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G LOBO : DISCURSOS FORA DA TELA

3.1 MÍDIA E TEORIA SISTÊMICA

TRATA-SE AQUI DE ENTENDER as intervenções das mídias nas sociedades contemporâneas

pelo viés da teoria dos sistemas, em especial, aquela desenvolvida pelo sociólogo alemão Niklas Luhmann, com o objetivo de compreender a construção de realidades através da atuação da mídia na era moderna. A teoria luhmanniana é o nosso fio condutor, mas não o único farol a iluminar nossas reflexões. Outros autores participam desse debate, auxiliando-nos, para além da relação mídias e teoria sistêmica, numa definição reflexiva sobre o conceito de midiatização.

Poucos estudiosos divergem sobre o que as mídias representam nos dias de hoje: um mecanismo-chave de produção de sentidos sociais. Assim sendo, a análise sobre seus modos de funcionamento torna-se fundamental para a compreensão de como o indivíduo moderno dá sentido ao próprio mundo e tece sua teia cultural. A importância que os processos midiáticos26 possuem nas engrenagens sociais é, antes de qualquer

coisa, um fenômeno da era moderna. Compreender a natureza da modernidade ajuda sobremaneira na compreensão sobre o papel que as mídias exercem contemporaneamente na sociedade, entendendo modernidade como tipo de organização social que emergiu na Europa a partir do século XVII e que, mais tarde, tornou-se um fenômeno quase mundial. Trata-se de um marco histórico em que a humanidade passa de uma sociedade tradicional, alicerçada na fé e na tradição, para uma sociedade regida pela racionalidade.

A secularização, fenômeno que esvazia o poder das instituições religiosas, marca esse processo de ascensão da razão como um novo caminho de oferta de sentido do mundo aos indivíduos. A valorização da razão abre portas para uma constante

26 Compreendendo processos midiáticos tal qual Gomes (2004, p. 17) define: “Conjunto de práticas

comunicacionais pertencentes ao campo das mídias, que operam, segundo diferentes linguagens, por meio de dispositivos como jornal, televisão, rádio, fotografia, publicidade, revista, produção editorial,

possibilidade de revisão do olhar do homem sobre o mundo, garantida pela prática social reflexiva. Segundo Giddens (1991, p. 45), no contexto moderno a reflexividade assume um caráter de feições específicas: “Ela é introduzida na própria base do sistema, de forma que o pensamento e a ação estão constantemente refratados entre si”.

A ascensão da reflexividade, isto é, a monitoração reflexiva da ação, não está relacionada a um desaparecimento da tradição. A diferença é que esta última vai ocupar um lugar bem menos significativo na sociedade, pois acaba sendo, de certo modo, “atropelada” pelas próprias ações reflexivas dos indivíduos. Diante da reflexividade, a tradição passa a ser ressignificada em um ritmo infinitamente mais dinâmico do que antes. Esse dinamismo está relacionado à característica de constante aceleração de trocas apontada por Giddens em relação à modernidade. Tudo isso originará uma situação de radicalização da função reflexiva:

A reflexividade da vida social moderna consiste no fato de que as práticas sociais são constantemente examinadas e reformadas à luz de informação renovada sobre estas próprias práticas, alterando assim constitutivamente seu caráter. (GIDDENS, 1991, p. 45).

Toda essa análise é levantada sem que Giddens cite diretamente a atuação das mídias. O intenso ritmo reflexivo o leva a propor uma forte influência da sociologia e, com menor relevância, da psicologia, nos dias de hoje. Para nós, entretanto, o mais relevante é que a reflexividade moderna se caracteriza, independente da ciência que a direcione, em um mecanismo de constituição de sentido na sociedade. O próprio Giddens exemplifica utilizando duas instâncias-chave da sociedade. Segundo ele, o casamento e a família não seriam o que são hoje, se não fossem inteiramente “sociologizados” e “psicologizados”. Ele explica:

Qualquer pessoa num país ocidental que decide se casar hoje em dia, por exemplo, sabe que a taxa de divórcios é alta (e pode também, embora de maneira imperfeita ou parcial, conhecer um pouco mais sobre a demografia do casamento e da família). O conhecimento da alta taxa de divórcios pode afetar a própria decisão de se casar. (...) A consciência

dos níveis de divórcio, além disso, é normalmente muito mais do que simplesmente a consciência de um fato bruto. Ele é teorizado pelo agente leigo de maneiras impregnadas pelo pensamento sociológico. (GIDDENS, 1991, p. 49).

Diferente das sociedades pré-modernas, o indivíduo leigo tem hoje facilmente a condição da escrita e de outras formas de comunicação mais desenvolvidas do ponto de vista tecnológico. A partir daqui pode-se compreender melhor a relação que propomos existir entre mídia e reflexividade. Se a condição de reflexividade é uma forte característica da era contemporânea, o contexto midiático na forma como se desenha hoje é um elemento estratégico para que ela aconteça, visto que é através dele que se realizam relevantes mediações sociais de conhecimento.

Tomando emprestado o exemplo destacado por Giddens, todas essas informações sobre os casamentos serão, modo geral, acessadas através dos meios de comunicação. Sendo que essa perspectiva não resume a atuação das mídias a um papel meramente instrumental, de elo de ligação entre indivíduos e determinadas idéias. O que defendemos é que a condição reflexiva da sociedade e todas as suas conseqüências se materializam não somente por meio da mídia, mas principalmente com a mídias, isto é, sob a égide de operações intrínsecas ao sistema midiático.

Tais operações permitem que a mídia inaugure novas formas de interação social. Antes de sua chegada, os indivíduos se relacionavam face a face, isto é, mantinham relações que implicavam um fluxo de ações e expressões, perdas e ganhos, direitos e obrigações que corriam nos dois sentidos. Uma reciprocidade que não necessariamente desaguava em igualdade, mas que pelo menos garantia relações mais simétricas e, com certeza mais “palpáveis” (ou menos virtuais).

Com a mídia, segundo Thompson (1995), esse quadro ganha a variável que ele denomina interação quase mediada. Os indivíduos passam a ter acesso a um “conhecimento não local”, o que vai implicar um contínuo entrelaçamento de diferentes

formas de experiências. A produção de sentidos no interior da engrenagem social acontece em um contexto bem mais largo, onde um maior número de informações, valores e orientações são capazes de se fazer presentes em longínquas distâncias e entre as mais diferentes culturas. O pensamento de Bauman complementa essa perspectiva. Segundo o sociólogo da modernidade líquida,

(...) vivemos e agimos na companhia de uma multidão aparentemente infinda de outros seres humanos, vistos ou supostos, conhecidos ou desconhecidos, cuja vida e ações dependem do que fazemos e que influenciam por sua vez o que fazemos, o que podemos fazer e o que devemos fazer. (BAUMAN, 2006, p. 23).

Se compararmos os modos de viver de hoje com os de dois, três séculos atrás, podemos perceber que a forma do ser humano de adquirir experiências passou por uma significativa mudança. “Os indivíduos dependem mais e mais de experiências mediadas para informar e remodelar o próprio projeto do self” (Thompson, 1998, p. 202). Tal processo ocorre sobretudo com a participação das mídias, instituindo uma situação, como definiria Sodré (2000), de mediação social exacerbada. Para o autor, é esta situação que define o fenômeno da midiatização, demarcando um espaço próprio e relativamente autônomo de funcionamento da mídia em formas diversas de mediação.

Para Mata (1999, p. 83), o termo midiatização nasce da necessidade de “pensar a cultura articulada em torno de meios e tecnologias como uma nova matriz para a produção simbólica dotada de um estatuto próprio e complexo”. Rodrigues (s/d) é outro autor que defende a mídia enquanto campo autônomo no interior da sociedade. O que se observa, portanto, são definições sobre o conceito que o relacionam diretamente a um processo de autonomização das mídias frente às demais instâncias da sociedade. É por esse caminho que seguimos ao defender uma perspectiva sobre a mídia que a vê para além de um simples elo de ligação entre sistemas sociais.

Mas antes é importante compreender que a autonomização é na verdade um fenômeno histórico de larga escala, que não se limita às mídias. Ela está relacionada à

consolidação da era moderna e, em conseqüência, à característica da reflexividade há pouco tratada. Embora Luhmann não trabalhe nominalmente com a reflexividade, essa categoria teórica é importante para que possamos compreender a teoria sistêmica proposta pelo autor. Tal relevância se dá por entendermos a reflexividade como um fenômeno desencadeador da complexidade do mundo, isto é, quanto mais o homem reflete sobre seu mundo, mais possibilidade tem de tornar complexa a sua própria realidade – complexidade, nesse contexto, compreendida como o conjunto das múltiplas possibilidades de vivência e de ações que o mundo moderno abarca (Luhmann, 1991).

A essa altura, podemos então compreender a inter-relação entre complexidade e autonomização. A primeira inevitavelmente leva à segunda, concretizando-se na sub- divisão de variadas instâncias sociais. As sociedades modernas operam uma série de esferas sociais que aqui são representados por sistemas sociais. A existência dos sistemas configura-se justamente na seleção de algumas possibilidades e exclusão de outras (permanecendo as excluídas como oportunidades latentes).

O nível de complexidade de um sistema é medido pelo número de complexidades que ele comporta em si, o que é um indicador da capacidade do sistema de manter-se e, conseqüentemente, interagir com o meio (que é essencialmente mutável). Todo esse processo vai acontecer através do que Luhmann chama de diferenciação funcional, ou seja, cada vez que surge um sub-sistema, é estabelecida uma diferença entre ele e os demais.

A diferenciação funcional, para Luhmann, é uma espécie de conseqüência da complexidade detectada na sociedade moderna. Isso a faz diferenciar-se dos modelos societários anteriores. O modelo atual é marcado basicamente por funções diferenciadas e não por hierarquias. A complexidade, nessa perspectiva, traduz-se pela existência de sistemas funcionalmente diferenciados dependentes e independentes ao mesmo tempo (o que também significa sistemas abertos e fechados). O nascimento ou a consolidação de um sistema vai partir de uma diferença e não da afirmação de uma identidade. É a

diferença preliminar entre aquilo que é e aquilo que potencialmente pode vir a ser, a diferenciação marca a constituição de um sistema.

Constituído, o sistema tentará reduzir o número de complexidades que encontra no meio para poder autofortalecer-se. Essa distinção entre meio e sistema é marcada por fronteiras de sentido, compreendendo sentido como “forma de ordenamento das vivências humanas, permitindo a compreensão e redução da complexidade” (Neves, 1997, p.11). O sentido vai se localizar então no eixo principal para a formação e diferenciação dos sistemas sociais. É o desenvolvimento desse pensamento que permitirá que Luhmann situe a categoria da comunicação no centro dos processos relacionais entre sistemas.

Para tanto, inspira-se no biólogo chileno Humberto Maturana27 e tratará de

autopoiese – do grego auto (mesmo) e poien (produzir) –, que vem a ser a capacidade do sistema de elaborar a partir dele mesmo sua estrutura e os elementos que o compõem. Trata-se de uma forma de organização sistêmica em que sistemas produzem e substituem seus próprios componentes, em sucessiva articulação com o meio. É a partir daqui que a teoria de Luhmann se mostra mais relevante para esta pesquisa. Ela nos apóia a considerar a mídia enquanto sistema autônomo, e dentro disso, o televisivo enquanto sistema autônomo, tese essa que abordaremos com maior aprofundamento ainda neste capítulo.

O pensamento de Luhmann sobre sistemas, além de dar destaque à questão da mídia, encaixa-se bem com a estrutura funcional da televisão contemporânea, de acordo com as observações empíricas que realizamos. Diante disso, interessa-nos, com a ajuda dessa teoria, realizar os principais desafios desta pesquisa. O primeiro é compreender como se dá, no contexto da mídia TV a sua autonomia como sistema social. De que modo o televisivo constitui essa autonomia, ao mesmo tempo em que continuamente relaciona-

27 Humberto Maturana é Ph.D. em Biologia (Harvard, 1958). Como biólogo, seu interesse se orienta

para a compreensão do ser vivo e do funcionamento do sistema nervoso, e também para a extensão dessa compreensão ao âmbito social humano. É professor do Departamento de Biologia da Faculdade de Ciências da Universidade do Chile.

se com os demais sistemas? Eis um caminho potencialmente rico que pode nos dar pistas importantes sobre como a sociedade, nos dias de hoje, se permite representar por meio do sistema midiático, no caso pela televisão.

O segundo desafio, inter-relacionado com o primeiro, é explorar a possibilidade de identificar no funcionamento do sistema televisivo um reflexo da teoria sistêmica geral de Luhmann, focando a capacidade que a televisão tem hoje de agir de modo auto- referencial. Esta é uma tendência observada atualmente por muitos pesquisadores da área e que faz bastante sentido: trata-se da TV produzindo continuamente um discurso sobre si própria e, através dessa ação, criando e reforçando suas próprias lógicas. O que está em jogo é uma relação tensional entre sistema midiático e meio, com o objetivo de reduzir o nível de complexidade daquilo que lhe é externo, fortalecendo sua existência. Em resumo, é a possibilidade de ver a TV como sistema social autônomo.

A partir de então, identificar as operações que a TV realiza para se constituir autônoma, tendo por base uma relação de acoplamento estrutural com uma série de simbólicas contemporâneas (em especial aquelas relacionadas ao terceiro setor) que, trazidas para dentro do sistema televisivo, se concretizam no que denominamos aqui de tematização do social. Todo esse quadro, a nosso ver, diz respeito ao modo como esse social é submetido a um processo de midiatização, isto é, como ele é ressignificado a partir das lógicas do sistema televisivo. Novas realidades são construídas a respeito de temas como educação, infância, adolescência, entre outros. Diante disso, em que medida esse processo de reconfiguração dá conta de uma problemática de fundo a respeito do tema evocado ou segue outro rumo, buscando converter o objeto evocado a um perfil em sintonia com os interesses do sistema televisivo?