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Contextualizando a produção das obras

Telma Saraiva nasceu em 1929, na cidade do Crato, (interior do Ceará). Em entrevista concedida a Raquel Arrares (2012)*, Saraiva afirma que para compreender sua trajetória, e a produção de suas imagens, é necessário conhecer a história de seu pai, e ressalta a importância do mesmo na formação de sua carreira. Autodidata, Júlio Saraiva era fotógrafo, urbanista e inventor, e tornou-se uma figura pública de prestígio na cidade do Crato. Seu primeiro emprego como ourives surgiu por influência do pai. Após a morte do pai, este assumiu uma oficina aos 10 anos de idade. Por esse motivo, Júlio Saraiva não pode concluir seus estudos e passou a dedicar-se ao ofício. Quase uma década depois, a fotografia entra na vida de Júlio por meio de um senhor, chamado Pedro Maia, o primeiro a trazer a fotografia para o Crato. O encantamento pela técnica, e a possibilidade de registrar a imagem de uma pessoa em um papel, levou Júlio a construir sua própria câmera fotográfica.

Júlio Saraiva tornou-se fotógrafo, sendo o primeiro fotógrafo do Crato a ter um estúdio com endereço fixo. Desenvolveu, por conta própria, diversos suportes e aparatos de iluminação para auxiliar na produção de suas fotografias. A produção de retratos em seu estúdio tinha como base outra paixão: o cinema.

*Entrevista publicada na edição #5, de fevereiro de 2012 da Cariri Revista. Disponível em: http://caririrevista.com.br/telma-saraiva-sob-o-signo-da-fantasia/.

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A forte influência da cultura americana no Brasil, nas décadas de 1940 e 1950, provocava nos fotógrafos o desejo de explorar materiais, como revistas, na busca por referências para a produção de retratos fotográficos. De acordo com Riedl (2002, p. 128), “os fotógrafos procuravam as suas inspirações em matérias sobre o cinema e o ‘mundo moderno’, marcados pela influência comercial norte-americana, a chegada de cartazes de filmes de cinema e a divulgação da propaganda através de brochuras e também de cartões-postais”.

Por influência do pai, Telma Saraiva, desde a infância, começou a frequentar as salas de cinema da cidade do Crato com a intenção de melhorar sua leitura, já que os filmes, em sua grande maioria, eram legendados e isso poderia ajudá-la na prática de uma leitura mais rápida. De acordo com Telma Saraiva (2012) em entrevista concedida a Raquel Arrares, as idas ao cinema eram comuns em sua rotina e aconteciam quase que diariamente.

As telas das salas de cinema funcionavam como janelas para um mundo novo para a artista, já que os filmes norte-americanos traziam características de consumo, lazer e moda difundindo aspectos culturais da sociedade americana para quem os assistia. Maravilhada e envolvida pelo glamour das estrelas de cinema, a menina do interior do Ceará, começa a importar referenciais de comportamento, moda e beleza de atrizes como Elizabeth Taylor, Hedy Lamarr e Rita Hayworth, assim como de seus personagens.

Na publicidade, a crescente divulgação de retratos das atrizes americanas, pelos estúdios cinematográficos, tornou os rostos dessas atrizes associados a produtos que eram principalmente ligados à área da moda e beleza, como maquiagens, sabonetes, roupas e acessórios. É na adolescência que Telma Saraiva, juntamente com a mãe, encontrou em uma feira livre, caixas de sabonete da marca Lever (Figura 18): cada caixa continha três pequenos retratos coloridos de atrizes hollywoodianas.

Os pequenos retratos causaram em Telma Saraiva o questionamento sobre como eram produzidas essas imagens, já que na época os processos fotográficos só permitiam a revelação de fotografias preto e branco. A curiosidade incita em Telma Saraiva o desejo de explorar meios de colorir fotografias. Suas primeiras tentativas de

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pintar fotografias surgiram de várias experimentações quando raspava seus lápis de cor na tentativa de transforma-los em tinta.

Figura 18 – Estampa Lever Astros do Cinema (1940). Fonte: <https://bit.ly/2JhKrz2>

Na década de 1940, Telma Saraiva adquiriu um gosto muito comum às jovens da época: o de colecionar as chamadas “revistas de fãs”, em especial a revista A Cena Muda, Figuras 19(a) e 19(b), que esteve em circulação entre os anos de 1921 a 1955, publicado pela Companhia Editora Americana. As revistas de fãs eram comuns nos Estados Unidos, a exemplo da revista Photoplay. Essas revistas funcionavam como veículo de divulgação do cinema americano, como uma ponte entre os espectadores e as estrelas do cinema, divulgando informações sobre, moda, beleza, comportamento, além de entrevistas e pôsteres de estrelas de cinema, bem como de seus personagens. Uma das sessões da revista A Cena Muda chamava-se “Clube do Fã”, e oferecia aos assinantes pôsteres com retratos de estrelas de cinema, que eram especialmente colecionados e colocados em álbuns por Telma Saraiva.

Certo dia, folheando uma das publicações da revista A Cena Muda, Telma Saraiva encontrou um anúncio de uma tinta americana específica para a pintura de fotografias. Saraiva então resolveu encomendá-la e, ao recebê-la, começou a usar a tinta em fotografias de suas amigas, feitas no estúdio de seu pai. Aos 16 anos, Saraiva

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transformava fotografias monocromáticas em imagens coloridas, prática que lhe trouxe prestígio e destaque entre suas amigas e professores da sua escola.

Figura 19(a) – Revista A Cena Muda (1947) Fonte: <https://bit.ly/2xH5k5A>

Figura 19(b) – Revista A Cena Muda (1952) Fonte: <https://bit.ly/2xH5k5A>

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Com esforço, e apesar das limitações de materiais na região Cariri, Saraiva se especializou na colorização e retoque de fotografias por meio da técnica de pintura, desenvolvendo a técnica da fotopintura e a executando no estúdio fotográfico, juntamente a seu pai. A manipulação das imagens seguia o sentido de colorização ou de embelezamento, adequando-se aos padrões estéticos da época. Saraiva preocupava-se em retocá-las para que não aparecessem rugas e marcas de expressão nas figuras fotografadas. Para Saraiva “não interessava uma suposta espontaneidade ou autenticidade do retrato mas, sim, o acabamento harmônico da iluminação, a pose equilibrada, o enquadramento soberano e a elegância dos modelos retratados” (RIEDL, 2002, p.129).

Telma Saraiva casou-se nos anos 1950 com o fotógrafo Edilson Rocha e, juntamente com seu marido, adquiriram um completo conjunto de equipamentos fotográficos. Já exercendo o ofício da fotopintura, Saraiva também assumiu a função de fotógrafa. No estúdio do casal, o Estúdio Saraiva, eram produzidas fotografias e fotopinturas de pessoas de todas as faixas etárias, e este se tornou referência não só no Crato, mas em outras cidades da região do Cariri. De acordo com Riedl (2002, p.129), o estúdio era “procurado pelas classes média e alta da cidade”. Tendo como principal referência, imagens propagadas e relacionadas ao cinema americano. Suas fotografias, em seu estúdio, imitavam poses e cenários que remetiam ao glamour de Hollywood, característica muito apreciada pelas pessoas do Crato. O “estúdio fotográfico Saraiva chegou a inovar e, de certo modo, influenciou nos costumes da cidade, seguindo um padrão que na época era considerado metropolitano, mundano e cosmopolita ” (RIEDL, 2002, p.128).

As produções realizadas no Estúdio Saraiva, se comparadas às de outros estúdios da região, tinham valor consideravelmente elevado, mas mesmo assim eram normalmente aceitos por sua clientela. A grande diferença de preço, em relação à concorrência, não preocupava Telma Saraiva que distinguia a produção de suas fotografias daquelas de fotógrafos de Lambe-lambe e considerava que suas fotopinturas não seguiam a mesma lógica da produção de outros profissionais da área. Segundo Riedl, Saraiva.

Considera que suas foto-pinturas, em que ela própria realiza todos os acabamentos, são mais refinadas e mais bem elaboradas em comparação com as dos outros; no entanto, observa-se que estas não apresentam a ingenuidade

57 pictórica e o aspecto lúdico das telas de Juazeiro do Norte, cujo charme rústico é por ela ignorado (RIEDL, 2002, p.128).

Paralelamente ao trabalho comercial, como fotógrafa e fotopintora, exercido por Telma no Estúdio Saraiva, foram produzidos muitos autorretratos, dos quais cerca de 26 deles estão catalogados. Não se sabe ao certo em que ano Telma Saraiva começou a produzir seus autorretratos, mas constatou-se que provavelmente tenha sido entre as décadas de 1940 e 1950. Sem nenhuma intenção de comercializá-los, seu trabalho não foi idealizado com a intenção de produção em série ou de levá-los a uma exposição.

As imagens, fotopinturas de autorretrato, que até recentemente nunca haviam sido expostas, até serem descobertas pelo fotógrafo alemão Titus Riedl, promovendo a publicação destas em exposições no Centro Cultural Dragão do Mar, na cidade de Fortaleza, e na Pinacoteca do Estado de São Paulo, no ano de 2006. Dois anos depois seu trabalho foi consagrado com a exposição intitulada Telma Saraiva - A procura de um Mito na Galeria Estação no ano de 2008, onde seus autorretratos foram associados com fotografias da atriz Marilyn Monroe, e contou com dois autorretratos de Saraiva (1929-2015) produzidos exclusivamente para a exposição.

A inspiração e a reprodução dos trejeitos das estrelas de cinema, assim como os referenciais de moda e beleza, acompanharam Telma Saraiva durante toda sua infância, mas é na juventude que ela desenvolve o desejo de representar à sua imagem e semelhança, partindo de referenciais de imagens colecionadas de pôsteres, capas de revistas e embalagens de sabonetes.

Saraiva participou ativamente de todas as etapas da construção de seus autorretratos. Desde a preparação para a revelação até aos acabamentos finais, diferenciando-se de outros artistas como o Mestre Júlio Santos, já que não começava com a utilização da pintura, mas a partir da construção do projeto de cada fotografia. Em entrevista concedida a Raquel Arrares (2012), Telma Saraiva exalta o prazer de ser, ela mesma, a responsável por todos os processos técnicos de suas produções “o que eu gostava era de fazer! Era bater, era revelar, era copiar, era retocar, era pintar! Dizer que foi feito por mim! ”.

Tratando os elementos maquiagem e figurino como fundamentais para as transformações e a teatralização de sua autoimagem, Telma Saraiva se maquiava

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buscando assemelhar o seu rosto aos mesmos tons e cores apresentados nos retratos das atrizes de cinema. Devido aos limites tecnológicos da época, as maquiagens não tinham a mesma variedade e qualidade na cobertura de marcas e imperfeições como as de hoje. Porém, isso não a incomodava, pois era possível simular a maquiagem por meio do retoque das imagens. Os figurinos e acessórios utilizados eram produzidos por Saraiva, improvisando arranjos com alfinetes, exclusivamente para as sessões fotográficas.

Como parte de um processo artístico completamente autônomo, após se maquiar e produzir figurinos, Telma Saraiva fotografava a si mesma, inserindo em suas fotografias, preto e branco, conceitos técnicos do campo fotográfico como enquadramento, iluminação e pose, diferenciando seu trabalho de outros fotopintores da época que normalmente recebiam fotografias 3x4, por intermédio de um “vendedor”, feitas por fotógrafos ambulantes. Ao colocar-se diante das câmeras, Saraiva fazia uso de um espelho ao lado da câmera, para ver a si mesma, procurando o melhor ângulo, possibilitando executar as poses já idealizadas previamente.

De acordo com Telma Saraiva (2012) as intervenções de ordem estética se iniciaram muito antes da utilização da pintura, mas que eram feitas diretamente nos negativos, e explicou que, “com um grafite de ponta fininha eu homogeneizava a pele, dava reflexos nos cabelos, definia feições do rosto. Esse era meu Photoshop! Essa é minha técnica! ”.

Depois que as fotografias eram copiadas (ou ampliadas), começavam as etapas relacionadas à intervenção pictórica possibilitando o retoque e a manipulação das imagens por meio do uso de tinta a óleo, dividindo os processos de intervenção pictórica em: “tonalizar a pele, traçar o cabelo e cílios fio por fio, colorir e delinear lábios e dentes”, além de adicionar detalhes a “brincos, chapéus, vestimentas”.

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