• Nenhum resultado encontrado

Autorretrato fotográfico: entre a identidade e a encenação

Como um subgênero do retrato, a produção do autorretrato adota as mesmas concepções e os elementos do próprio retrato, seja na pintura ou na fotografia. Para Dubois (1993), o processo de produção do autorretrato por meio da pintura era um processo restrito, pois ao mesmo tempo em que o artista pintava, ele também se retratava. Sendo assim, os movimentos do corpo eram limitados.

O sujeito poderá limitar tanto quanto quiser os movimentos de seu corpo, sempre haverá algo (seu olho, seu braço) que escapará a essa fixidez se ele quiser que a inscrição se constitua. A mão que desenha, em particular, jamais poderá desenhar-se se desenhando: para isso, ela deveria parar, para imobilizar sua sombra, mas, ao mesmo tempo, também deteria o próprio ato do desenho. Ou, por mais que corra atrás de si mesma, o mais depressa possível, jamais conseguiria se alcançar (DUBOIS, 1993, p. 124).

Ainda de acordo com Dubois (1993), a solução para o problema da autorrepresentação estaria numa forma de representação instantânea. A fotografia, então, viria como uma solução para esta limitação dos processos pictóricos. Além de que os autorretratos fotográficos seriam uma maneira mais acessível para a autorrepresentação. Qualquer pessoa que tivesse conhecimento técnico sobre fotografia poderia produzir um autorretrato.

35

Em sua dissertação de mestrado, Mariana Botti, (2005) afirmou que o advento da fotografia possibilitou o crescimento da produção dos autorretratos, já que não se fazia mais necessário um fotógrafo ou artista para a produção da imagem. A autora acrescentou que, no contexto da criação da fotografia, no século XIX, a sociedade passou por grandes mudanças, que provocou alterações na maneira como o indivíduo vê a si mesmo, criando novas relações de autoconhecimento e construção de identidade. Sendo assim, a fotografia passou a ser um importante aliado que possibilitou que o sujeito moderno tivesse acesso a uma representação de si mesmo, como uma maneira de atestar sua importância na sociedade por meio da produção mecânica de sua imagem fotográfica.

Figura 12 – Hippolyte Bayard, O Afogado .1840. Autorretrato fotográfico. Fonte: <https://bit.ly/2LVMLO2>

Em outubro de 1840, Hippolyte Bayard (1801-1887), na França, realizou um dos primeiros autorretratos fotográficos da história intitulado O Afogado (Figura 12), no qual Bayard aparece como se estivesse morto. Não somente um símbolo do começo de uma nova forma de representação, este autorretrato representa o seu objeto (o próprio artista) numa situação fantasiosa, imaginária. Segundo Flores (2005), a fotografia que era até então, entendida como uma expressão mecânica e objetiva, mostrava aqui sua capacidade de criação de uma cena ficcional, assim como seu

36

caráter subjetivo por meio do autorretrato, o que ironiza a credibilidade da imagem fotográfica como reprodução do real. A autora afirma que a fotografia, na época, funcionava como um testemunho da realidade. O afogado demonstra que a imagem fotográfica não é somente a representação de algo que aconteceu, mas também a possibilidade de algo que foi idealizado e criado; a autora refere-se à fotografia como um possível “antecedente visionário da performance e do autorretrato pós-moderno”. Botti (2005) destaca o autorretrato fotográfico como uma ferramenta para a representação feminina, sendo a fotografia um território muito mais flexível para a participação de mulheres. Os primeiros autorretratos femininos surgiram no fim do século XIX, e essas produções, segundo a autora, já trabalhavam com questões de identidade de gênero, antecipando tendências que posteriormente seriam exploradas pela pintura.

Apesar da democratização e das pretensões do sujeito moderno utilizar a produção de um autorretrato fotográfico para uma representação mais fiel, além de atestar uma importância social (por meio da imagem fotográfica) idealizando uma construção identitária pelas definições de características fisionômicas, Fabris (2004) destaca que essa formação de uma identidade por meio da imagem fotográfica é frágil, já que por meio da fotografia é possível que o retratado simule e crie cenários e encenações:

A aparência, desse modo deixa de estar conotada à ideia de algo que se mostra de imediato para assumir o significado de ilusão, de disfarce, de simulação. O sujeito nada pode nesse processo: o que ele tem a exibir é produto de um aparato que o transforma à sua revelia, conferindo-lhe uma identidade bem frágil, fruto de uma casualidade que continuará a imprimir alterações naquela que é considerada a marca distintiva de todo indivíduo: sua esfinge (...) (FABRIS, 2004, p.73).

Diferentemente do sujeito da Era Moderna, segundo Canton (2004), o sujeito contemporâneo não tem a pretensão de criar uma identidade definida, pois compreende que há uma noção de que as identidades são flexíveis, e isso reflete na maneira em que o indivíduo constrói seu autorretrato, e nessa autorrepresentação é possível identificar elementos que não dizem respeito somente à realidade do artista, mas do corpo como representação do outro:

Ao contrário, se ela se mantém como uma forma de reivindicar identidade, seu foco está na produção de um estranhamento, uma sensação de incomodo –

37 aquela reminiscente à sensação de se olhar no espelho e não se reconhecer. Essas emoções estão ligadas a situação do ser humano contemporâneo, inserido numa sociedade de informação eletrônica e virtual, pressionado pela mídia, sufocado pelas imposições velozes de tempo e espaço que se configuram na realidade cotidianas da cidade (CANTON, 2004, p. 68).

O autorretrato se desenvolveu no campo da fotografia, tornando-se uma ferramenta muito utilizada por artistas contemporâneos. O americano Andy Warhol (1928-1987), por exemplo, teve grande importância como artista plástico e cineasta, tornando-se um dos maiores representantes da Pop Art. Ele utilizou o autorretrato como exercício e elemento importante para o seu trabalho, fazendo uso de técnicas como a pintura, a serigrafia e a fotografia.

Outra artista que se destaca na contemporaneidade por seu trabalho com autorretratos é a americana Cindy Sherman (Figura 13). Para a criação de seus autorretratos, Sherman utiliza recursos como maquiagem, perucas, acessórios, e até próteses. Um de seus projetos mais conhecidos, “Untitled Film Stills” mostra uma série de autorretratos produzidos durante a década de 1970 nos Estados Unidos. Nessa série, Cindy Sherman inspirou-se nos filmes Hollywoodianos e, também, em filmes “tipo B”, representando papeis femininos.

Figura 13 – Cindy Sherman, Untitled Film Still #21. 1978. Autorretrato fotográfico. Fonte: <https://mo.ma/2JbB6wT>

Essa série de fotografias é uma reflexão crítica sobre o papel da mulher nas produções cinematográficas e de como suas representações são estereotipadas.

38

Nesses autorretratos, Cindy Sherman assume papeis diversos, representando de palhaços às atrizes de cinema. Fabris os define como “falsos autorretratos” já que caracterizavam a criação de um mundo próprio para as fotografias. Nessas imagens Sherman se despersonalizava. A encenação tem um papel que caracteriza múltiplas construções de identidades. (FABRIS, 1991, p. 60).

A produção de um autorretrato estaria inicialmente ligada ao reconhecimento de um indivíduo, tendo o rosto como principal elemento. O subgênero autorretrato ainda é presente na atualidade em produções artísticas, principalmente no campo da fotografia. Annateresa Fabris (2004) afirmou que o conceito de autorretrato na atualidade é muito mais amplo, chegando ao que a autora chama de autorretrato acéfalo, uma representação de si, mas que o artista não mostra seu rosto. Fabris mostra que o conceito de identidade do indivíduo contemporâneo se ampliou, e a dependência fisionômica na caracterização do retrato e do autorretrato passou para um segundo plano.

O autorretrato tem sido produzido por artistas diversos desde os tempos antigos, e encontra na fotografia um terreno fértil. Com o desenvolvimento da tecnologia, a fotografia passa a ser também digital, popularizando-se ainda mais e tornando-se cada vez mais portátil. A versatilidade e a leveza dos aparatos de comunicação, a disponibilidade das câmeras, celulares, computadores e tablets possibilitam um caráter mais instantâneo às produções fotográficas transformando a produção de autorretratos em um fenômeno muito comum, conhecido como selfies. Cada fotógrafo encontra motivação para a produção de seus autorretratos, seja no contexto histórico e social, seja no próprio exercício de sua técnica, no trabalho do seu autoconhecimento como artista ou, ainda, encara como uma forma de registrar sua própria imagem.

O registro visual documenta, por outro lado, a própria atitude do fotógrafo diante da realidade; seu estado de espírito e sua ideologia acabam transparecendo em suas imagens. (KOSSOY, 2001, p.42).

39 2. FOTOPINTURA

Os procedimentos de intervenção na fotografia estão presentes desde as origens das primeiras técnicas fotográficas. O grande fator que exclui esses procedimentos da História da Fotografia é que, por se tratarem de procedimentos artesanais, automaticamente se opõem ao caráter mecânico da fotografia característico do pensamento modernista. De acordo com Flores (2005, p.180) “o modo convencional de pensar exclui a possibilidade de considerar a mistura de técnicas”. A autora afirmou que somente com as vanguardas são ampliados os conceitos sobre os procedimentos híbridos da utilização de técnicas de pintura e gravura na intervenção da imagem fotográfica.

Diante das interferências na imagem fotográfica por meio da pintura, entende- se que haja uma imagem que resulta da evocação de dois meios diferentes: a pintura e a fotografia, sendo uma imagem essencialmente híbrida. O conceito de hibridismo é constante em obras de arte contemporânea. Para a palavra hibridismo encontram- se os significados: Que provém de espécies diferentes / Que se afasta das leis naturais / Composto de elementos provenientes de diferentes línguas, (falando-se de

um vocábulo). (Lat. hybrida) (Disponível em:

https://pt.thefreedictionary.com/h%C3%ADbrida)

Em seu livro Arte Híbrida: Entre o pictórico e o fotográfico (2008), Selma Machado Simão explicou que o desenvolvimento tecnológico influenciou, de maneira direta, a mudança de valores no campo das artes e propiciou “novas descobertas nos processos culturais” abordando as ideias de Charles Narloch (2008) o termo hibridismo pode ser analisado em três perspectivas: estética, científica e sociológica. Tratando-se da fotopintura e outras técnicas de intervenção artística na imagem fotográfica, estas podem ser analisadas pela perspectiva do hibridismo estético que tem “enfoque na interdisciplinaridade de meios e linguagens artísticas...” (Simão, 2008, p.10). A arte híbrida é o resultado de experimentações e do desenvolvimento e utilização de múltiplas expressões artísticas.

Consiste na produção de arte concretizada por meio das mais variadas técnicas, materiais e suportes, ligando linguagens artísticas e caracterizada pelo não pertencimento a uma única vertente ou categoria (SIMÃO, 2008, p.10).

40

Simão (2008, p. 10) explica que nas obras consideradas híbridas os “espaços de criações se invadem e são invadidos, sem perder sua potencialidade original”. O estudo de Simão (2008) expõe processos técnicos da fotografia e da pintura em suas funções e circunstâncias originais, verificando possíveis pontos de onde os dois meios se confrontam ou se cruzam. Ao examinar o hibridismo que se estabelece entre a pintura e a fotografia, há uma dinâmica entre dois processos de natureza diferentes: o processo fotográfico, um registro analisado essencialmente como mecânico, de cunho documental e o processo da pintura que é desenvolvido por meio de utensílios como pincéis, tintas, pigmentos, que denotam uma essência criadora e imagética. Dessa maneira, o fator documental da fotografia é confrontado com a interferência subjetiva da pintura.

Na experiência realizada, a imagem hibridizada pela pintura e pela fotografia apresentou uma natureza perturbadora, em que a parte fotográfica exclui sua reprodução essencial (a gênese da técnica do referencial sempre certo da realidade) para explorar uma linguagem que se contrapõe ao próprio meio (SIMÃO, 2008, p. 14).

Documentos relacionados