Capítulo 2 A Ascensão da Dinastia Omrida: Estudo Exegético de 1Rs
2. Crítica Textual
7.3. O Reinado de Acab, Filho de Omri (16.29-33)
7.3.4. Avaliação negativa de Acab, rei de Israel Norte (v.32-33)
Este é o último tópico da avaliação deuteronomista do reinado de Acab, rei de Israel Norte. A primeira parte da avaliação do deuteronomista dou a de que Acab foi o pior rei de Israel, pior do que todos os que foram antes dele. A segunda parte da avaliação negativa foi ainda mais severa, o deuteronomista acusou Acab de ter se casado com Jezabel a princesa dos Sidônios, de ter servido a Baal e ter se prostrado diante dele.
Agora, no v.32 e 33, temos a continuação da avaliação deuteronomista. Estes dois versículos podem ser divididos em cinco frases, “e ergueu [um] altar para Baal”, “[uma] casa de Baal, que edificou em Samaria”, “e fez Acab a Aserá”, “e superou Acab em provocar a irritação [de] YHWH, Deus de Israel” e “mais que todos [os] reis de Israel, que foram antes dele”. Vamos à análise do texto:
l[;B'_l; x;BeÞz>mi ~q,Y"ïw:
32`!Ar)m.voB. hn"ßB' rv<ïa] l[;B;êh; tyBeä
hr"_vea]h'-ta, ba'Þx.a; f[;Y:ïw:
33‘sy[ik.h;l. tAfª[]l; ba'øx.a; @s,AY“w:
laeêr"f.yI yheäl{a/ ‘hA"hy>-ta,
laeêr"f.yI ykeäl.m; lKo’mi
`wyn")p'l. Wyàh' rv<ïa]
32 E ergueu [um] altar para Baal, [uma] casa de Baal,
que edificou em Samaria. 33 E fez Acab a Aserá; e superou Acab em provocar
a irritação [de] YHWH, Deus de Israel, mais que todos [os] reis de Israel, que foram antes dele.
Este é um texto narrativo, possui pelo menos três verbos wayyiqtol, um no v.32 e ou outros dois no v.33. A primeira frase do v.32 “e ergueu [um] altar para Baal” é iniciada por um hifil com waw consecutivo, cuja raiz é
~wq
e significa basicamente “levantar”. Na conjugação hifil, esse verbo passa a ser um causativo ativo, seu sujeito não praticou diretamente a ação de levantar, mascausou essa ação, ele fez com que levantassem para ele. Desta forma, o verbo hebraico
~q,Y"w:
“e levantou”, indica que o rei Acab foi o autor da ação, mas a realizou através de outras pessoas, sacerdotes?O texto diz que Acab
~q,Y"w:
“e levantou” um altar. A palavra “altar” aqui éx;Bez>mi
, este substantivo é derivado de outro substantivo,xB'z<
“sacrifício de animal (gado)”, que por sua vez deriva do verboxb;z"
“sacrificar” ou “abater”. O vocábulo hebraicox;Bez>mi
, deveria ser um altar normalmente feito de pedra, para queimar os animais abatidos para o sacrifício (ANDERSON, 1992, p. 7671). O rei Acab mandou levantar um altar de sacrifícios para Baal.A informação é que Acab teria construído um templo para Baal
l[;B;h; tyBe
(literalmente “casa do Baal”). O verbohn"B'
“edificou”, também é utilizado na edificação de Samaria (v.24), portanto aqui deve se referir realmente a um templo de Baal. Esta expressãol[;B;h; tyBe
“casa de Baal” ocorre nove vezes na Bíblia Hebraica somente nos livros de Reis (oito vezes) e Crônicas (uma vez), e todas as nove ocorrências fazem referência à família da dinastia omrida (1Rs 16.32; 2Rs 10.21, 23, 25, 26, 27; 11.18; 2Cr 23.17).Primeira frase do v.33 diz
hr"_vea]h'-ta, ba'Þx.a; f[;Y:ïw:
“e fez Acab a Aserá”. A Aserá foi uma deusa bastante popular no período bíblico, ela era uma deusa da fertilidade. O vocábulohr'vea]
ocorre quarenta vezes na Bíblia Hebraica, destas, dezesseis vezes no livro de 1 e 2 Reis e onze vezes no livro de 2 Crônicas.O texto informa que Jezabel sustentava quatrocentos e cinquenta profetas de Baal e quatrocentos profetas de Aserá com os recursos da corte (1Rs 18.19). Isto indica que esta era a religião do estado, ou pelo menos a religiosidade apoiada pelo estado. Foram encontradas muitas estatuetas feitas em cerâmica de Aserá/Astarte tanto em Israel Norte como em Judá, mostrando que as divindades da fertilidade eram muito comuns no cotidiano dos israelitas deste período (MAZAR, 2003, p. 476).
O nome
hr'vea]
é traduzido na maior parte das versões da Bíblia em língua portuguesa, por “poste-ídolo” (ARA), “bosque” (ARC), “poste sagrado” (BJ) e pora;lsoj
“bosque” na LXX. Evidentemente que, como um nome de divindade, nãodeveria ser traduzido, mas transliterado, para manter a pronúncia do nome, mas isso não é uma realidade. A tradução do nome
hr'vea]
acaba escondendo a personalidade da deusa da fertilidade, excluindo-a do texto bíblico e da história de Israel, ela simplesmente não aparece. É possível que isso aconteça por motivos teológicos.O nome
hr'vea]
é a forma feminina dervea'
que é também o nome de um dos filhos de Jacó (Gn 30,13), significa “ser feliz”, “ser reputado por feliz”, “prosperidade”. Lea, uma das esposas de Jacó, chamou a criança recém- nascida pelo nome dervea'
, relacionando o nome com a fertilidade para procriar, e isto demonstrava sua felicidade. O nomehr'vea]
(Aserá) deve trazer o sentido de “a que traz felicidade”, daí a ideia de deusa da fertilidade.Há uma proibição em Dt 16.21-22 para que ninguém levantasse uma Aserá nem plantasse uma árvore junto ao altar de Javé. No livro dos Reis temos várias ocasiões onde o texto bíblico hebraico testemunha a presenta de Aserá no território de Israel Norte e de Judá, como também dentro do próprio Templo de Jerusalém, como neste texto 1Rs 16.33 onde menciona o templo de Baal e o estabelecimento da Aserá em Samaria. Posteriormente, temos a presença de Aserá durante o reinado de Jeoacaz em Samaria, em 2Rs 13.4-6, quase quarenta anos depois de Acab.
Este texto sugere que a Aserá está associada com o templo de Baal em Samaria. Porém, é possível que o templo tenha sido de Javé, pois existem várias evidências que apresentam Javé como a divindade de Samaria (DIJKSTRA, 2001, p. 116-117). A Estela de Mesha, por exemplo, uma pedra de basalto com um texto escrito em letras paleohebraicas, apresenta na linha 18, o nome de Javé (YHWH) como a divindade de Israel Norte, que segundo Mesha, foi derrotado por Qemosh (ou Camos), divindade moabita (GALLEAZZO, 2008, p. 119-120, 147-148).
A Aserá aparece como um dos motivos listados pelo editor deuteronomista como a causa da queda de Samaria diante dos assírios (2Rs 17.7-10). E também aparece em Jerusalém na época de Ezequias (2Rs 18.4), e anos mais tarde, dentro do Templo na época de Manassés (2Rs 21.7) e na época de
Josias, o qual a retirou do templo e a queimou no vale do Cedron (2Rs 23.4). (KAEFER, 2006, p. 180-181).
Segunda frase do v.33 mostra o quanto o editor deuteronomista estava indignado com relação ao reinado de Acab em Israel. Ele continua sua avaliação utilizando o verbo hebraico
@s,AYw:
“e superou” ou “e acrescentou”, em relação ao fato de provocar a irritação ou a ira de Javé, assim como já havia abordado no v.30. Acab desta vez havia superado as expectativas negativas do deuteronomista, em causar a ira, a irritaçãolaer"f.yI yheäl{a/ hA"hy>-ta,
“a Javé, o Deus de Israel”.A utilização do nome de Javé relacionado a Israel, segundo Finkelstein (2015, p.109), é resultado de uma ideologia pan-israelita do período do final da monarquia e início do pós-exílio. Quando Judá passa a assumir o nome Israel para si, a fim de fortalecer a teologia histórica da Monarquia Unida no pós-exílio.
A BHS, neste v.33, traz uma nota no aparato crítico referente à frase hebraica
laer"f.yI yheäl{a/ ‘hA"hy>-ta,
“a Javé, o Deus de Israel”. A nota [ 33 b-b *th.n yuch.n auvtou/ tou/ evxoleqreuqh/nai\ evkakopoi,hsen
] diz que o texto original grego da LXX (séc. III-I AEC) traz a fraseth.n yuch.n auvtou/ tou/
evxoleqreuqh/nai\ evkakopoi,hsen
(a sua alma, a destruir totalmente fazendo o mal) no lugar da frase hebraicalaer"f.yI yhel{a/ hA"hy>-ta,
“ a Javé Deus de Israel”. Neste caso o versículo ficaria da seguinte forma: “E fez Acab [uma] Aserá; e superou Acab em provocar a irritação [da] sua alma, a destruir totalmente fazendo o mal, mais que todos [os] reis de Israel, que foram antes dele”.Daí vamos para a terceira frase do v.33, última frase deste terceiro parágrafo e última frase desta perícope, que teve início no v.15 deste capítulo. Esta última frase é subordinada à anterior, que informa que Acab, rei de Israel, havia superado o fato de irritar a Javé, com todas as suas realizações mencionadas nos v.30-33; o fato de ter se casado com uma estrangeira fenícia, seguidora de Baal, de ter andado e servido a Baal, além de ter construído um templo em honra a essa divindade e de ter levantado uma Aserá em Samaria.