia, outro forte indício dessa preocupação sobre a imagem estaria nas áreas de atuação escolhidas por considerável parte das empresas. A autora aponta uma predominância de investimentos na área da educação e da infância e da adolescência e estabelece uma relação entre esses temas e o comprovado retorno de imagem que elas propiciam. Segundo ela, “crianças e jovens são elementos fortes de mobilização social, e os setores de marketing das empresas sabem bem disso” (Garcia, 2004, p. 45-46).

A observação da autora é relevante para esta pesquisa, visto que a Globo tem deixado claro que os temas correlatos educação e infância são suas duas principais bandeiras sociais. Um de seus principais projetos sociais, o Criança Esperança (CE), foca-se exatamente nesses dois temas e, secundariamente, nos adolescentes (além de no conjunto tratar da questão da exclusão social).

Não só essa última observação de Garcia (2004), como também todo esse quadro aqui desenhado sobre o conceito de responsabilidade social, constitui um dos fundamentos das análises pretendidas por esta pesquisa, ou seja, sobre os materiais do Criança Esperança. A perspectiva trabalhada, como já foi dito, vê as ações sociais da Rede Globo como uma manifestação midiática do que hoje o empresariado brasileiro chama de responsabilidade social. E é esta a denominação utilizada pela empresa em seus balanços sociais14 divulgados periodicamente.

Se de fato há responsabilidade na visão sobre os problemas sociais brasileiros por parte do setor empresarial no Brasil, eis uma pergunta difícil de se responder aqui. Menos pela parca existência de pesquisas que avaliem a intenção e o impacto social dos

programas colocados em prática, e muito mais pela complexidade da questão, marcada por ambigüidades. Uma delas, e talvez a mais relevante, é a de que não se pode negar que programas sociais (capitaneados por empresas) eficazes em seus objetivos gerem impactos sociais positivos.

Em resumo, o que ocorre é um processo múltiplo de acoplamentos estruturais que envolve terceiro setor, empresariado e mídia, onde cada uma dessas partes se relaciona com as demais buscando captar aquilo que lhe parece fundamental à sua sobrevivência. Nesse contexto, todos os três lançam mão de ferramentas de marketing. Na área social, há uma modalidade específica e é sobre ela que tratamos a seguir.