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2.1 AVALIAÇÃO ESCOLAR E ENSINO DE LÍNGUA MATERNA

2.1.3 Avaliação em língua materna

No que concerne ao trabalho pedagógico em língua materna, Antunes (2003) afirma que duas tendências teóricas gerais, provenientes dos estudos linguísticos, marcam a compreensão sobre os fatos da linguagem: uma em que a língua é vista enquanto conjunto abstrato de regras, desvinculado de suas condições de produção, e outra em que a língua é concebida como ação social, processo intersubjetivo e, assim, como sistema em função vinculado às situações concretas e diversificadas da língua em uso. Entre essas duas perspectivas, historicamente, o ensino de português tem privilegiado a concepção tradicionalista de língua, através de uma prática em que o ensino da língua é reduzido à identificação, à reprodução e ao domínio dos aspectos formais, seja no âmbito da escrita, da leitura ou do estudo da gramática.

Por essa vertente reducionista, também de acordo com Antunes (2003), as atividades de ensino da escrita constituem oportunidades de o aluno exercitar e demonstrar o domínio das regras gramaticais ou da ortografia. A escrita ocorre desvinculada dos contextos

comunicativos, sendo, por isso mesmo, alheia aos sentidos e às intencionalidades: é uma escrita mecânica, inexpressiva e artificial.

Semelhantemente, as atividades de ensino da leitura são centradas na decodificação da escrita, constituindo-se como uma prática que se limita à recuperação dos elementos literais e mais superficiais do texto, além de ser realizada de maneira desvinculada da interação verbal e dos usos sociais.

No âmbito da oralidade, as atividades resumem-se à reprodução de conversas, “troca de ideias”, explicações sobre o conteúdo. Nesse contexto, a fala é vista como lugar permitido para ocorrer desvios gramaticais, além de não haver distinção entre as situações de interação social formal e informal.

As atividades em torno do ensino da gramática, por sua vez, são direcionadas para o estudo estrito da nomenclatura e da classificação das unidades gramaticais, em que são utilizadas palavras e frases de forma descontextualizada, o que demonstra uma desarticulação desse ensino com os usos reais da língua escrita e falada. Tal ensino assume ainda um caráter prescritivo ao se preocupar em demarcar o “certo” e o “errado”, fazendo com que professores e alunos vejam a língua pela perspectiva da correção linguística.

Esse cenário torna evidente que as atividades relacionadas ao ensino de língua materna no espaço escolar têm sido predominantemente deslocadas das situações de interação social e, por isso, dos seus usuários. Na mesma linha de reflexão, ao se referir mais precisamente ao ensino da “escrita sem função”, desvencilhada dos processos interacionais, Antunes (2003) critica que “é na escola que as pessoas ‘exercitam’ a linguagem ao contrário, ou seja, a linguagem que não diz nada” (p. 26, grifos da autora). Nessas condições, o ensino da “linguagem vazia” contribui para a persistência de um quadro de insucesso escolar, uma vez que os alunos, ao não reconhecerem a língua ensinada nas aulas como a língua usada socialmente, passam a considerar que não sabem português, o que inevitavelmente se reflete na aprendizagem. A partir disso, engendra-se uma aversão às aulas de língua portuguesa e, não raramente, os alunos deixam a escola com a certeza de que são linguisticamente incapazes.

As propostas alternativas para o ensino de língua, conforme explica Suassuna (2004), fundamentam-se em outra concepção de linguagem, concebida como discurso, forma de interação social. Antunes (2003), por sua vez, indica a necessidade de se assumir essa concepção, visto que a função mesma da língua é promover a interação social, o que nos leva a admitir, juntamente com a autora, que somente a concepção interacionista de linguagem,

“eminentemente funcional e contextualizada, pode, de forma ampla e legítima, fundamentar um ensino de língua que seja, individual e socialmente, produtivo e relevante” (p. 41). É, então, a língua a serviço da interação, realizada por meio de práticas discursivas, materializadas em textos, que deve constituir o ponto de referência para a definição de objetivos, programas e atividades relacionadas ao ensino e à avaliação da língua.

Geraldi (2004), de outro ângulo, afirma que, mediante uma concepção interacionista de língua, desloca-se a noção do ensino como transmissão de um repertório pronto de palavras ou regras a ser apreendido e fixado para a compreensão da aula como lugar de interação verbal e, por isso mesmo, de diálogo entre sujeitos. Para o autor, tomar a interação verbal como princípio da prática pedagógica significa deslocar-se continuamente de planejamentos rígidos para programas construídos ao longo do processo de ensino e aprendizagem. Em vista disso, Suassuna (2004) avalia que a concepção de língua como interação “colocou o desafio de definir novos conteúdos de ensino, novas metodologias e procedimentos didáticos, assim como novos modos de avaliar a aprendizagem” (p. 117).

Marcuschi (1999), ao tratar dos pressupostos básicos da avaliação em língua materna, explica que duas noções de língua têm repercutido no contexto escolar, delineando uma prática pedagógica e avaliativa polarizada:

a) de um lado, tem-se a corrente tradicional, que correlaciona a norma culta à própria língua e analisa os fatos da linguagem de maneira reduzida, a partir de sua representação escrita. Por essa noção, a língua é entendida enquanto um código que necessita ser reproduzido através do ensino de regras gramaticais. O professor, de acordo com tal perspectiva, preocupa-se em avaliar se o aluno domina ou não os aspectos estruturais da língua e se constrói enunciados “corretos”, sem desvios em relação à escrita padrão.

b) de outro lado, há os que enxergam a língua enquanto discurso e, por isso, percebem a linguagem como um processo criador que envolve a compreensão e a produção de textos. Nesse enfoque, o ensino se organiza em torno do texto e a observação dos fenômenos metalinguísticos ocorre no processo de construção dos sentidos. A avaliação, nesses termos, volta-se, prioritariamente, para a verificação da competência do educando em interpretar e produzir textos.

Tal panorama evidencia que reconhecer uma ou outra concepção implica tomar diferentes decisões quanto à prática de ensino e avaliação em língua materna na escola. Nesse sentido, assumir a noção de língua enquanto discurso significa privilegiar o uso social da língua, que se apresenta como a habilidade de interpretar, produzir e negociar sentidos,

através do trabalho com textos, conforme defende Marcuschi (1999). A autora destaca ainda que, para além dos aspectos formais e das relações semânticas estabelecidas internamente (responsáveis por garantir a coesão e a coerência do texto), é fundamental considerar o contexto situacional que envolve a atividade discursiva; o que significa dizer que os fatores pragmáticos e discursivos da textualidade devem ser levados em conta no que concerne ao ensino e à avaliação em língua numa perspectiva discursiva.

Também de acordo com essa noção, no que diz respeito à avaliação em língua portuguesa, Suassuna (2004) afirma que é fundamental que se compreenda que o fim último do ensino de língua é formar cidadãos leitores e produtores de textos, por meio da articulação entre as práticas de leitura, produção de textos e análise linguística. Isso porque, se o objetivo final do ensino de língua materna é que os alunos compreendam e o que leem e produzam textos adequados às situações comunicativas em que estiverem envolvidos, “então as unidades básicas de ensino serão sempre a leitura, a produção de textos e a reflexão sobre os recursos expressivos mobilizados nestas duas atividades” (GERALDI, 2010b, p. 101), e o papel do professor consistirá, portanto, em integrar as atividades de uso e reflexão da língua (oral e escrita) a fim de alcançar tal objetivo. Discutindo essa questão, Suassuna (2004, p. 138) explica que:

A leitura seria entendida como possibilidade de interlocução com o autor/texto, compreendendo, avaliando e criticando sua visão de mundo. A escrita diz respeito à capacidade de colocar-se como alguém que registra sua visão de mundo para ser lido por outros. Já a atividade de análise linguística teria como ponto de partida o uso da língua, enfocando aspectos linguísticos e discursivos desse uso, para, em seguida, permitir o retorno, com conhecimentos ampliados, às práticas linguísticas de leitura e escrita. Nessa situação de reflexão sobre os usos da língua, devem ser priorizados os níveis pragmático e discursivo de análise, funcionando os outros níveis (ortográfico e gramatical, p. ex.) como suportes da compreensão dos fenômenos estudados.

Diante do exposto, após lançarmos luz sobre os pressupostos que embasam o ensino de língua portuguesa e, consequentemente, sua avaliação, é importante refletirmos ainda sobre a interdependência entre as concepções de língua e os paradigmas de avaliação escolar no contexto de ensino e aprendizagem da língua.

Seguindo essa linha de pensamento, Marcuschi (2004a), ao refletir sobre concepções e práticas de avaliação em língua materna, explica que as práticas avaliativas têm se desenvolvido com base em dois paradigmas: o paradigma somativo, vinculado ao modelo tradicional de avaliação, e o paradigma formativo, em que a avaliação é concebida como estratégia de formação. Esses modelos, embora não sejam propriamente dicotômicos – pois

carregam aspectos próprios do funcionamento da instituição escolar –, revelam concepções distintas acerca da noção de língua, do processo de ensino e aprendizagem, do papel que o professor e o aluno desempenham nesse processo, além de diferentes noções acerca do erro.

A respeito do paradigma somativo, Marcuschi (2004a) afirma que a avaliação é feita por somas de etapas, e que, comumente, ocorre na escola em períodos previamente definidos, “sem o propósito de interferir no processo de ensino-aprendizagem, mas de fixar etapas para o tratamento do conteúdo por parte do docente, punir, premiar, rotular e classificar o educando.” (p.45). Nele, é possível identificar a cultura da procura pelo erro, tendo em vista que o professor avalia o que o aluno produziu a partir da verificação de seus “acertos” e “erros” no que concerne, sobretudo, aos aspectos formais identificados em suas produções.

Essa prática, por se propor a medir o “sucesso” ou “fracasso” do aluno a partir da identificação do erro, como já aludimos anteriormente ao tratarmos do paradigma tradicional de avaliação, decorre da concepção de que a aprendizagem é vista de forma homogênea e linear. Em vista disso, cria-se uma comparação entre os alunos quanto ao desempenho que obtiveram ao escreverem seus textos, o que supõe um processo de exclusão daqueles que não tiveram uma “boa desenvoltura”20

. No âmbito do ensino de língua materna, Marcuschi sustenta que, no Brasil, a avaliação tem sido tradicionalmente realizada nessa perspectiva, justamente por se associar:

a categorias que analisam preferencialmente os resultados atingidos pelos educandos, quando comparados aos de seus colegas de turma, em fenômenos observáveis no âmbito do código linguístico, ao término de um período burocraticamente fixado. No controle da aprendizagem, predominam em grande parte as situações de exame e a preocupação precípua é a de atingir uma avaliação objetiva, que possa ser quantificada, contabilizando-se para tanto os desvios detectados na estrutura linguística (MARCUSCHI, 2004a, p.46).

Isso nos permite dizer que a perspectiva somativa de avaliação mantém forte relação com a concepção de língua enquanto código, sendo, por isso, alheia aos processos interacionais. No caso do trabalho com a escrita a partir dessa noção, a autora afirma que dificilmente o professor irá considerar, na avaliação, o processo de construção textual vivenciado pelo educando. Nesse sentido, as atividades de planejamento e revisão textual são normalmente negligenciadas, e a reescrita, quando solicitada, reduz-se à correção dos desvios

20 Critica-se aqui a comparação feita entre os alunos, subsidiada pela ideia de homogeneização da aprendizagem. Diante disso, vale ressaltar que a comparação é um aspecto inerente ao ato avaliativo, e deve ser utilizada para comparar o aluno consigo mesmo, no que diz respeito aos conhecimentos por ele construídos ao longo de sua trajetória em determinado etapa da escolarização (cf. MARCUSCHI, 2004a).

relacionados à norma linguística, o que evidencia uma prática avaliativa centrada nos aspectos superficiais do texto (mais suscetíveis à quantificação) e voltada ao produto final.

De outra parte, Marcuschi (2004a) explica que o ensino de língua materna associado à avaliação formativa é conduzido a partir de “atividades linguísticas socialmente pertinentes e motivadoras, às quais subjaz a noção de língua como atividade, entendendo-se o texto como um processo” (p.47). Assim, no que diz respeito ao ensino da escrita, o texto elaborado pelo aluno nunca será definitivo, mas estará suscetível a novas versões, o que significa que deverá ser submetido à leitura do outro. Nesse contexto, o professor assume o papel importante de assinalar os desvios que comprometem ou impedem a interlocução, evidenciando uma avaliação preocupada com o processo de produção de sentidos (e não apenas com o produto final) e a serviço da aprendizagem, uma vez que esse tipo de intervenção possibilita uma maior reflexão por parte do aluno sobre a língua no que concerne aos aspectos linguísticos e discursivos que deverão ser mobilizados para reelaboração do texto.

Daí é possível reconhecer os princípios de uma avaliação formativa, cuja importância não consiste na contabilização dos erros, na atribuição de notas ou conceitos, ou na quantidade de exercícios realizados, mas nos “significados atribuídos a esses e outros procedimentos, bem como nas informações que a partir deles são detalhadamente elaboradas a respeito da aprendizagem do educando”, conforme aponta Marcuschi (2004a, p.47).

Esse percurso nos leva a admitir que, mais que uma redefinição do paradigma de avaliação escolar em uma perspectiva tradicional, faz-se necessária a revisão da concepção de língua que subjaz à prática do professor de português. Isso porque a avaliação em língua materna na escola ainda tem se mostrado bastante arraigada a uma noção de língua enquanto código21, privilegiando a forma em detrimento do conteúdo, o produto e não o processo (MARCUSCHI, 2004a). Uma avaliação que insiste em preservar a dicotomia do “certo” e do “errado” e manter uma postura corretiva ante as produções dos alunos, gerando resultados nada animadores no que diz respeito à formação de sujeitos leitores e produtores de textos, que reflitam sobre o funcionamento da língua nas práticas sociais de linguagem.

É importante assinalar ainda, como discutem Morais e Ferreira (2007), que as mudanças na prática do professor em sala de aula não ocorrem conforme são planejadas. O que se explica pelo fato de que o docente carrega consigo concepções e procedimentos construídos ao longo de sua trajetória pessoal e profissional, o que não é facilmente desfeito, sobretudo num contexto de ensino e avaliação historicamente marcado por práticas que se

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consubstanciam as concepções tradicionais de ensino e aprendizagem. Nesse sentido, os autores consideram que é necessário não só tempo para que as mudanças esperadas no campo da avaliação sejam empreendidas, mas também um trabalho de reflexão coletiva na escola para que os professores possam construir outros caminhos para as suas práticas.

As reflexões sobre o quê e como avaliar na escola fazem parte do “como ensinar” (MORAIS e FERREIRA, 2007). Por essa perspectiva, e tendo em vista que nosso objeto de estudo se situa no campo da avaliação da produção escrita, passaremos na seção seguinte a discorrer sobre o ensino da produção escrita.

2.2 PRODUÇÃO ESCRITA NA ESCOLA: OS OBJETOS DE ENSINO DA ESCRITA E A