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IDENTIFICAÇÃO DAS OPERAÇÕES DE SENTIDO O C RIANÇA E SPERANÇA É O acontecimento em foco, no sentido metodológico do termo.

G LOBO : DISCURSOS FORA DA TELA

4.2 IDENTIFICAÇÃO DAS OPERAÇÕES DE SENTIDO O C RIANÇA E SPERANÇA É O acontecimento em foco, no sentido metodológico do termo.

Desempenha, no contexto desta pesquisa, um papel de “constante desconhecido, do qual estudaremos apenas a manifestação por meio da semantização discursiva” (Verón, 2004, p. 89). É igualmente nosso invariante referencial – tema que se repete várias vezes na programação, contribuindo para a tematização de questões sociais diversas e produzindo sentidos a partir desse processo.

O desafio é identificar as operações de natureza discursiva presentes na programação da Globo que se configuram na tematização do Criança Esperança, que consideramos um operador institucional da emissora. Ao longo da programação, o CE é em geral identificado como “campanha” – qualificação mais direcionada ao período já citado entre julho e agosto de cada ano. Há também o uso do termo “projeto”, o que abarcaria o acontecimento como um todo, dentro e fora da tela, e durante todos os períodos do ano.

Optamos, entretanto, por identificá-lo com uma nomenclatura própria, fruto da análise geral sobre o papel que o CE sinaliza ter no interior da programação televisiva. Essa decisão tem caráter metodológico e visa a contribuir com um olhar mais autônomo e por isso mais científico sobre o objeto de análise. Becker54 chama a atenção sobre os

riscos em seguir as nomenclaturas já instituídas:

A conseqüência moral de adotar a linguagem e a perspectiva existentes para com o fenômeno que estudamos é que aceitamos, queiramos ou não, todas as definições sobre certo e errado contidas naquelas palavras e idéias. (BECKER, 2003, s/p).

54 Este texto de Becker baseia-se em obra de Erving Goffman sobre métodos de apresentação de

pesquisa e produção acadêmica a partir do artigo “As características das instituições totais”. Goffman propõe uma solução para o risco de defeitos e falhas analíticas que surgem da aceitação impensada (por parte do pesquisador) das restrições do pensamento convencional.

Nesta pesquisa, não se trata exatamente de questões morais, mas da semiose desenhada a partir do repertório narrativo próprio do objeto em estudo. Para nos mantermos a uma distância crítica desse repertório optamos por uma outra identificação sobre o significado do Criança Esperança para a Globo. Becker (2003, s/p) afirma ainda que “o modo pelo qual as coisas são chamadas quase sempre reflete relações de poder. As pessoas no poder chamam as coisas do que quiserem.” A Globo, investida do poder que exerce como sistema que atua como um observador sobre o real para os demais sistemas sociais, define ela mesma seu repertório narrativo – o modo pelo qual dá nome às coisas.

Ao evitar as denominações de “campanha” ou “projeto” não pretendemos negar que, em alguma medida, o Criança Esperança de fato se encaixe nessas duas classificações. Aspiramos, sim, fugir de acepções que já o relacionem a uma simbólica de investimento coletivo de grandes proporções, daquilo que não se pode criticar porque envolve a estatura de uma campanha voltada para beneficiar crianças e adolescentes carentes. Há um tom, portanto, de unanimidade difícil de questionar, pois vestido do invólucro de “campanha”, o CE realiza potencialmente uma operação de acoplamento de uma série de valores que, somados à sua gênese (ajudar crianças e adolescentes pobres), lhe fornecem um grande poder catalisador.

Pretendemos, enfim, emprestar a esse acontecimento uma noção menos impregnada da noção pré-definida pela própria Globo, pois, como bem define Becker (2003, s/p) “se escolhemos denominar o que estudamos com palavras que as pessoas envolvidas já usam, adquirimos, com essas palavras, as atitudes e perspectivas que implicam”. Menos campanha e menos projeto, o Criança Esperança nos parece mais um operador institucional da Globo. Explicamos. Ele não é um programa regular da grade de programação da emissora, mas um acontecimento tratado como de ordem extraordinária e capaz de produzir a sua tematização nos mais diversos gêneros. Ele opera em favor desse processo de tematização.

O Criança Esperança é um tema e, ao mesmo tempo, uma reunião de temas (infância, adolescência, educação, terceiro setor, exclusão etc.). É um tema presente em vários pontos da grade de programação de uma emissora de TV e por isso tem existência televisiva. Mas também tem existência fora da tela, concretizando-se em uma iniciativa que atinge a vida cotidiana de diversos indivíduos: alguns que recebem os benefícios das doações e outros tantos que realizam as doações por meio de ligações telefônicas ou acesso à internet. Trata-se, pois, não somente de um acontecimento televisivo, mas de um programa social que tem na mídia seu principal suporte e em uma emissora de TV sua idealizadora e realizadora principal. Toda essa configuração nos permite classificá-lo como um operador institucional da Globo.

Relevante perceber que a Globo propõe atuar em duas frentes. A primeira é a de divulgadora de um projeto social; a segunda, a de protagonista desse projeto. No Criança Esperança, a emissora está presente tanto dentro quanto fora do que vai ao ar, numa operação que reforça não somente a sua auto-referencialidade, mas também a noção de que aquilo que faz parte da programação é um retrato do real. Como veremos mais à frente, esta última é uma operação continuamente realizada e tem o Criança Esperança como uma “prova” da realidade representada pela programação global. Em conseqüência, “prova” também a relação aproximada entre Globo e o universo do terceiro setor e ações de responsabilidade social.

No interior da grade de programação, o Criança Esperança é pródigo em sua ação germinal: tematiza a si e os tópicos infância e adolescência (e por conseqüência, vários outros temas sociais) em quase toda a programação da rede. Inserções na hora dos intervalos, novelas, telejornalísticos, programas de auditório e programas esportivos são parte considerável de produtos que colocam no ar e divulgam esse operador institucional. O mote principal é o apelo à doação de dinheiro que deverá ser repassado a ONGs cujos trabalhos são voltados para crianças e adolescentes.

Seu ponto alto – segundo o tratamento que a emissora dá à campanha – é o programa que ocorre no primeiro sábado à noite do mês de agosto e que a partir de

2004 vem-se desdobrando para a tarde do domingo seguinte. Entretanto, foi detectado que mais relevante é a mudança no cenário geral da programação da emissora provocada pelo Criança Esperança. Isso se configurou em um processo de intensa tematização do próprio acontecimento, o que, em conseqüência, gera a tematização de outras questões sociais.

Segundo Verón (2004, p. 90), o discurso não tem unidade própria; é o “lugar de manifestação de uma multiplicidade de sistemas de condições, uma rede de interferências”. As operações discursivas buscadas nesta pesquisa surgem desses sistemas de condições os quais se relacionam aos elementos extradiscursivos já explanados nos dois primeiros capítulos deste trabalho. A busca pelas operações parte da idéia de que a Globo tem uma gramática discursiva acerca de um social tematizado por ela. Nosso objetivo é compreender quais operações definem essa gramática que trata do Criança Esperança, configurando o televisivo como sistema.

Para isso, investimos em análises discursivas verticais sobre as manifestações nos gêneros trabalhados. Por vertical entenda-se uma análise diferente, por exemplo, do que propõe Verón em sua teoria dos discursos sociais, prevendo a comparação entre sistemas produtivos diferenciados, tais como empresas de comunicação ou suportes midiáticos diversos. Parte sim da perspectiva de singularidade do objeto em análise, tal como propõe Foucault:

Trata-se de compreender o enunciado na estreiteza e singularidade de sua situação; de determinar as condições de sua existência, de fixar seus limites da forma mais justa, de estabelecer suas correlações com os outros enunciados a que pode estar ligado, de mostrar que outras formas de enunciação exclui. (FOUCAULT, 1987, p. 31).

Tal visão singular sobre o discurso nos auxilia também a evitar a idéia de condicionamento ideológico que permearia toda e qualquer manifestação discursiva, prevista não só por Verón, como também por outros nomes de alta referência em análise de discurso, tal qual Pêcheux. No lugar da condição ideológica propomos a visão

sistêmica, que não renega a inter-relação entre discurso e meio, mas que a propõe sob outra perspectiva, tal qual desenvolvida no capítulo anterior.

Seguindo essa trilha, realizamos uma comparação entre os gêneros de mesmo meio e emissora (Globo), os quais habitualmente têm funções predominantes (como foi possível debater no capítulo anterior), mas que no caso específico do Criança Esperança parecem abrir-se a um processo de flexibilização dessas funções (hibridismos) de modo a possibilitar a abordagem do acontecimento, o que acaba por configurar acoplamentos estruturais entre gêneros. Há, portanto, uma reconfiguração da paisagem televisual da Globo como um todo em função da tematização de seu mais importante operador institucional.

Para iniciar a análise, listamos os programas que abordam o CE e que passaram por uma pré-seleção tendo como parâmetro os moldes até então existentes que classificam os gêneros televisivos. Esse procedimento ajudará na discussão de outro ponto sublinhado por Verón (2004): a compreensão sobre a estrutura global do meio (realizada parcialmente no debate sobre a grade – capítulo anterior), isto é, o entendimento sobre a organização interna dos produtos ofertados pela emissora, que produzem um primeiro agenciamento dos temas para o telespectador, contribuindo para o efeito de sentido de cada enunciado.

Segundo Verón (2004, p. 92), ao tratarmos de pontos como o formato “não fazemos senão seguir os rastros de uma identificação que é socialmente institucionalizada”. Diante disso, o autor chama a atenção para a possibilidade de que os resultados da pesquisa apontem que esses sistemas de classificação devem ser quebrados. De fato, já sabemos desse “risco” desde a discussão sobre grade e gêneros no capítulo anterior, mas compreendemos que precisamos partir deles para chegar às suas reconfigurações. Afinal, para quebrar paradigmas precisamos compreender suas lógicas de origem e suas formatações.

O material trabalhado constitui diversas abordagens sobre o CE que foram ao ar nas suas duas últimas edições, em 2005 e 2006. Materiais sobre os dois anos anteriores também estão presentes na análise, mas em menor escala, fazendo parte do momento de construção do projeto desta pesquisa. De um material bruto de cerca de 50 de horas, foi editada uma parte pré-selecionada que corresponde a cerca de três horas e meia de gravação. Trata-se da presença do CE nos mais diversos pontos da grade de programação.

Selecionamos, para uma análise mais focada, dentro desse segundo material editado, os VTs que divulgam o CE, as partes dos programas telejornalísticos que abordam o trabalho das ONGs financiadas e que fazem a cobertura do show do CE, e por fim, três programas de entretenimento que abordam o Criança Esperança. Esses três pontos da programação, como veremos, mostraram cumprir funções interdependentes na tematização do CE, de modo a se constituírem uma amostra rica no que tange às representações criadas em torno desse operador institucional da Globo. O DVD em anexo traz essa parte analisada.

Há, além dessas três horas e meia, os registros daquele que, segundo anuncia a Globo, é o momento alto do CE: o show que ocorre na noite do primeiro sábado de agosto e reúne personas diversas (artistas, jornalistas etc.), com desdobramento para o domingo à tarde. Esse material em específico é usado como aporte do primeiro, pois a esta pesquisa interessa menos o momento comemorativo do CE e mais a sua constituição no trânsito televisivo da programação da Globo. Esse recorte se explica porque nosso foco é a tematização sobre questões sociais que a emissora realiza tendo o CE como pano de fundo e, assim, são as aparições ao longo da programação que mais realizam essa função. Além disso, acreditamos que ao investigar tais tematizações vamos reconhecendo os modos como o televisivo se constitui contemporaneamente como sistema autônomo.

Todos os pontos editados para análise, apesar de existirem em sua individualidade, representam uma cartografia da presença do Criança Esperança na programação como

um todo. São unidades autônomas de sistemas que, ao mesmo tempo, relacionam-se em operações de acoplamento com o todo da programação, que vem a representar um sistema discursivo mais amplo e por isso mais complexo. Diante disso, faz-se necessário categorizar esses enunciados visando detectar as características específicas de cada formato e os modos como se articulam com o todo da programação.

Em uma pesquisa que Verón (2004) utiliza para exemplificar sua metodologia de análise do discurso social, ele analisa revistas55 de perfis diferentes e foca principalmente

títulos e sub-títulos das capas dos semanários analisados. O autor fundamenta sua escolha no potencial que essas duas partes dos textos têm de enquadramento do acontecimento, diante das dimensões metalingüística e referencial que os títulos, em especial, exibem.

Na TV, não há títulos e sub-títulos – pelo menos não no formato tradicional dos materiais impressos. Entretanto, vale tentar identificar aquilo que Verón (2004) busca com os títulos, que são as operações subjacentes ao discurso inteiro, que levam ao enquadramento do discurso e, por conseqüência, do acontecimento que é foco de análise. Se na TV não há os títulos, há os gêneros, que surgem como referências importantes da análise, e que podem cumprir a função de enquadramento, que é basicamente “adiantar-se em relação a certas propriedades do discurso assim enquadrado” (VERÓN, 2004, p. 105). O gênero potencialmente contém em sua gênese o processo discursivo que vai manifestar-se mais detalhadamente no jogo entre texto verbal e não-verbal.

Diante disso, pode ser possível relacionar o texto e a imagem à função operacional que cumprem ao estarem presentes em determinado formato, e a partir de então,

55 Trata-se da pesquisa intitulada “Ideologia e comunicação de massa: sobre a constituição do

discurso burguês na imprensa semanal”. Verón analisa as capas de revistas argentinas consideradas por ele como “burguesas” e “populares”, na cobertura que realizaram sobre um atentado político que levou à morte o sindicalista peronista Rosendo Garcia. O fato deve grande repercussão na Argentina. O trabalho faz parte da obra “Fragmentos de um tecido”, publicado pela Editora Unisinos em 2004.

identificar operações discursivas que são constantes e sistemáticas dentro dos mais diversos enunciados que abordam o CE.

4.3 VTS: CELEBRIDADES, BRASILIDADES E