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CAPITULO 4 – DADOS RELACIONADOS ÀS RELAÇÕES DE PODER (RE) CONSTRUIDAS NO

4.2 Autoridade hierárquica

4.2.1 Autoridade e poder na avaliação

A escola, por outro lado, funciona dentro de uma lógica perversa dessa hierarquia vertical dominante e vai produzindo alguns procedimentos, alguns instrumentos, alguns processos mais formais de avaliação classificatória, que têm como eixo fundamental a produção de uma hierarquia dos alunos. Sobre esse aspecto, Esteban (1999, p. 88) aponta para a avaliação classificatória como uma das modalidades fundamentais na produção de hierarquia na esfera escolar:

Essa avaliação vai estar muito articulada a uma pedagogia, que alguns chamam da “pedagogia do exame”, em que todos os procedimentos pedagógicos vão estar atravessados por práticas que visam ao controle e à classificação. Dessa forma, nós vamos ter uma avaliação que, a partir de um padrão predefinido, vai criando mecanismos de verificação do ponto em que cada estudante ou que cada grupo e cada setor se encontram, de acordo com aquele padrão que é tomado como referência. [...] criando todo um conjunto de procedimentos, não só de avaliação, mas todo um conjunto de procedimentos pedagógicos que vão estar alimentando essa ideia da hierarquia — e que estão também sendo alimentados por essa hierarquia — e aí nós vamos estabelecendo algumas pautas que são, por princípio, excludentes. (ESTEBAN, 1999, p.88)

Isso mostra que o exercício do poder é também proveniente das atribuições que os professores têm na escola, que os autorizam ao exercício de uma autoridade formal, que faz com que ponha em funcionamento a avaliação, que tem, por princípio, a produção de uma hierarquia que classifica e seleciona os alunos, como se observa neste depoimento:

Os professores, através do sistema de provas, avaliam o aluno, o que significa manter a turma sob o jugo de testes, provas, trabalhos, através de classificações que, na maioria das vezes, parecem-nos injustas. (GF-11).

Nas escolas, a aplicação da avaliação envolve todo um ritual de conduta disciplinar com os alunos. Essa avaliação, atrelada à produção de saber, torna-se um elemento pertinente para o exercício do poder, como denota este relato:

Uma discussão na sala de aula ocorreu pelo fato de o professor aplicar uma prova e dar notas baixas para todo mundo, isso porque a turma havia reclamado, em sala, que não tinha entendido nada sobre o assunto dado por ele; por esse fato, a atitude do professor foi injusta (GF-5).

Dessa forma, a análise do poder se orienta para a dimensão dos operadores concretos de sujeição dos indivíduos. Um deles é a avaliação, em que se percebe a existência, consentida, de uma indiscreta e intensa perspicácia do poder. Foucault considera que “o poder, quando se exerce em seus mecanismos finos, não pode fazê-lo sem a formação, a organização e sem pôr em circulação um saber.” (1999, p.40)

Esses fatos revelam sutis e produtivos mecanismos de poder, em que se observa, na atitude do professor, na sala de aula, uma série de coerções disciplinares sobre os alunos, o que se constitui um elemento de sujeição e de dominação, como demonstram estas falas:

Os professores faltam muito, acumulam matéria e depois querem fazer prova (GF-12).

Nesses últimos dias, praticamente não houve aulas, mas quando se chega ao final da unidade, mesmo sem fazer reposição dos conteúdos, os professores fazem prova cobrando todos os assuntos que eles dizem terem dado. (GF- 12).

O professor de Física, quando entrou no colégio, quis ir logo passando prova sem se preocupar se nós sabíamos alguma coisa (GF-6).

As práticas de avaliação estão marcadas por tensão, na própria dinâmica da sala de aula, que cria um conjunto de procedimentos, não só de avaliação, mas de um conjunto de procedimentos que alimentam essa ideia da hierarquia, sem levar os alunos à aquisição do saber.

Como explica Barlow (2006, p.153), isso se manifesta de diferentes maneiras, “seja pela proclamação pública dos resultados (notas cifradas, classificação por ordem de mérito, “quadro de honra” etc.), seja por sinais distintivos (cruzes, fitas, etc.), seja, enfim, concedendo nas salas de aula “lugares de honra” para os melhores alunos”.

A escola não escapa de mecanismos hierárquicos de controle; continua a funcionar como uma máquina de ensinar, mas também de hierarquizar (FOUCAULT, 1977, p. 134). Dessa forma, as relações de poder e de hierarquia vivenciadas desdobram-se em lutas veladas, que tornam essas relações complexas e conflituosas, em que os indivíduos estão sempre em posição de exercer o poder.

4.3 Relações de poder e possibilidade de resistência

Na condução deste estudo, as reflexões neste tópico giram em torno das categorias de táticas e estratégias presentes na escola, que é entendida como um ambiente onde se formalizam as práticas sociais e que, por sua vez, sofre influências exteriores. Essas práticas devem ser analisadas enquanto operações, como manifestações de tática e de estratégia. As estratégias fazem parte da dominação ideológica e apontam para uma resistência; já as táticas apontam para a multiplicidade de práticas articulatórias e antagônicas que se caracterizam pela informalidade.

Foucault afirma que o poder atravessa todas as relações, num processo microfísico, marcando-os, fabricando-os, atingindo em cheio suas subjetividades e, a partir disso, sujeitando-os, sendo possível também afirmar que toda relação é relação de poder, mas não se limita a isso, porquanto há muito mais entranhado nas entrelinhas do cotidiano da escola, sinalizando que há um mundo de relações de afetos, interações e comunicações que marcam todos os que a compõem e que vivem nela.

No ambiente escolar, os estudantes buscam, o tempo todo, possibilidades de movimento e de expressão: levantam, caminham, sentam, ouvem, veem, falam, mesmo quando não são autorizados, e, até mesmo, saltam, gritam, pulam, correm, fogem, colam e reinventam as suas realidades, pensando escapar aos esquadrinhamentos que intencionam restringi-lo. De forma geral, eles desenvolvem um grau notável de habilidades para fugir da escola, de acordo com sua própria vontade. Virtualmente, eles fazem seu próprio dia, partindo daquilo que é oferecido pela escola.

Os alunos fogem da escola para livrarem-se da aula, ficam perambulando pelos corredores à procura de diversão. (GF-3)

Quando a professora fica de costas para a lousa, a maioria dos alunos, que se sentam no fundo, sai sem a permissão da professora. (GF-10).

A escola estava praticamente vazia, na sala havia poucos alunos, mesmo no horário da chamada, quando normalmente os alunos estão presentes. (GF- 12).

Essas são "táticas" articuladas dentro do cotidiano, assumidas pela criatividade dispersa; tática dos grupos ou dos indivíduos, tornando-se uma rede "antidisciplinar", que leva a escola a buscar mecanismos mais eficientes de "podar" esses corpos, regular seus movimentos e deixá-los aprisionados, através do disciplinamento adestrador, para que sejam reduzido a movimentos previsíveis, conformados, submissos.

Foucault traz subsídios para uma noção de poder, que tem como elemento central a resistência, que se apresenta como uma rede de forças em exercício no cotidiano. Do mesmo modo, sabendo que as relações de poder estão ao alcance de dominantes e dominados, nenhum interlocutor se subjuga completamente às forças que o atacam, porque ele detém a capacidade de resistir, fazendo com que o outro também seja confrontado pelo seu exercício de poder na escola.

O cotidiano da escola está marcado pela dinâmica das relações de poder; analisar esse fenômeno, na realidade situada na escola, não é tão simples. (GF-5).

Michel Foucault (1979) chama a nossa atenção justamente para o fato de as práticas sociais não se difundirem apenas verticalmente, impostas de cima para baixo, mas também horizontalmente, através de uma malha de relações sociais, inclusive as de poder, cujas estruturas sofrem mutações periódicas, para se adaptarem às novas circunstâncias sociais e históricas que, inevitavelmente, surgem.

O exercício do poder nada mais é do que um processo de lutas múltiplas e contínuas, como são descritas pelos próprios alunos, nos seus mais ínfimos detalhes: “... Manifestação no pátio da escola... /... abaixo-assinado para retirar uma professora, segundo mostra a fala a seguir:

Estudantes fizeram manifestação no pátio da escola. A manifestação foi para entregar o abaixo-assinado, a fim de tirar a professora de História da escola, que agia de forma a constranger os alunos em sala de aula. (GF-11)

Essa resistência é intensiva e extensiva a vários pontos da escola, e se não houver um lugar privilegiado para o seu acontecimento, pode ser no pátio ou em qualquer outro espaço, já que não existe um ponto único, nem resistência única, mas resistências, que estão dentro da escola, como revelam os relatos orais:

Os alunos se mobilizaram e fizeram protesto, no pátio, por não quererem aceitar qualquer tipo de imposição da direção da escola, que não quer reconhecer nossos direitos e por isso não respeita os alunos e nem escuta nossas reivindicações. (GF-07)

Houve o movimento dos alunos nesta escola, pedindo a mudança da direção da instituição. A indicação da diretora foi feita pelo deputado estadual Lomanto Júnior, que decidiu por apoiar de maneira irrestrita a permanência da diretora na escola, sem ela estar realizando um bom trabalho. (GF-08)

Durante a pesquisa, detectamos pontos e focos de resistência, disseminados no espaço da escola, provocando protestos, reivindicações e alguns tipos de mobilização. Entretanto, esses são pontos de resistência móveis, que percorrem os próprios indivíduos, que intensificam conjuntos heterogêneos de práticas, pontuais e, por vezes, inesperadas, que servem a diversas causas, inclusive contra injustiças, como apontado a seguir:

Aqui, nesta escola, os alunos reivindicam quando existe uma injustiça em relação a ele, isso pelo fato de conhecer seus direitos, não concordam que a entrada na escola dos alunos só seja permitida se estiverem uniformizados. (GF7)

Outro aspecto importante a registrar é que os alunos demonstram ser capazes de desenvolver astúcias e táticas contra as injustiças e o controle exercido, que permanece sendo a base dos conflitos na convivência na escola. Foucault (2004b, p.276) não concebe as relações de poder como um circuito fechado ou unidirecional. Ele considera que só são possíveis tais relações com o coeficiente de força que cada sujeito tem ao seu alcance, na interação com os outros, construindo sempre estratégias, realizando movimentos, compondo alianças, através de movimentos efetivos de exercício de poder. Uma das táticas que os alunos empregam para sair do isolamento é o grêmio estudantil, como relatado abaixo:

O grêmio estudantil, aqui na escola, capaz de pôr em funcionamento movimentos de participação de alunos, atuando diretamente na

desconstrução das relações hierárquicas de poder, através da aceitação da diversidade de opiniões e interesses dos segmentos de alunos. (GF-11) O grêmio estudantil, aqui na escola, manifesta-se contra qualquer injustiça cometida pelos diretores e pelos professores, daí porque existem direções de escolas que não aceitam o Grêmio como instituição, e sem argumentar fecham as portas da escola para seu funcionamento. (GF-11)

O grêmio estudantil constitui um meio de participação dos alunos na vida escolar. É um espaço de discussão, o que permite enxergá-lo como uma iniciativa dos alunos, com vistas a romper relações hierárquicas de poder na escola. O pano de fundo do grêmio estudantil é funcionar como instância de representação dos alunos, dentro da unidade escolar. O aluno relata que há escolas em que “os estudantes estão despertando uma consciência política da importância que um Grêmio tem dentro da escola".

Na escola, as entidades de representação são, certamente, a codificação estratégica desses pontos de resistência, que tornam possível que, potencialmente, vários alunos sejam detentores e destinatários do poder. Nos próximos relatos, os alunos sinalizam para a necessidade de um organismo que reagruparia as formas de resistência, oferecendo a essa uma unidade para a realização da chamada codificação estratégica de atividades de mobilização na escola.

Quando falamos do grêmio é porque acreditamos na importância de o estudante ter uma representação dentro da sua escola. De modo geral, os estudantes não são considerados pela direção, temos que estar na escola e também na rua, nos movimentos estudantis da cidade, onde se realizam passeatas e atividades de mobilização em escolas públicas. (GF-11)

Tivemos várias conquistas, na escola, que só foi possível através do grêmio, em reuniões com todos os segmentos para buscar melhoria na qualidade da merenda escolar e para as atividades esportivas e lúdicas, na quadra da escola, funcionarem durante todo o ano. (GF-11).

As bases de organização, que passaram a ser construídas dentro da escola, através de Grêmios de Estudantes de Salvador, exercem as relações de poder, mas não de forma sobredeterminada. Resiste-se ao poder e ao seu exercício capilarizado da Secretaria de Educação, ao conduzir os lugares e os instrumentos de luta; unir-se em protesto contra aquilo

que se reconhece como intolerável, como por exemplo, o fato que motivou o protesto,

organizado pelos grêmios, contra o encerramento do Agrupamento de Escolas, juntou dezenas de alunos, pais e responsáveis junto aos portões do estabelecimento escolar.

Essas formas de resistência que, episodicamente, emergem na escola, servem para operar deslocamentos em que a resistência é coextensiva e absolutamente inventiva. Na escola, as movimentações dos alunos não podem deixar de ser levadas em consideração, já que interagem com a institucionalidade, buscando assegurar algum espaço autônomo para articulação da própria identidade. Estratégia ou identidade, ação e racionalidade estratégica ou ação e racionalidade expressiva, eis, portanto, as dimensões dessas ações operantes e atuais, no espaço escolar, onde se circunscreve, concretamente, uma situação estratégica, ou ações estratégicas.

As estratégias compõem um conjunto de situações, que surgem a cada momento, e que só podem ser compreendidas de forma processual. A estratégia é entendida como um curso de ação, cujo processo envolve modificações e permanências nas formas de relações de poder. Foucault (1995, p. 234) sugere uma nova economia das relações de poder, mais empírica, mais diretamente relacionada à nossa situação presente e que implica usar as formas de resistência contra as diferentes formas de poder, como um ponto de partida.

Nas escolas, detectamos resistências e lutas específicas dos professores contra a forma particular de poder, de coerção, de controle que se exerce sobre eles. Através de medidas educativas, impostas às escolas e aos professores, o tom do protesto é rotulado como reações corporativas estabelecidas através de forma de luta, que apresenta diversos métodos (greve e contestação), como descrito a seguir:

Os professores desta escola foram à Praça da Piedade protestar, e no conjunto de queixas estão salários, precariedade das instalações físicas dos estabelecimentos e da falta de material de ensino. (GF-12)

Em outros termos, os professores protestam contra o regime de poder através de vários pontos de ataque, disseminados nos mesmos lugares onde ele se exerce, no cotidiano da escola. Esse protesto não é apenas em direção ao Estado ou ao grupo que está no poder, mas ao próprio poder, tal como se exerce, independente de o seu dirigente ser o governo estadual.

Na escola, o movimento, seja ativo ou passivo, acontece a partir mesmo do lugar onde os agentes escolares se encontram, pois ali funciona uma pluralidade do poder. Entretanto, as lutas, em torno dos problemas enfrentados pela escola, são plenamente sociais, pelo fato de estarem voltadas também "para fora", estabelecendo novos canais de visibilidade na sociedade da qual fazem parte:

A manifestação na Praça da Piedade contou com a presença dos professores, mas também dos alunos dos diversos colégios da rede estadual de ensino de Salvador, para protestar sobre os problemas das escolas na rua (GF-12).

Pais de aluno também estavam presentes e mobilizados na manifestação da piedade, para impedir que as aulas fossem paralisadas por conta da falta de condições de infra-estrutura (GF-12)

No interior da escola e fora dela, essas lutas reivindicatórias apontam potencialidades da ação coletiva constituída pela ação conjunta de professores, alunos, funcionários e pais de alunos, através do jogo mútuo das práticas coletivas. Essas lutas são fundadas numa dimensão estratégica da ação coletiva, que não é apenas corporativa, como faz crer a opinião pública, que rotula a dimensão política da contestação dos professores, com interesses corporativos, para que seus direitos se façam valer.

As formas de luta que ocorrem na escola são demarcadoras do grau de intensidade de determinados protestos e revoltas, comumente percebidas em termos de negação: resistir quer, simplesmente, dizer não. Na analítica foucaultiana, a resistência segue um processo de criação, apenas existem por estarem onde está o poder. Foucault reforça que a efetividade da resistência ocorre porque ela funciona em todos os níveis do poder, atingindo-o em sua operação e funcionamento, e a sua eficácia se encontra, justamente, por residir no mesmo terreno das relações de poder. Nesse caso, temos que atentar para o que há de específico na forma estratégica, que recobre os processos de luta, construídos a partir de situações dadas, em termos de resistências imediatas que não obedecem a um calendário hierárquico definidor de sua posição, já que é potencialmente presente e infinitamente aberta.

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